Nos diários que a mãe de Diane Keaton deixou, mais de 80 cadernos que
inspiraram a atriz a publicar o livro "Hena Ágatis", Dorothy Keaton
Hall descreveu a filha como "uma criança simples em alguns momentos, mas
assustadoramente sábia em outros". "Diane é um mistério", dizia a
professora que morreu aos 86 anos, em 2008, sofrendo de Alzheimer.
"Minha mãe foi a primeira a entender como sou uma criatura estranha, que
fala demais e nunca sabe direito o que fazer com as mãos", disse
Keaton, de 68 anos, até hoje um ícone de Hollywood quando o assunto é
parodiar as neuroses urbanas nas telas. Não foi por acaso que Woody
Allen fez dela sua primeira musa.
"Devo minha carreira a Woody. Ele teve a perspicácia de extrair humor
das minhas idiossincrasias. Muito da minha comédia física eu faço
inconscientemente", contou Keaton, vencedora do Oscar de melhor atriz
pelo papel de Annie Hall, escrito especialmente para ela, em "Noivo
Neurótico, Noiva Nervosa" (1977). Até hoje, Allen é um dos melhores
amigos da atriz nascida em Los Angeles - no último Globo de Ouro, até
aceitou o prêmio honorário em nome dele, já que o cineasta se recusa a
receber suas estatuetas. "Woody nunca saiu da minha vida. Estamos sempre
tagarelando pelo telefone."
A história cinematográfica da dupla também foi escrita com "Sonhos de
Um Sedutor" (1972), "O Dorminhoco" (1973), "A Última Noite de Boris
Grushenko" (1975), "Interiores" (1978), "Manhattan" (1979), "A Era do
Rádio" (1987) e "Um Misterioso Assassinato em Manhattan'' (1993). Neste
último título, o papel feminino originalmente seria de Mia Farrow, mas
Diane a substituiu, por causa do rompimento da relação de Allen e Mia,
ocorrido quando a ex-mulher descobriu que o diretor estava saindo com
sua filha adotiva, Soon-Yi Previn. "Amo Woody como pessoa e como
profissional. Ele é um dos poucos que consegue fazer o que bem entende
no cinema. Só um gênio para gerar o próprio material, rodando um filme
por ano, sem precisar da boa vontade dos outros."
Em seus filmes, Diane se mostra como sua mãe a
via:
"Uma criatura estranha, que fala demais
e nunca sabe o que fazer
com as mãos"
Ao longo de 45 anos de carreira, Diane aprendeu a "esperar o telefone
tocar". "Os atores não gostam de admitir, mas todos nós passamos mais
tempo esperando, ansiosos, o convite para um novo filme do que
propriamente trabalhando. No fundo, somos apenas fornecedores de um
serviço à espera de quem nos contrate." As ofertas, afirma, se tornam
cada vez mais escassas após os 60 anos, principalmente no caso das
atrizes. Diane nem pode reclamar muito, por rodar pelo menos um filme
por ano. Nos últimos tempos, interpretou a mulher que prefere o cachorro
ao marido em "Querido Companheiro" (2012) e a confusa ex-mulher de
Robert De Niro em "O Casamento do Ano" (2013). Neste ano, concluiu a
comédia romântica "Um Amor de Vizinha", que estreia nos cinemas
brasileiros no dia 11, com distribuição da PlayArte.
No longa-metragem dirigido por Rob Reiner ("Harry & Sally -
Feitos um Para o Outro", 1989), sua personagem é Leah, uma viúva que
adora a boemia e tenta rescrever sua história lançando-se como cantora
de um clube noturno. "O filme trata das segundas chances que podemos ter
na vida, caso tenhamos a coragem necessária para agarrá-las." Se Leah
conseguir se livrar da ideia de que está velha demais para certos
prazeres da vida, talvez se surpreenda nos braços de outro homem - seu
vizinho, um corretor de imóveis de coração partido interpretado por
Michael Douglas. A dupla passa a se ver com outros olhos depois que o
corretor começa a conviver com a neta, que ele nem sabia que existia - e
isso o reconecta a sua humanidade. "Ninguém sabe o que é envelhecer até
chegar lá. Para mim, tem sido um processo de redescoberta, em que, para
não cair na melancolia ou no tédio, procuro me ocupar com novas
experiências e novos desafios."
Quando não estava atuando, Diane preencheu o tempo, nos últimos anos,
lançando livros de arte (sobre fotografia e arquitetura), dirigindo
(como o longa de ficção "Linhas Cruzadas", de 2000, além de séries de
TV) e escrevendo dois livros de memórias. Com estilo direto, franco e,
ao mesmo tempo, bem-humorado, ela publicou "Then Again", em 2011, pela
Random House, e "Let's Just Say It Wasn't Pretty", da mesma editora,
lançado em abril. "Também aproveitei o hiato entre um filme e outro para
me dedicar mais aos meus filhos." Diane é mãe de Dexter, de 19 anos, e
Duke, de 14, ambos adotados. Além de Allen, Diane teve longos
relacionamentos com Al Pacino, seu colega de cena na trilogia "O
Poderoso Chefão"', iniciada em 1972, e com Warren Beatty, com quem
estrelou o filme "Reds" (1981). Mas nunca se casou. "Esse assunto já
está superado em minha vida."
Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista que Keaton concedeu ao Valor.
Antes da conversa, sua assistente tinha dito que a atriz não falaria de
Woody Allen - provavelmente, por causa da acusação de que ele teria
abusado da filha adotiva, Dylan, nos anos 90, assunto que voltou à tona
no começo do ano. Mas Diane foi a primeira a trazer Allen para a
conversa, derrubando a condição imposta pela assistente.
Valor: Seus colegas de filmagem, sejam diretores
ou atores, costumam dizer que a senhora é a mesma pessoa diante e atrás
das câmeras. É verdade?
Diane Keaton: Realmente, sou a mesma. Será que isso
faz de mim uma atriz preguiçosa? [risos]. A verdade é que sempre fui
espontânea. Quando me matriculei na Neighborhood Playhouse de Nova York,
nos anos 60, estudei com Sanford Meisner, que prezava o estilo natural
de interpretar. O que aprendi de mais valioso com ele foi entrar no
momento e estar sempre inteira na cena, o que acentuou ainda mais minha
espontaneidade. Como atriz, sempre procurei responder às situações e
contracenar com os colegas como se aquilo estivesse realmente
acontecendo e tomando forma pela primeira vez, independentemente do
número de vezes que havíamos ensaiado antes. O que faço é me levar ao
personagem, sem que precise trazê-lo até mim.
Valor: Como essa diferença se dá na prática?
Diane: Não atuo necessariamente. Eu faço com que os
diálogos se tornem meus, sem que soem falsos. Nunca me coloquei
inteiramente no lugar de um personagem, buscando uma grande
transformação. Não trago na bagagem algo parecido com o que Al Pacino
fez em "Perfume de Mulher" (1992), o que lhe proporcionou uma
experiência completamente nova, ao interpretar um cego. Meus personagens
geralmente ganham minha marca, em vez de eu deixá-los tomar posse de
mim. Mas essa entrega a um papel é algo que ainda quero fazer. Só que a
oportunidade ainda não se apresentou.
Valor: A senhora muitas vezes empresta seu
guarda-roupa às personagens. Como desenvolveu o estilo que virou sua
marca, com "looks" dominados por chapéus, sapatos masculinos, camisas
com gravata, blusas de gola alta ou terninhos?
Diane: Nunca fui bonita, no sentido clássico do
termo. Isso talvez explique o fato de, desde cedo, ter me sentido
atraída pelas roupas que escondessem meu corpo. E essa tendência ficou
ainda mais pronunciada com a idade, quando tenho mais partes para
esconder (risos).
"Ninguém sabe o que é envelhecer até chegar lá.
Para mim, tem sido um processo de redescoberta",
diz a atriz, de 68 anos
Valor: De onde veio a inspiração para se tornar escritora?
Diane: Meu primeiro livro de memórias, "Then
Again", foi baseado nos diários de minha mãe. Ela é praticamente a
coautora do livro: muitas vezes, reproduzo sua voz. Por mais que
relembre alguns homens com quem me relacionei [como Allen, Beatty, Al
Pacino e Sam Shepard], o grande amor de minha vida foi minha mãe. Na
verdade, o livro reúne reflexões das mais variadas, com o único objetivo
de explorar mais profundamente minha relação com ela.
Valor: O segundo livro de memórias, "Let's Just
Say It Wasn't Pretty", dá a impressão de ter sido escrito com o
propósito de celebrar a mulher na fase mais madura da vida...
Diane: Eu não diria madura...
Valor: Por que não?
Diane: Porque, apesar da idade, não me sinto madura
ainda (risos). Sei que estou mais velha. Não nego. Mas nem por isso
consigo me classificar como madura, por não achar que cheguei lá. A
ideia por trás do livro foi falar sobre beleza, sobre o processo de
envelhecimento, mas, acima de tudo, sobre como a mulher deve se gostar,
independentemente do que os outros pensam. É claro que, muitas vezes,
precisei recorrer ao humor para tratar desses assuntos, justamente para
mostrar como é ridícula a obsessão mundial pela beleza. E o que é pior:
por um único tipo de beleza, a da juventude. Toda a experiência me deu
muito prazer, por mais que tenha abordado coisas difíceis, como dividir a
sensação de ver o rosto no espelho todas as manhãs e descobrir cada vez
mais rugas. Digo tudo aquilo que acontece com a mulher depois dos 60,
incluindo as coisas boas e as más.
Valor: Mas sua participação em campanhas de
cosméticos não reforça o culto à juventude? (Desde 2006, Diane aparece
em peças de propaganda de cremes que combatem o envelhecimento, da marca
L'Oreal.)
Diane: Não. Só quero passar a mensagem de que me
sinto bem com a idade que tenho. É um jeito de mostrar que envelheci,
mas continuo viva, ativa e cheia de energia e de esperança. A verdade é
que as mulheres precisam desse tipo de afirmação muito mais do que os
homens. E por que uma mulher da minha idade não pode ser sentir
atraente? Eu não vejo nada de errado nisso. Não é a mesma beleza da
juventude, mas, por que não?
Valor: Seu conceito de beleza mudou com a idade?
Diane: Aconteceu comigo. Durante muitos anos, não
gostava do formato estranho dos meus olhos, que são caídos. Conforme o
tempo foi passando, como digo no livro, passei a ver as falhas com um
olhar mais terno. Acabei descobrindo que meus olhos são o que eu tenho
em comum com meu pai (o engenheiro civil John Newton Ignatius Hall, que
morreu em 1990, aos 68 anos).
"Às vezes, a vida se sobrepõe ao amor.
Ainda assim, cantar o amor
e sonhar com ele é
o suficiente para mim".
Valor: Resgatando o tema do amor entre pessoas
mais velhas, "Um Amor de Vizinha" reforça a safra que inclui "O Exótico
Hotel Marigold" (2011), "Amor É Tudo Que Você Precisa" (2012), "Um Plano
Brilhante" (2013) e outros. Acha que o público para esse tipo de filme
cresceu?
Diane: Acredito que sim. Mas isso não impede algum
jornalista de me perguntar de vez em quando como eu me sinto fazendo um
filme romântico na minha idade, como se isso fosse algo impossível de
acontecer. É muito natural uma mulher mais velha despertar o interesse
amoroso de um homem e se sentir atraída por alguém. Na atual fase da
minha vida, valorizo todas as histórias que nos encorajam a mudar,
independentemente da idade. O problema é que, ao envelhecermos,
costumamos ficar ainda mais inflexíveis. Mas acredito em segundas
chances, inclusive no amor. E espero que o público também. A vida nunca
deve perder sua magia e esperança.
Valor: O tempo mudou sua visão do amor?
Diane: A resposta está em "Um Amor de Vizinha", na
cena em que minha personagem, uma cantora prestes a se apresentar em um
bar, fala um pouco da música que vai interpretar. Antes de cantar "The
Shadow of Your Smile", ela diz: "Às vezes, a vida se sobrepõe ao amor.
Ainda assim, cantar o amor e sonhar com ele é o suficiente para mim". Eu
me sinto da mesma forma. Enquanto estiver viva, estou aberta às
emoções, venham elas das minhas personagens ou das minhas experiências.
Seja para viver momentos de alegria ou de tristeza, o que eu quero é
viver.
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Reportagem Por Elaine Guerini | Para o Valor, de Los Angeles
Fonte: Valor Econômico online, 29/08/2014
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