Camila Jourdan é doutora em Filosofia, coordenadora de pós-graduação
na UERJ e, para a polícia, integrante de uma quadrilha armada. A mesma
quadrilha de Sininho e Bakunin, outros personagens do inquérito que
Camila considera literatura fantástica de má qualidade.
Por determinação de um habeas corpus, responde hoje ao processo em liberdade.
Tem 34 anos, é mãe de uma adolescente e especialista em um ramo da Filosofia conhecido como Analítica da Linguagem.
Desde a Grécia Antiga, muitos filósofos tem sido presos. A Filosofia pode ser perigosa?
Pois é, todos conhecem a famosa citação de Marx, o filósofos teriam
se limitado a interpretar o mundo, seria ainda preciso modificá-lo. A
reflexão, no geral, é sempre perigosa para a ordem estabelecida,
sobretudo quando é radical, isto é, quando se pensa até o fim, até as
raízes das coisas, pois com isso podemos colocar em questão o que é
aceito como dado necessário. Mas não se precisa fazer Filosofia para
isso, muito menos se precisa da academia.
De fato, o que torna a Filosofia tão inócua hoje é justamente esta
separação entre teoria e prática, que precisa ser combatida e que se
relaciona diretamente com outra ideia bastante cara a este inquérito
kafkaniano, a de que haveria aqueles que “agem nas manifestações” e seus
“mentores intelectuais”. Esta construção ficcional da investigação é
fundamental para a criminalização de alguns, para a fabricação de
líderes e, em máximo grau, para tornar o movimento popular que existe
hoje palatável e facilmente destruído. Esta é uma ideia que precisa ser
desconstruída, não é como acadêmica ou intelectual que eu atuo
politicamente.
Bakunim é mesmo um dos suspeitos?
Sim, isso serve como piada, mas mostra muito bem com que tipo de
processo estamos lidando, isto é, baseado em que tipo de inquérito estão
tentando destruir a vida das pessoas. É similar com o que ocorria na
época da ditadura militar, quando tentaram prender Sófocles por conta
das suas peças de teatro subversivas. Mas não deixa de ser uma grande
homenagem: em seu bicentenário, Bakunin continua subversivo e procurado
pela polícia. Agora todos querem saber quem é, afinal, este Bakunin, as
pessoas estão procurando, estão lendo mais sua obra por causa disso, e
isso é ótimo.
Nosso sistema carcerário costuma parecer bastante assustador e desumano, foi assim
na penitenciária de Bangu?
na penitenciária de Bangu?
Acho que o termo ‘desumano’ é ótimo, ser preso significa basicamente, na prática, deixar de ser humano.
Foram feitas denúncias muito graves de espancamento e tortura de
menores numa instituição, outras denúncias ainda precisam ser feitas,
mas o que me espanta é que isto não choca a sociedade, que isso não
aparece como repugnante nos jornais. A sociedade deveria estar se
mobilizando para fechar lugares como aquele ao invés de estarem
preocupados com a livre interpretação de conversas telefônicas
devassadas e descontextualizadas.
Digo isso porque isso está acontecendo agora. Existem crianças sendo
espancadas diariamente em instituições estatais, e todos aqueles que se
calam, que fingem que estas pessoas não existem, que não se movem para
modificar esta sociedade, são coniventes com esta situação.
A polícia mata adolescentes rindo e as pessoas se preocupam com a
violência nas manifestações! Que sociedade é esta? Outra coisa
impressionante é como o sistema prisional e o sistema educacional se
aproximam. Não precisa ler Foucault para concluir isso, basta ter
frequentado uma escola com pedagogia tradicional e depois ser preso.
O sistema prisional leva ao extremo aquilo o sistema pedagógico já
legitima, uma pedagogia do castigo e da culpa, da punição e da dor, da
exclusão, da segregação e da humilhação. Por isso é toda uma sociedade
que é cúmplice da existência de lugares como aquele.
Me impressiona muito que a única atividade permitida para as presas
no presídio seja assistir cultos pentecostais, nos quais são ensinadas
que a única esperança para elas é a salvação divina, nos quais são mais
culpabilizadas por estar ali e ensinadas a se conformar, diante de um
Deus que pune, um Deus que é a imagem e semelhança do Estado patriarcal.
Como sempre, as igrejas servem ao Estado e o Estado ajuda as igrejas a
manterem seus fiéis.
De quais crimes você é acusada? Considera-se culpada de algum?
Eu sou acusada de formação de quadrilha armada, isso seria
simplesmente ridículo se não fosse a óbvia injustiça do estado de
exceção no qual vivemos. Eu faço parte de um movimento político, que
atua em ocupações sem-teto, em favelas, que é bastante ligado à luta por
uma educação transformadora e por moradia, nós fazemos trabalho de
base, divulgamos a proposta política anarquista e o modo de organização
autogestionária.
Também temos alfabetização para adultos, aulas de capoeira, exibição
de filmes, debates. Mas não é um projeto assistencialista, nós
acreditamos na educação como peça fundamental na transformação da
sociedade, negar educação a alguns é um modo de manter a dominação de
classes, de excluir totalmente estas pessoas da autonomia sobre suas
próprias vidas, educar é empoderar, promover um novo modo de educar é
também transformar a sociedade.
Não somos uma organização para cometer crimes, não somos terroristas
como se está tentando fazer crer, somos um movimento social organizado.
Agora, o inquérito afirma que este grupo de educação popular é “uma
fachada para treinar jovens entre 9 e 19 anos para a guerrilha”! Tem
como levar isso a sério por mais de meio segundo?! Esta é mais uma das
muitas piadas de mau gosto do processo.
Como vê a atuação da mídia no caso?
Estamos sendo perseguidos e criminalizados pelas grandes coorporações
porque atrapalhamos seus interesses. Não é de se estranhar que eles
voltem todas as suas armas contra nós e tentem transformar nossas vidas
em um espetáculo exemplar facilmente vendido como mais uma mercadoria. E
as armas são muitas, afinal estamos falando daqueles que exercem
privilegiadamente poder e controle na nossa sociedade, e eles não querem
abrir mão dos seus privilégios, eles utilizam toda sorte de manipulação
e fraude. Isso não me espanta.
O que eles fingem não saber é que o problema não sou eu, não é a
Elisa, não são os demais presos e perseguidos, o problema é todo um
contexto histórico. Mas eles não podem prender e criminalizar todas
estas pessoas, por isso é tão importante focar em alguns, fabricar
líderes. O poder do espetáculo midiático na nossa sociedade é
extremamente forte, por isso eles estão investindo no circo, na
construção de uma realidade fantástica e também por isso é fundamental
que todas as pessoas que nos apoiam se levantem neste momento.
A sociedade precisa tentar refletir para além do espetáculo midiático
porque as vidas de várias pessoas estão sendo destruídas por fofocas e
livre interpretações de conversas telefônicas devassadas e
descontextualizadas antes mesmo de qualquer julgamento.
E da polícia e dos outros poderes do Estado?
A polícia chegou derrubando a minha porta às 6h da manhã e apontando
uma arma para mim e meu companheiro, ele foi algemado. Minha casa foi
revirada, a casa da minha mãe foi revistada. Eu me senti sequestrada,
sequestrada pelo Estado. Mesmo não acreditando no Estado democrático de
direito não dava para acreditar que chegaria a tanto.
Toda a operação é inacreditável, mandados expedidos sem nenhuma prova
concreta, executados de modo totalmente arbitrário, um processo baseado
em depoimentos altamente desqualificados com claro intuito de
prejudicar alguns por questões pessoais, e, claro, tendo em vista evitar
manifestações na final da copa.
Eu sei que o Estado se mantém pela exceção, por isso uso com muita
reserva esta noção, mas o modo como esta operação ocorreu superou todas
as minhas expectativas. O bom é que a máscara de suposta democracia cai,
fica evidente o que é o Estado brasileiro. É até pior do que a ditadura
militar porque se esconde sob a capa de uma falsa democracia.
Tanto faz então quem seja eleito? Parece uma posição radical
aceitar que as urnas não sejam o caminho, parece algo que ainda assusta
as pessoas…
Estamos vivendo uma crise no sistema representativo, é uma crise no
modelo da representação, diretamente relacionada com a chegada da
esquerda partidária ao poder e a confirmação de que isso não mudou nada,
de que aquilo que os anarquistas sempre disseram estava correto: o
próprio sistema impede qualquer mudança, qualquer transformação
substancial.
O processo eleitoral é hoje uma grande briga de corporações
empresariais, é mais um objeto de consumo da nossa sociedade de
espetáculo, e as pessoas sabem que isso não pode trazer transformações
reais. Daí o crescente número de pessoas que não pretendem votar e estas
campanhas desesperadas do governo para evitar isso.
O que o sistema eleitoral faz é tentar canalizar toda a participação
política de um indivíduo na sociedade a qual pertence para uma votação
em uma sigla, só isso. Você vai lá e vota de dois em dois anos, e isso,
dizem, faz com que vivamos em uma democracia. Ora, isso é obviamente
falso, você transforma o cidadão em um consumidor de candidatos, e você
cria uma sociedade alienada das próprias decisões que constituem o seu
modo de vida.
Muitas pessoas não aguentam mais viver assim, drogadas pela mídia
para aguentar uma vida sem sentido na qual você sabe que pra você morar,
outros tantos tem que viver na rua, que pra você consumir, outros
tantos são explorados e não tem direito ao básico.
É você sair de casa de manhã e ver famílias inteiras consumindo lixo e
dormindo ao relento, e ver todo dia o povo ser morto na favela, e as
pessoas tem que fingir que não estão vendo, mas isso destrói todos nós,
não é possível viver numa sociedade como esta sem ser destruído também
porque as pessoas não existem boiando no nada, o ser humano existe
enquanto partícipe de uma comunidade e é isso, de mais básico, que está
em questão.
Mesmo para aqueles que não se dizem anarquistas, nunca se disseram,
não defendem esta posição, esta é uma verdade concreta do momento
histórico que vivemos por isso o anarquismo encontra condições para se
desenvolver hoje, por isso temos tantos ouvidos atentos.
Tomar as ruas em protestos com milhões de pessoas parece não
ter sido suficiente para grandes mudanças. Como espera que as
manifestações se desenvolvam daqui para a frente ?
A transformação de uma sociedade não se faz só com manifestação de
rua, se faz com participação política real na base, com educação
popular, com a construção de territórios autônomos. Mas é também verdade
que as manifestações de rua cumpriram um papel fundamental desde o ano
passado.
Eu sempre penso no ganho político destas experiências independente do
que venha ocorrer daqui pra frente. Existe um ganho político para a
nossa sociedade, um amadurecimento, um empoderamento, que não nos pode
mais ser tirado. Este ganho inclusive não pode ser tirado por nenhuma
criminalização, embora seja isso o que se tenta fazer neste momento.
Nós vivemos em uma sociedade que nunca viveu uma revolução popular,
as mudanças que tivemos sempre foram “herdadas”, mantendo uma mesma
oligarquia. O que houve no ano passado e o que ainda está havendo foi
educativo, todo este processo que estamos vivendo, e é certo que estamos
no olho do furacão, é histórico, nossa sociedade não é mais a mesma,
apredemos muito e isso não pode mais ser tirado.
Nossos netos vão estudar a revolta do vinagre na escola, vão aprender
o que foi a batalha da ALERJ, vão ler sobre este processo kafkaniano
promovido para garantir megaeventos e o lucro de empresários
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