Fernando Gabeira*
Depois de entrevistar uma neurocientista, voltei otimista com o futuro do meu cérebro
De uma certa forma, foi um papo cabeça, pois tratou do cérebro. Fui entrevistar a neurocientista Lúcia Willadino Braga e mostrar como funciona a rede Sarah. O Sarah é um hospital público de excelência que recebe ricos e pobres. Lúcia é sua diretora e foi convidada pelos árabes para trabalhar lá, com orçamento ilimitado para suas pesquisas. Recusou. Num dos intervalos da entrevista, Lúcia mostrou sua pesquisa inédita. Ela mapeou o funcionamento do cérebro de um analfabeto aprendendo a ler.
O resultado, na tela do computador, são algumas formas coloridas do cérebro. Ele mostra como o sangue iluminou uma área quando se tratava de aprender as letras. Mais tarde, duas marcas luminosas indicavam novos pontos de funcionamento do cérebro, para a sintaxe e a gramática.
Comentei com Lúcia o caso de uma neurocientista americana que sofreu um acidente e conseguiu, com o tempo, usar a parte incólume do cérebro para cumprir as funções do lado atingido. Disse que me encantava com a plasticidade do cérebro. Em 90, a ONU criou a Década do Cérebro para estimular os estudos nessa área. Cheguei a comprar uma enciclopédia do cérebro: “The Oxford companion to the mind”. O autor do verbete plasticidade do cérebro não gosta dessa expressão. Ele diz que plasticidade se refere a coisas e o cérebro é um organismo vivo e em constante transformação. Não importa o termo, o mais importante é a opinião de Lúcia: é possível aprender até a morte, há sempre pontos a serem iluminados naquele labirinto que, em certas representações virtuais, parece um quadro abstrato. Voltei otimista com o futuro do meu cérebro. Fui otimista, nos últimos anos de política, quando tratava de assuntos internacionais. Com a ascensão da China, pensei em aprender o mandarim. Cheguei a descobrir um curso em Copacabana.
Hoje poderia estar estudando mandarim em Copacabana. Mas não estou. Saltei fora. Mesmo acreditando na elasticidade do cérebro não posso fugir dos limites do tempo que resta. Optei por um livro em três volumes chamado “Tempo e narrativa”, de Paul Ricoeur. Vale um semestre de mandarim.
A segunda limitação é mais prosaica. A idade exige uma certa atenção com objetos que insistem em desaparecer quando precisamos deles. Uma vez disse que se houvesse vida depois da morte gostaria de saber para onde foram todas as canetas que perdi. Hoje, mais velho, creio que usaria a vida eterna para desvendar também o elo entre as canetas, as chaves e os óculos que não só desaparecem sistematicamente, como, ao que tudo indica, associam-se para esta prática que nos atormentou na Terra. Uma prova de que estão mancomunados é o fato de uma delas aparecer quando você está procurando precisamente a outra. Não é um acaso. A observação cotidiana sugere que funcionam como uma verdadeira unidade de guerrilha, enviando uma vanguarda só para despistar.
Com os tempos modernos, as canetas perderam importância. Mas as chaves e os óculos continuam por aí a mostrar que conseguem desaparecer mais vezes e por mais tempo com o passar dos anos.
Nos últimos anos, com o próprio interesse crescente pelo cérebro, surgiram inúmeros livros dedicados à memória com táticas, exercícios e dietas para prolongá-la. Como esqueço das coisas antes mesmo da Década do Cérebro, desenvolvi um método tosco para lembrar. Por que esquecemos algumas coisas e não outras? Você diria, Freud explica. Mas temo que os ardis da memória transcendam às próprias teorias da psicanálise. Tinha, por exemplo, a tendência a esquecer o nome do pianista de jazz Keith Jarrett. Depois de muito pensar, cheguei à conclusão de que era por causa do th que me obrigava a colocar a língua no céu da boca. Era um tipo de preguiça inconsciente que acabava me dando mais trabalho. Como é mesmo o nome dele? Escritores costumam ter uma angústia comum em noite de autógrafos: lembra meu nome? Vão carregar essa angústia enquanto fizerem noites de autógrafos. Depois dessa conversa no Lago Norte, lembrei-me do autor de origem portuguesa António Damásio, que escreveu, entre outros, “O erro de Descartes”, mostrando que não existe um raciocínio puro sem conexão com o corpo e as emoções.
E percebi como é limitado supor que o cérebro se ilumina apenas com conexões racionais. Lembrei-me do velho médico do filme “Morangos silvestres”, de Ingmar Bergman, muito bem-sucedido na carreira a ponto de receber uma homenagem na Catedral de Lund pelo seu trabalho. Na noite em que recebeu a homenagem, compreendeu que sua vida era vazia por falta de um elo sentimental com as pessoas mais próximas. Os momentos de emoção que viveu em poucas horas o fizeram ver uma sequência de afetos que simplesmente ignorou durante a vida. Se Lúcia fizesse um mapa do cérebro do Isaac Borg, creio, algumas novas áreas iluminadas iriam colorir a tela.
Creio que os dois lados do cérebro se iluminam com as novas descobertas, com o sangue irrigando suas pequenas e escuras cavernas.
No que depender do cérebro, as perspectivas são infinitas. Pena que sejamos finitos e que não exista segurança em nossa existência diante de bandos como esse: o de canetas, chaves e óculos.
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