As férias deveriam começar com um encontro pessoal, connosco próprios. Essa é a sugestão que o padre Vasco Pinto Magalhães, jesuíta, deixa para qualquer pessoa que inicie um período de descanso. O autor do livro «Só avança quem descansa» diz ainda que mais do que turistas, deveríamos ser peregrinos, para dar valor e espaço ao tempo. Só assim se alcança o verdadeiro repouso, cultivando relações e não fotografias.
Agência Ecclesia (AE) – Que oportunidade oferecem as férias?
Padre Vasco Pinto Magalhães (PVPM) – As férias são uma oportunidade mas
não são uma oportunidade para todos. As férias não são apenas o tempo
de verão; também há grandes férias de inverno. Devia haver férias de
Páscoa. Acho que devíamos rechear todo o nosso tempo de tempos de
verdadeiro descanso.
AE – As férias são mais um estado de alma do que um tempo balizado por estações do ano?
PVPM – As férias deveriam ser a capacidade de criar condições e
concretizar momentos de humanização, momentos de paragem, de respirar,
de digerir, espaços de silêncio e de relação. Sobretudo porque vivemos
um tempo intensivo, onde a quantidade se sobrepõe à qualidade. Acresce a
necessidade de parar, caso contrário mastigamos em seco e não
assimilamos. Este é um dos perigos do nosso tempo, que a quantidade
perverta a qualidade.
Estou convencido que aquilo que nos descansa é a verdadeira relação
humana. Falamos muito uns com os outros, interagimos, mas
relacionarmo-nos é algo que nos pode escapar com grande facilidade. Há
as relações sociais, de trabalho, de família, mas a relação que nos
descansa, que nos faz aceitar quem somos, que nos ajuda a aceitar o
outro – isso, é com certeza, o que mais nos descansa.
AE – Mas a relação faz parte do dia-a-dia normal do ano inteiro…
PVPM – Por isso é que uma pessoa que viva solitária - ainda que no meio
de multidão - se não tiver experiência quotidiana, desgasta-se numa
relação saudável, afetiva, tranquila.
Desde logo a relação consigo próprio. Se eu estou mal comigo, como vou
descansar? Se não me entendo, se estou em conflito com realidades e giro
mal esse conflito; se a pressão é tanta por coisas a mais ou coisas a
menos. Realmente devíamos começar pela relação connosco próprios, para
aprender a descansar.
Não é só ter tempo de férias e ter dinheiro para rumar à montanha ou à
praia. É outra coisa. Nesse sentido depende muito do estado de alma, mas
também de como concretizo e arranjo condições.
Uma coisa é estar nesta paisagem (Casa de Oração de Santa Rafaela
Maria, em Palmela); outra é na Avenida da Liberdade, no meio da
barulheira. Não há dúvida que precisamos cortar para encontrar ritmos
mais humanos.
Toda a nossa vida é rítmica: inspirar e expirar, alimentar-se e
digerir. Mas parece que montamos uma sociedade contra o ritmo, ou ao
ritmo de um computador.
AE – Contra o tempo…
PVPM – A aceleração do progresso hoje, sobretudo no mundo da
comunicação e da informática, é tão grande que humanamente não temos
capacidade para acompanhar. Somos levados pela máquina. Não estou nada
contra o progresso, mas tem uma ambiguidade.
Não sou capaz de dizer se as pessoas hoje se cansam mais ou menos. Mas
há um ritmo mais acelerado, que torna mais difícil encontrar um espaço
para respirar as árvores, ouvir esta cigarra que está aqui ao lado a
cantar.
Há uma ambiguidade no progresso: certamente é uma coisa boa, mas vai
muito à frente da nossa capacidade de o digerir e integrar.
O facto de estarmos sempre contactáveis: não vou dizer que é mau, mas é
perigoso. Há pessoas que já não são capazes de parar. Ficam muito
aflitas: falta-me o telemóvel, tenho de ver os emails, não sei o que está a acontecer.
AE – O período de descanso e de férias pode ser, por isso, um período de ansiedade, de irritabilidade?
PVPM – Esse é um dos grandes perigos e das ambiguidades, provocado pelo
facto de quando começamos as férias não começarmos com descanso.
As férias podem tornar-se numa correria, uma competição, uma ansiedade
para estar em todo o lado, para viver uma série de coisas, encher um
programa incrível. Acaba por ser uma nova canseira. As pessoas regressam
de férias a precisar de respirar, de descanso. Por isso distingo as
férias e o descanso.
Os domingos deixaram de ser tempos de relaxamento, de fazer a síntese,
rever a semana e preparar a próxima. Vamos acumulando. Por vezes digo às
pessoas que não estão em descanso mas em ressaca.
AE – Férias, no latim, significa «dia de festa». Estamos preparados para esse dia de festa?
PVPM – Devíamos estar. Mas a festa supõe um espaço tranquilo de
alegria, uma comunicação, não se faz festa sozinho, porque se perde a
relação.
Podem fazer-se férias sozinho: há a relação com a natureza, pode
visitar-se museus. E pode descansar muito. Mas trata-se de enriquecer-se
de outras relações construtivas. Por isso a arte, a natureza, a
experiência da fé mais desenvolvida, um retiro para comunicar melhor com
Deus, sem ansiedade.
AE – Pode ser um tempo para fazer perguntas?
PVPM – Deve ser. Acho que é mais importante perguntar do que responder.
Estamos sempre à espera das respostas que geram uma grande ansiedade.
«Que resposta é que eu dou a isto?»; mas devíamos antes dizer «que
pergunta é que eu faço a isto?»; «Como é que se resolve isto?»; devíamos
perguntar «onde é que isto em leva?»
Devíamos, desde pequenos, ser ensinados a perguntar, mais do que a
responder. A resposta está ao nível da intelectualidade, na ideia
concebida de que confundimos a vida com um problema. Mas a vida não é um
problema, é um processo. Aos processos interrogamo-los. Os problemas
são teóricos. Eu costumo dizer que a vida não tem solução, mas os
problemas têm solução. A vida tem percursos, desenvolvimentos, ritmos
que vão dando resposta ao crescimento.
Nós não fazemos uma criança crescer metendo-a dentro de um computador,
dando-lhe respostas para as quais ela ainda não tem perguntas. É preciso
que ela tenha perguntas.
AE – Tenha tempo…
PVPM – Tenha tempo. A correria do tempo está a estragar-nos a
capacidade de amar. O tempo e o amor são indesligáveis. Amar é sobretudo
tempo e espera. Se não racionalizamos e torna-se um jogo de conquista
ou sedução. Amar é estar, é colher, dar tempo no momento da entrega.
Christian Bobin, um autor de que gosto muito, dizia que a fadiga bate
fortemente a duas portas: ao amor e ao sono. Na correria e no cansaço
não somos capazes de amar. Fazemos coisas, temos algumas relações, mas o
amor, a amizade, precisa de tempo e, cansados, não somos capazes de
amar.
Dizia ele também que no cansaço fechamos a porta ao silêncio e à
amizade. Porque é que hoje há tantas irritações nas relações humanas,
mesmo nas pessoas de quem se gosta? A relação está viciada pelo cansaço,
por necessidades, por se estar com o pensamento em outro lugar ou
pessoa, por estar a fazer duas coisas ao mesmo tempo. O amor tem de ser
personalizado, tem de estar centrado no outro.
AE – Tem de haver uma partilha de tempo?
PVPM – E acontece isso na amizade. O amor a Deus é uma relação com os
valores, com o absoluto, com a verdade. No meio desta agitação de
estarmos a fazer três coisas ao mesmo tempo, querer responder a
solicitações simultâneas, impressionados ainda com pessoas que não têm
trabalho e férias, que estão sós, a carga é muito forte.
Não abrimos porta ao silêncio que seria condição primeira da relação. O
silêncio é a condição para ouvir e falar melhor. Não é a ausência de
comunicação. Sabemos que no silêncio ouvimos a própria consciência, o
outro, descobrem-se outros níveis. Isso é tão repousante.
Mas as pessoas quando estão muito cansadas desatam a correr. Uma
espécie de tentação de fuga para a frente. Penso muito nisto. Tanta
gente cansada, com depressões que o tempo curava e a relação curaria.
Afinal estão no meio da multidão mas muito sozinhas.
Pessoas em relação
AE – O livro Cântico dos Cânticos deixa indicações sugeridas por
si. «Porque eis que passou o inverno, a chuva cessou e se foi. Aparecem
as flores na terra, o tempo de cantar chega e a voz da rola ouve-se em
nossa terra. A figueira já deu os seus figos e as vides em flor, exalam o
seu aroma.» (CT 2, 10- 14) Este trecho relata um passeio partilhado por
dois amantes que optam por sair para apreciar a beleza da natureza e o
tempo silencioso que a vida pede.
PVPM – É uma relação cheia do ritmo da natureza. Não quer ter frutos no
inverno. Percebe a beleza das estações. Não quer colher fora do tempo.
Também na relação não se pode colher fora do tempo.
O Cântico dos Cânticos é muito bonito porque há afastamento e
aproximação, uma espécie de medo de se perder o outro porque está longe e
não vem na hora que eu queria, mas está para vir. É muito bonito porque
é o grande retrato da relação com Deus. Mas amamo-nos mal.
O Cântico dos Cânticos é a grande metáfora da relação. Sem medo de
perceber que há sentimentos. O que aconteceu com esta história de
andarmos com os sentimentos a explodir ou recalcados? Criamos o que
alguns filósofos chamam de «imotivismo». Não controlamos e vivemos das
emoções; queremos respostas racionais, mas vivemos das emoções. O
«imotivismo» é uma doença do nosso tempo. Tudo se faz por impulso,
emoção e dizemos que temos direito à emoção, ao sentimento, que é uma
grande confusão.
Nesse trecho percebemos que há emoção, mas não separada da inteligência. Perceber os tempos e os modos.
AE – Mostra inteireza?
PVPM – Mostra que, sem estar fechado dentro de si próprio, se está bem
centrado em si mesmo. É uma distinção que gosto de fazer – uma coisa é
uma pessoa fechada no seu umbigo; outra é uma pessoa centrada. Uma
pessoa centrada pode dar-se a si própria ou dar o seu centro a outro;
uma pessoa umbigada não dá nem recebe. Essa está stressadíssima.
Há coisas que hoje dificultam a tranquilidade. As crises económicas e
financeiras, o desemprego- como é que vão ter férias e descanso? É
preciso sabedoria para controlar a ansiedade, quando não se tem dinheiro
para alimentar os filhos. O que é isso de férias? Vai chamar nomes a
outro.
AE – Daí a importância de percebermos as férias independentemente do local onde estejamos?
PVPM – Sim, embora haja locais que ajudam. Nós somos carne e osso,
estamos ligados à natureza, à pressão atmosférica, ao ambiente, tudo
isso nos faz ser quem somos. Seria uma abstração pensar que sou
independente disso tudo. Não sou.
O que não quer dizer que não haja uma construção que vai funcionando à
medida que vou fazendo decisões, que não só impulsos. Organizo as férias
ou deixo correr? Há um certo deixar correr como sinal de liberdade, mas
também não devo ser imprudente, devo planear, mas sem ser escravo.
Há outra doença do nosso tempo que é a competição. Estamos sempre a
olhar para o outro, o outro está a divertir-se e eu não, o outro está
ali e eu não…. A competição que leva à inveja. É das coisas que mais
cansa. Porque é a má relação.
Turistas ou peregrinos?
AE – Nas férias, devemos ser turistas ou peregrinos?
PVPM – Mesmo nas férias devemos ser peregrinos. E não estou nada contra
o turismo, gosto de fazer turismo. Quase todos os anos faço uma viagem
com um grupo. Em breve irei à Sicília, uma ilha que une a história
passada e o futuro. Pensamos na Sicília e nas pessoas que estão a chegar
a morrer no Mediterrâneo.
Fazer férias não nos devia desligar destas duas realidades: das graças e
das desgraças. Deveríamos ligá-las bem. Nesse sentido sou mais
peregrino.
O turista – por vezes digo essa frase – é andar nesta vida usufruindo e
deitando fora o que não interessa. Os turistas que não me levem a mal
porque é muito bom poder viajar e há épocas na vida em que o turismo faz
muito bem, se é bem organizado, se tem um objetivo. Mas se for um
acumular de fotografias… Lembra-me a historinha do japonês que foi
viajar e perguntaram-lhe se tinha gostado. Ele disse: «Não sei, ainda
não vi as fotografias.» Isso é no mau sentido do turista.
O turista, no bom sentido, é peregrino, sabe o valor do tempo, tem
metas, não quer comer tudo de uma vez, trava a gula. Faz uma escolha.
Isso é que descansa. Caso contrário tem-se uma lista imensa de coisas
que se viu e onde se esteve, mas vale a pena perguntar «onde é que
estiveste como pessoa?» Se entraste na competição, podes dizer que já
tiveste em muitos locais, mas não estiveste em lado nenhum.
A vida é por a cabeça no céu e os pés na terra. É viver sem abdicar do espírito e dos objetivos, do querer crescer.
É uma distinção que eu gosto de fazer que parece óbvia mas na prática
não é: crescer e aumentar. Uma pessoa crescida não é uma criança
aumentada; é uma criança que se transformou, morreu, passou a jovem e
agora é adulto. Mas já não é criança.
A nossa tentação do mundo é aumentar: as experiências, o mundo. E há férias que são correr.
AE- A poetisa Adília Lopes diz que «O tempo é templo».
PVPM – Não conhecia e é bem verdade. Precisa do tempo para cada coisa. O
livro do Eclesiastes tem um hino ao tempo. O tempo que vivemos, aquele
que desaproveitamos porque estamos presos ao passado ou cegos com o
futuro.
O nosso templo é o aqui e o agora. É aqui que eu posso por os pés no
chão, encontrar uma pessoa e olhá-la, receber o Espírito, abstrair-me do
que não interessa. Por isso é que a oração descansa imenso.
Naturalmente quando não é uma reza aflita. Mas quando a oração significa
respirar o Espírito, que é vento, respiração, inspirar e respirar. E
por isso não se pode rezar como quem liga um botão, uma máquina, porque
por vezes estamos ofegantes. Precisamos fechar os olhos, tomar
consciência de onde estamos, respirar fundo, procurar o objetivo. E ai a
conversa acontece. Tal como a conversa de duas pessoas, com ritmo. Caso
contrário é uma violência.
Há tanta violência no nosso mundo. Pela negativa e pela positiva. Nós
abrimos um jornal e não nos dá descanso. Os jornais não existem para
isso, mas deviam dar se as noticias não fossem precipitadas. Sobretudo
se não se sobrepusessem. Estamos a cair numa coisa terrível que o Papa
Francisco chamou de «globalização da indiferença». Como acontecem tantas
coisas e ao mesmo tempo, nada vale nada, é tudo igual.
Isto arrasa, nivela por baixo e aburguesa. Tornamo-nos burgueses – pessoas que têm todos os meios, mas já não vibram com nada.
A globalização que é uma coisa boa, acho eu, mas muito ambígua, pela
forma como quer ser alcançada – tudo para todos ao mesmo tempo.
AE – Coloca-nos em relação mas tira-nos as relações?
PVPM – Porque aniquila a diferença. As diferenças é que nos enriquecem.
O Papa Francisco diz uma coisa engraçada, a propósito da globalização e
dos critérios: geralmente pensamos que o ideal da globalização,
enquanto figura, seria a esfera. Mas ele diz que a esfera massifica
porque todos os pontos estão à mesma distância do centro, como se fossem
iguais.
O ideal não é sermos uma esfera mas um poliedro, onde por muitas faces
que existam todas são diferentes. A globalização, quando trata tudo por
igual, destrói a pessoa. O igualitarismo estimula a competição porque
queremos ser diferentes. Devemos sê-lo, penso eu.
AE – Peço-lhe que nos indique algumas dicas para melhor preparar o
tempo de férias. A primeira já a deu, no início da nossa conversa –
marcar esse encontro connosco próprios. Há mais?
PVPM – Pensar que vou para férias não apenas para me distrair mas para
ter a oportunidade de me encontrar. Encontrar-me comigo, com os outros,
com os valores e com o futuro. Viver a comunhão com a natureza, os
outros.
Que as férias não sejam só para distrair no sentido do esquecer a
realidade presente: fazer um intervalo onde não se pense. Não - pensar
em que é que eu vou pensar. Escolher um bom livro, perceber onde vou
ouvir uma boa música, perceber onde, se sou crente, rezar e como. E isso
fazer parte do programa de férias. Seria a dica que eu deixaria.
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Reportagem por Lígia Silveira
Fonte: http://www.agencia.ecclesia.pt/noticias/entrevistas/ferias-lugares-de-encontro/04/08/2014
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