sexta-feira, 29 de agosto de 2014

SEU PAPEL, SUA VIDA

 Wireimage
 Diane Keaton: "Os atores não gostam de admitir, mas passamos mais tempo esperando, ansiosos, o convite 
para um novo filme do que trabalhando"

Nos diários que a mãe de Diane Keaton deixou, mais de 80 cadernos que inspiraram a atriz a publicar o livro "Hena Ágatis", Dorothy Keaton Hall descreveu a filha como "uma criança simples em alguns momentos, mas assustadoramente sábia em outros". "Diane é um mistério", dizia a professora que morreu aos 86 anos, em 2008, sofrendo de Alzheimer. "Minha mãe foi a primeira a entender como sou uma criatura estranha, que fala demais e nunca sabe direito o que fazer com as mãos", disse Keaton, de 68 anos, até hoje um ícone de Hollywood quando o assunto é parodiar as neuroses urbanas nas telas. Não foi por acaso que Woody Allen fez dela sua primeira musa.

"Devo minha carreira a Woody. Ele teve a perspicácia de extrair humor das minhas idiossincrasias. Muito da minha comédia física eu faço inconscientemente", contou Keaton, vencedora do Oscar de melhor atriz pelo papel de Annie Hall, escrito especialmente para ela, em "Noivo Neurótico, Noiva Nervosa" (1977). Até hoje, Allen é um dos melhores amigos da atriz nascida em Los Angeles - no último Globo de Ouro, até aceitou o prêmio honorário em nome dele, já que o cineasta se recusa a receber suas estatuetas. "Woody nunca saiu da minha vida. Estamos sempre tagarelando pelo telefone."

A história cinematográfica da dupla também foi escrita com "Sonhos de Um Sedutor" (1972), "O Dorminhoco" (1973), "A Última Noite de Boris Grushenko" (1975), "Interiores" (1978), "Manhattan" (1979), "A Era do Rádio" (1987) e "Um Misterioso Assassinato em Manhattan'' (1993). Neste último título, o papel feminino originalmente seria de Mia Farrow, mas Diane a substituiu, por causa do rompimento da relação de Allen e Mia, ocorrido quando a ex-mulher descobriu que o diretor estava saindo com sua filha adotiva, Soon-Yi Previn. "Amo Woody como pessoa e como profissional. Ele é um dos poucos que consegue fazer o que bem entende no cinema. Só um gênio para gerar o próprio material, rodando um filme por ano, sem precisar da boa vontade dos outros."

Em seus filmes, Diane se mostra como sua mãe a via: 
"Uma criatura estranha, que fala demais 
e nunca sabe o que fazer 
 com as mãos"

Ao longo de 45 anos de carreira, Diane aprendeu a "esperar o telefone tocar". "Os atores não gostam de admitir, mas todos nós passamos mais tempo esperando, ansiosos, o convite para um novo filme do que propriamente trabalhando. No fundo, somos apenas fornecedores de um serviço à espera de quem nos contrate." As ofertas, afirma, se tornam cada vez mais escassas após os 60 anos, principalmente no caso das atrizes. Diane nem pode reclamar muito, por rodar pelo menos um filme por ano. Nos últimos tempos, interpretou a mulher que prefere o cachorro ao marido em "Querido Companheiro" (2012) e a confusa ex-mulher de Robert De Niro em "O Casamento do Ano" (2013). Neste ano, concluiu a comédia romântica "Um Amor de Vizinha", que estreia nos cinemas brasileiros no dia 11, com distribuição da PlayArte.

No longa-metragem dirigido por Rob Reiner ("Harry & Sally - Feitos um Para o Outro", 1989), sua personagem é Leah, uma viúva que adora a boemia e tenta rescrever sua história lançando-se como cantora de um clube noturno. "O filme trata das segundas chances que podemos ter na vida, caso tenhamos a coragem necessária para agarrá-las." Se Leah conseguir se livrar da ideia de que está velha demais para certos prazeres da vida, talvez se surpreenda nos braços de outro homem - seu vizinho, um corretor de imóveis de coração partido interpretado por Michael Douglas. A dupla passa a se ver com outros olhos depois que o corretor começa a conviver com a neta, que ele nem sabia que existia - e isso o reconecta a sua humanidade. "Ninguém sabe o que é envelhecer até chegar lá. Para mim, tem sido um processo de redescoberta, em que, para não cair na melancolia ou no tédio, procuro me ocupar com novas experiências e novos desafios."

Quando não estava atuando, Diane preencheu o tempo, nos últimos anos, lançando livros de arte (sobre fotografia e arquitetura), dirigindo (como o longa de ficção "Linhas Cruzadas", de 2000, além de séries de TV) e escrevendo dois livros de memórias. Com estilo direto, franco e, ao mesmo tempo, bem-humorado, ela publicou "Then Again", em 2011, pela Random House, e "Let's Just Say It Wasn't Pretty", da mesma editora, lançado em abril. "Também aproveitei o hiato entre um filme e outro para me dedicar mais aos meus filhos." Diane é mãe de Dexter, de 19 anos, e Duke, de 14, ambos adotados. Além de Allen, Diane teve longos relacionamentos com Al Pacino, seu colega de cena na trilogia "O Poderoso Chefão"', iniciada em 1972, e com Warren Beatty, com quem estrelou o filme "Reds" (1981). Mas nunca se casou. "Esse assunto já está superado em minha vida."

Divulgação 
Como Annie Hall, com Woody Allen ("Ele nunca saiu de minha vida")
 
Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista que Keaton concedeu ao Valor. Antes da conversa, sua assistente tinha dito que a atriz não falaria de Woody Allen - provavelmente, por causa da acusação de que ele teria abusado da filha adotiva, Dylan, nos anos 90, assunto que voltou à tona no começo do ano. Mas Diane foi a primeira a trazer Allen para a conversa, derrubando a condição imposta pela assistente.

Valor: Seus colegas de filmagem, sejam diretores ou atores, costumam dizer que a senhora é a mesma pessoa diante e atrás das câmeras. É verdade?
Diane Keaton: Realmente, sou a mesma. Será que isso faz de mim uma atriz preguiçosa? [risos]. A verdade é que sempre fui espontânea. Quando me matriculei na Neighborhood Playhouse de Nova York, nos anos 60, estudei com Sanford Meisner, que prezava o estilo natural de interpretar. O que aprendi de mais valioso com ele foi entrar no momento e estar sempre inteira na cena, o que acentuou ainda mais minha espontaneidade. Como atriz, sempre procurei responder às situações e contracenar com os colegas como se aquilo estivesse realmente acontecendo e tomando forma pela primeira vez, independentemente do número de vezes que havíamos ensaiado antes. O que faço é me levar ao personagem, sem que precise trazê-lo até mim.

Valor: Como essa diferença se dá na prática?
Diane: Não atuo necessariamente. Eu faço com que os diálogos se tornem meus, sem que soem falsos. Nunca me coloquei inteiramente no lugar de um personagem, buscando uma grande transformação. Não trago na bagagem algo parecido com o que Al Pacino fez em "Perfume de Mulher" (1992), o que lhe proporcionou uma experiência completamente nova, ao interpretar um cego. Meus personagens geralmente ganham minha marca, em vez de eu deixá-los tomar posse de mim. Mas essa entrega a um papel é algo que ainda quero fazer. Só que a oportunidade ainda não se apresentou.

Valor: A senhora muitas vezes empresta seu guarda-roupa às personagens. Como desenvolveu o estilo que virou sua marca, com "looks" dominados por chapéus, sapatos masculinos, camisas com gravata, blusas de gola alta ou terninhos?
Diane: Nunca fui bonita, no sentido clássico do termo. Isso talvez explique o fato de, desde cedo, ter me sentido atraída pelas roupas que escondessem meu corpo. E essa tendência ficou ainda mais pronunciada com a idade, quando tenho mais partes para esconder (risos).

"Ninguém sabe o que é envelhecer até chegar lá. 
Para mim, tem sido um processo de redescoberta", 
diz a atriz, de 68 anos

Valor: De onde veio a inspiração para se tornar escritora?
Diane: Meu primeiro livro de memórias, "Then Again", foi baseado nos diários de minha mãe. Ela é praticamente a coautora do livro: muitas vezes, reproduzo sua voz. Por mais que relembre alguns homens com quem me relacionei [como Allen, Beatty, Al Pacino e Sam Shepard], o grande amor de minha vida foi minha mãe. Na verdade, o livro reúne reflexões das mais variadas, com o único objetivo de explorar mais profundamente minha relação com ela.

Valor: O segundo livro de memórias, "Let's Just Say It Wasn't Pretty", dá a impressão de ter sido escrito com o propósito de celebrar a mulher na fase mais madura da vida...
Diane: Eu não diria madura...

Valor: Por que não?
Diane: Porque, apesar da idade, não me sinto madura ainda (risos). Sei que estou mais velha. Não nego. Mas nem por isso consigo me classificar como madura, por não achar que cheguei lá. A ideia por trás do livro foi falar sobre beleza, sobre o processo de envelhecimento, mas, acima de tudo, sobre como a mulher deve se gostar, independentemente do que os outros pensam. É claro que, muitas vezes, precisei recorrer ao humor para tratar desses assuntos, justamente para mostrar como é ridícula a obsessão mundial pela beleza. E o que é pior: por um único tipo de beleza, a da juventude. Toda a experiência me deu muito prazer, por mais que tenha abordado coisas difíceis, como dividir a sensação de ver o rosto no espelho todas as manhãs e descobrir cada vez mais rugas. Digo tudo aquilo que acontece com a mulher depois dos 60, incluindo as coisas boas e as más.

Divulgação 
Com Michael Douglas, como Leah, viúva que tenta reescrever sua história,
 em “Um Amor de vizinha”
 
Valor: Mas sua participação em campanhas de cosméticos não reforça o culto à juventude? (Desde 2006, Diane aparece em peças de propaganda de cremes que combatem o envelhecimento, da marca L'Oreal.)
Diane: Não. Só quero passar a mensagem de que me sinto bem com a idade que tenho. É um jeito de mostrar que envelheci, mas continuo viva, ativa e cheia de energia e de esperança. A verdade é que as mulheres precisam desse tipo de afirmação muito mais do que os homens. E por que uma mulher da minha idade não pode ser sentir atraente? Eu não vejo nada de errado nisso. Não é a mesma beleza da juventude, mas, por que não?

Valor: Seu conceito de beleza mudou com a idade?
Diane: Aconteceu comigo. Durante muitos anos, não gostava do formato estranho dos meus olhos, que são caídos. Conforme o tempo foi passando, como digo no livro, passei a ver as falhas com um olhar mais terno. Acabei descobrindo que meus olhos são o que eu tenho em comum com meu pai (o engenheiro civil John Newton Ignatius Hall, que morreu em 1990, aos 68 anos).

 "Às vezes, a vida se sobrepõe ao amor.
 Ainda assim, cantar o amor 
e sonhar com ele é 
o suficiente para mim".

Valor: Resgatando o tema do amor entre pessoas mais velhas, "Um Amor de Vizinha" reforça a safra que inclui "O Exótico Hotel Marigold" (2011), "Amor É Tudo Que Você Precisa" (2012), "Um Plano Brilhante" (2013) e outros. Acha que o público para esse tipo de filme cresceu?
Diane: Acredito que sim. Mas isso não impede algum jornalista de me perguntar de vez em quando como eu me sinto fazendo um filme romântico na minha idade, como se isso fosse algo impossível de acontecer. É muito natural uma mulher mais velha despertar o interesse amoroso de um homem e se sentir atraída por alguém. Na atual fase da minha vida, valorizo todas as histórias que nos encorajam a mudar, independentemente da idade. O problema é que, ao envelhecermos, costumamos ficar ainda mais inflexíveis. Mas acredito em segundas chances, inclusive no amor. E espero que o público também. A vida nunca deve perder sua magia e esperança.

Valor: O tempo mudou sua visão do amor?
Diane: A resposta está em "Um Amor de Vizinha", na cena em que minha personagem, uma cantora prestes a se apresentar em um bar, fala um pouco da música que vai interpretar. Antes de cantar "The Shadow of Your Smile", ela diz: "Às vezes, a vida se sobrepõe ao amor. Ainda assim, cantar o amor e sonhar com ele é o suficiente para mim". Eu me sinto da mesma forma. Enquanto estiver viva, estou aberta às emoções, venham elas das minhas personagens ou das minhas experiências. Seja para viver momentos de alegria ou de tristeza, o que eu quero é viver.
----------------------------
Reportagem  Por Elaine Guerini | Para o Valor, de Los Angeles
Fonte: Valor Econômico online, 29/08/2014

Nenhum comentário:

Postar um comentário