Frédéric
Gros*
Carrascos de ontem e torturadores de hoje alegam apenas seguir ordens, diz filósofo francês
A violência se alimenta de grandes paixões negativas: o ódio, a
frustração, o medo, a crueldade...
Ora, o século XX, particularmente,
foi o palco de violências inusitadas. Pense-se primeiro nos dois
conflitos mundiais cujas intensidades e formas foram tão singulares que
representam, para os historiadores, verdadeiras rupturas na História, a
ponto de haver necessidade de construir categorias novas como as de
“guerra total” ou de “guerra civil mundial”. Para além mesmo das
guerras, o século XX fez as experiências dos regimes totalitários, que
igualmente representam rupturas fortes na história das violências
políticas.
Grande
parte da monstruosidade do regime nazista provém da frieza
administrativa com que se decidiu eliminar um povo inteiro. A destruição
dos judeus da Europa, maciça, metódica, fez surgir na consciência
moral, porém, um enigma, que Hannah Arendt tentará problematizar ao
falar da “banalidade do mal” por ocasião do processo Eichmann (enigma
que, aliás, ressurgiu há poucos anos, no momento do processo Duch
[torturador-chefe do regime do Khmer vermelho] no Camboja). Arendt
procura saber se a efetividade de massacres não pode se alimentar também
de disposições éticas como a docilidade e a obediência. Será que há
necessidade apenas de pessoas cruéis para praticar genocídios, organizar
sessões de tortura, aterrorizar populações?
É uma interrogação
terrível e cuja importância para a nossa época é decisiva. De fato, os
carrascos de ontem e os torturadores de hoje se apresentam diante dos
tribunais dos homens, e talvez até diante de sua própria consciência,
declarando que afinal não fizeram outra coisa senão obedecer a ordens.
Tudo se passa como se o fato de obedecer desresponsabilizasse totalmente
os atores, e que, sem ser particularmente cruel ou movido por ódio,
qualquer um pode fazer sofrer a seu próximo coisas atrozes simplesmente
ao obedecer.
Pensadores como Hannah Arendt e Michel Foucault
chegaram a essa amarga constatação: após se descrever a perfeição atroz
dos sistemas totalitários ou dos infernos disciplinares dos séculos XIX e
XX, é preciso ainda explicar o que os tornou aceitáveis nos sujeitos.
Assim, trata-se de problematizar as grandes formas de obediência, a fim
de compreender quais delas permitem aos sujeitos aceitar participar
ativamente das violências políticas. Mas será preciso evocar também as
formas de desobediência que se recusam a isso. Três grandes conceitos
foram elaborados pelo pensamento político: a submissão, o consentimento e
a obrigação. É preciso, enfim, mostrar como, a cada vez, se alojam
nessas noções possibilidades de resistência.
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*Frédéric
Gros é professor da Universidade Paris-Est Créteil (UPEC), autor de
livros sobre psquiatria e filosofia penal e editor dos últimos cursos de
Michel Foucault no Collège de FranceFonte: O Globo online, 17/08/2014
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