Provavelmente,
para o ser humano que pensa, o mais difícil é aceitar quanto o seu
conhecimento do mundo será sempre apenas parcial, e nessa medida, a
verdade que o conduz será sempre vulnerável ao que não sabe e
desconhece. É esta a limitação que introduz incerteza nas nossas vidas e
leva ao conceito de algo absoluto, exterior a nós, onde as dúvidas não
existem. O que no caso dos gregos antigos é o conceito de Zeus, deus de
poder absoluto que tudo sabe e à sua semelhança fez o homem:
Em ti está a nossa origem; a sorte de ser a imagem de um deus,
só a nós coube, entre tantos seres mortais que vivem e rastejam sobre a terra.
Cito parte da reflexão que o filósofo estóico Cleante de Assos (séc. IV-III a. C.) desenvolve no Hino a Zeus, único texto seu com dimensão chegado até nós, e que a seguir transcrevo em tradução de Maria Helena da Rocha Pereira.
É
um conceito de um deus regulador que o poema desenvolve, a quem se pede
a salvação dos homens da ignorância, e lhes conceda a sabedoria que
permite viver com honra:
salva os homens da funesta ignorância,
sacode-a, ó pai, da sua alma, concede-lhes que obtenham
a sabedoria com cujo apoio tudo governas com justiça,
a fim de que, honrados, te correspondamos com honra,
Pelo meio é dada conta dos comportamentos daqueles para quem esta vontade sobrenatural não faz lei:
São eles mesmos, insensatos, que se precipitam cada um para seu mal,
uns com uma pressa funesta de alcançar fama,
outros voltados para a ganância desordenada,
outros ainda para a licença e os doces prazeres físicos;
É
de novo um entendimento do divino como regulador de comportamentos que
aqui lemos, como também já acontecia com o fragmento de teatro
filosófico de Crítias que em artigo anterior transcrevi. Mas em Cleantes
encontramos não a fala de um ateu, mas um crente agradecido pois
entende-se feito à imagem do deus, no que é a invenção maior da
mitologia grega.
Cleantes de Assos (séc. IV-III a. C.)
Hino a Zeus
Ó mais glorioso dos imortais, deus de muitos nomes e sempre poderoso,
Zeus, senhor da natureza, que tudo governas com leis,
salve! Pois a todos os mortais é lícito falar-te.
Em ti está a nossa origem; a sorte de ser a imagem de um deus,
só a nós coube, entre tantos seres mortais que vivem e rastejam sobre a terra.
Por isso te entoarei um hino e cantarei sempre o teu poder.
A ti obedece todo este mundo que gira em torno da Terra,
por onde quer que o leves, e de boa mente te é submisso.
Seguras nas invictas mãos, como teu servidor,
o raio incandescente e de dois gumes, sempre vivo.
Sob o seu impulso, caminha toda a obra da natureza:
com ele diriges a tua Palavra universal, que passa através de tudo,
misturando-se com o astro luminoso maior, e também com os menores.
Não se faz sobre a terra obra alguma sem ti, ó deus,
nem sobre o etéreo pólo divino, nem sobre o mar,
excepto os actos dos malvados na sua demência.
Mas tu sabes ajustar mesmo o que é discordante
e ordenar o que é caótico, e ódio em ti é amor.
E assim harmonizaste tudo o que é nobre com o que é vil, numa só unidade,
de modo a originar uma Palavra eterna de tudo,
a que fogem aqueles dos mortais que são inferiores,
insensatos, sempre a almejar a posse do bem,
sem verem nem atenderem à lei universal do deus,
em cuja obediência seriam connosco felizes.
São eles mesmos, insensatos, que se precipitam cada um para seu mal,
uns com uma pressa funesta de alcançar fama,
outros voltados para a ganância desordenada,
outros ainda para a licença e os doces prazeres físicos;
procedem sem pensar, arrastados de um lado para o outro,
apressando-se com vigor para que suceda o contrário dos teus desejos.
Mas ó Zeus remunerador de tudo, senhor das nuvens negras e do raio coruscante,
salva os homens da funesta ignorância,
sacode-a, ó pai, da sua alma, concede-lhes que obtenham
a sabedoria com cujo apoio tudo governas com justiça,
a fim de que, honrados, te correspondamos com honra,
cantando sem cessar as tuas obras, como cumpre
a um mortal, já que, nem para homens nem para deuses,
há maior honra do que celebrar sempre a tua lei universal.
in Hélade, 8ªedicao, Edições Asa, 2003.
Abre o artigo um desenho anónimo, atribuido a Peter Paul Rubens (1577-1640) conhecido como o Hércules Farnese.
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Fonte: Víicio de Poesia.
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