Enterro de Matheus Alves dos Santos, de 14 anos, morto em junho por
policiais militares no Sumaré, realizado no cemitério do Caju, no Rio
O caso ocorreu no bairro dos Jardins, zona nobre da capital paulista.
Era uma manhã totalmente comum na rotina de uma moradora de um edifício
de classe média alta, localizado em algum ponto da alameda Lorena. Na
entrada, cumprimentou o porteiro, como rezam as boas maneiras, e saiu
para seus compromissos cotidianos. Banca de jornais, uma compra ou outra
de ingredientes encomendados pela cozinheira para completar o almoço.
De repente, a mixórdia de gritos, buzinas e correrias até a esquina a
deixou estática ainda na calçada.
Não conseguia identificar com clareza o que estava acontecendo, mas
também teve receio de aproximar-se ainda mais da confusão desconhecida,
anormal para um trecho de rua sempre tão previsível. Eis que surge em
sua frente, atravessando em zigue-zague pelos carros, uma figura
familiar. Ou pelo menos ela assim o considerava até então. Era um seu
vizinho antigo e ela imaginou que, finalmente, desvendaria o mistério e o
motivo da confusão. Mas não. Com as mãos trêmulas, erguidas para ela,
aquele senhor, supostamente tão conhecido, gritava fora de si: "Faltou
pouco para eu dar um soco nele! Faltou pouco para eu dar um soco nele!"
Estava inconformado porque a presa lhe escapara por entre os dedos.
Tratava-se de um garoto. Talvez um ladrão oportunista pego em flagrante
pelos transeuntes, ajudados por seguranças à paisana, bem no momento de
um assalto frustrado. Cercado pela turba em fúria, o rapaz ficara no
chão, chutado e xingado. Livrou-se do linchamento porque a polícia
chegou rápido. Ficou na mente daquela senhora, uma professora
universitária, a imagem daquele vizinho transtornado sem nenhum
resquício que pudesse lembrar o homem educado, cordial, que, durante
décadas, ela julgou civilizado. Estava transmutado pela gana de fazer
justiça com as próprias mãos.
O relato pode soar como ficção, mas é absolutamente verídico. É
apenas um caso de tantos fatos randômicos, para usar a palavra da
modernidade cibernética, que desfilam diante de nós como um catálogo de
episódios de violência. Seu particular entre tantos outros noticiados
todos os dias à exaustão pela mídia é a figura do senhor com sede
vingança. Foi escrito "justiça com as próprias mãos". Mas não é isso.
Justiça, como preza da filosofia do direito, é algo impessoal, regulado
por um estatuto, por agentes de um Estado democraticamente instituído.
Havia algo na mente daquele senhor que o transformou naquela manhã e o
fez acreditar na hipótese de uma violência legitimada pela revolta.
Que sentimento é esse? É ele o responsável pela onda de violência dos
nossos dias? Quanto de humano, de individual, de pessoal abarca a cota
de violência do nosso tempo? Um grupo de acadêmicos, intelectuais e
pesquisadores está intrigado em responder a essas e outras questões
inquietantes da morfologia da violência do século XXI. Se as guerras
entre palestinos e israelenses ou entre russos e ucranianos mundializam o
problema, por outro lado, os esquartejamentos, os casos como o do
menino Bernardo ou o fato de um médico e de um enfermeiro assistirem, na
porta de um hospital, à morte de um homem passando muito mal sem
prestar socorro emprestam um componente pulsional a esses crimes. Do dia
14 deste mês até 8 de outubro, no Sesc Vila Mariana, em São Paulo, o
grupo debaterá o tema, em 22 conferências, na 8ª edição do ciclo
Mutações, tradicional evento criado pelo filósofo Adauto Novaes. Neste
ano o tema é Fontes Passionais da Violência.
A questão é como explicar a violência quando o
indivíduo violento tem acesso às condições que, em tese,
garantiriam a
coesão social
Do ponto de vista da sociologia, evidente, os fatores sociais e
históricos sempre aparecem como protagonista das análises e estudos
sobre a violência. Desde a constituição da ciência social, Émile
Durkheim (1858-1917) enxergou a sociedade como um grande Godzilla a
esmagar qualquer tentativa de uma vontade única do indivíduo. Sua
existência era moldada pelos vários papéis assumidos nos grupos sociais,
pela divisão social do trabalho, que provocaria uma solidariedade
orgânica e garantiria a coesão social, sempre intermediada por regras
resultantes da educação e do direito. O crime ou o suicídio seriam
anomalias com origem na própria constituição do social. Embora com
maiores atribuições ao indivíduo, os outros dois fundadores da
sociologia, Max Weber (1864-1920) e Karl Marx (1818-1883), justificavam
os crimes, a insegurança urbana ou o advento das multidões - a grande
obsessão sociológica - com ênfase maior no entorno socioeconômico.
A questão imposta é como explicar a violência quando o indivíduo
violento tem acesso às condições estabelecidas pelos fatores que, em
tese, garantiriam a coesão social. Não apenas renda. Mas educação,
informação, discernimento do certo e do errado e, apesar de tudo, um
sentimento de raiva, desespero, ódio, incerteza impera sobre seus atos.
"A tendência sempre é esquecer as paixões quando se discute violência,
como se não houvesse o humano, como se o ódio não pudesse se instalar na
mente das pessoas", afirma Novaes. Em sua visão, encontrar saídas para
mitigar a onda de violência depende de uma análise de toda a constelação
de causas.
"Neste momento não são as fontes sociais ou históricas, mas as
pulsionais, que chamam a refletir sobre a natureza constitutiva desse
animal [o homem] para além da sociabilidade", diz o cientista político
Renato Lessa, presidente da Biblioteca Nacional e primeiro conferencista
do evento. Ele esclarece: "Não se trata de opor as causas exteriores e
as interiores; é que mesmo aqueles que tratam do exterior devem
considerar a dimensão da interioridade". Segundo Lessa, nos nossos dias,
é uma obrigação moral dos intelectuais analisar a violência para além
dos lugares-comuns.
Muitas reflexões na literatura das ciências sociais, na filosofia ou
na psicologia foram esquecidas ou carecem de interpretação à luz dos
acontecimentos recentes. Só dessa forma seria possível explicar o avanço
da barbárie nos nossos dias. A intenção desse grupo de intelectuais é
resgatar algo que o pensamento do século XX parece ter deixado de lado,
talvez por medo de ser acusado de ignorar o social em nome do
existencialismo. Lessa cita o economista Vilfredo Pareto (1848-1923)
como exemplo. Mais conhecido por sua teoria da otimalidade econômica -
quando o benefício de um não significa a redução do bem-estar do outro
-, Pareto também sustentou que o comportamento humano - assim como o de
outros animais - abriga um traço pré-cognitivo, um impulso alógico, que
se cristaliza depois com a influência da sociedade, ou seja, do meio
onde vive. É o que Sigmund Freud (1856-1939) chamou de "dimensão
pulsional".
A análise da violência, portanto, estaria contaminada pelo vazio do
sujeito, como se o animal humano não carregasse nenhuma característica
originária sobre a qual a sociedade exerceria seu papel. "É um desafio
para o pensamento contemporâneo explicar por que uma mãe de família sai
para comprar pão, no Guarujá, e é linchada, por exemplo", diz Lessa,
numa referência ao assassinato da dona de casa Fabiane Maria de Jesus,
de 33 anos, cujas imagens do espancamento público circularam pela
internet de forma viral. Qual é o componente humano dessa revolta, seja
para os moradores da periferia do Guarujá ou o senhor da alameda Lorena?
"A revolta nasce do espetáculo da desrazão diante de uma condição
injusta e incompreensível", escreveu Albert Camus (1913-1960) em seu
livro "O Homem Revoltado", uma das tentativas notórias para explicar
esse componente humano da violência. Em "Eichmann em Jerusalém", Hannah
Arendt (1906-1975) elaborou o seu conceito de "banalidade do mal",
quando constatou que a obediência cega jamais pode ser julgada como
neutra porque é um pilar da "burocracia do assassinato". Ou seja,
seguindo o raciocínio de Hannah, um médico, enfermeiro ou qualquer
funcionário de um hospital nunca poderia negar socorro a um ser humano
que agoniza em sua porta com a justificativa de acatar qualquer tipo de
ordem superior ou normativa, sobretudo a falta de uma carteirinha de
plano de saúde em seu bolso.
A análise proposta pelo grupo de Adauto Novaes parte, porém, de uma
evolução histórica para investigar as motivações humanas. Depois de três
dias de discussões internas, os intelectuais estabeleceram a Primeira
Guerra, cujo início completa cem anos, como marco inauguratório de uma
forma de violência ainda perene. "Foi quando o mundo se transformou em
trincheira, quando a guerra não é mais nos campos de batalha, mas passa a
atingir a população civil, isto é, a violência não está mais longe",
explica a professora Olgária Mattos, uma das palestrantes do Mutações
deste ano.
O conflito, o primeiro a ocorrer nos cinco continentes, somou 10
milhões de mortos e 20 milhões de feridos. De acordo com o historiador
inglês Eric Hobsbawn (1917-2012), em seu "A Era do Império", as únicas
quantidades medidas em milhões, antes de 1914, eram na astronomia, no
cálculo da população dos países ou na produção do comércio e das
finanças. Depois da guerra, "nos acostumamos a ter números de vítimas de
tais magnitudes". Além da grandiosidade da catástrofe, Hobsbawm
sublinha um dos pontos mais intrigantes desse momento para a análise da
violência: as hecatombes, no século XIX, se situavam no mundo do atraso
ou da barbárie, fora do âmbito do progresso e da civilização moderna.
Essas atrocidades notadas nos continentes subdesenvolvidos eram vistas
como regressão à selvageria. A guerra de 1914-1918, porém, fez dos
métodos de atrocidade parte integrante do mundo civilizado e encobriram
os avanços contínuos da tecnologia, da razão, isto é, do progresso.
A Primeira Guerra decretou a falência daquilo que o sociólogo alemão
Norbert Elias (1897-1990) chamou de "processo civilizatório". Durante
três séculos, a humanidade apostou que a construção de um arcabouço
social moldaria as relações interpessoais em um ambiente pacífico. "Essa
acumulação civilizatória é destruída pela guerra. As regras, o Estado
democrático, a diplomacia, sobretudo a razão, a educação e, como destaca
Elias, até a etiqueta, as boas maneiras, tudo isso mitigaria as
potencialidades letais do indivíduo", diz Lessa. Segundo Elias, uma
complexa conexão social forjada no ambiente cultural europeu impôs um
autocontrole daquilo que Freud chamou de superego e, assim, arrefeceu o
instinto violento do ser humano, permitindo a harmonia na convivência.
A falência do homem civilizado coincide com o malogro dos políticos e das instituições como mediadoras
da convivência social
Em busca de explicações para esse processo de bancarrota do homem
civilizado, os participantes do Mutações reencontram, de certa forma, as
mesmas causas da Primeira Guerra. Em 1914, o capitalismo experimentou o
apogeu de seu lado imperialista, expansionista e, consequentemente,
bélico. "Desde então, o homem, como observou Walter Benjamim, vai
perdendo o valor da cultura, da educação, da filosofia, daquele verniz
de cultura que determinaria a civilidade e substitui tudo pelo
econômico, esse passa a ser o único valor. Consumir, ter, passou a ser o
padrão comportamental", analisa Olgária. "Quando o econômico é
fetichizado, o conhecimento perde valor e tudo é brutalista."
Nada se tornou mais brutal nesse período pós-civilizatório do que o
tempo. "Aquilo que retarda os resultados econômicos tem que ser excluído
e esse sentimento, muitas vezes subjacente, implícito, desperta paixões
violentas", diz Olgária. Se é preciso consumir muito, há menos tempo
para ganhar dinheiro, logo, desaparece o tempo para reflexão, discussão,
debate. É o sumiço da palavra. "Primeiro é a violência; se não der
certo, negocia." De acordo com Olgária, essa falta de diálogo é também
um desdobramento do "politicamente correto", um tipo de violência
contemporânea. "As pessoas não podem criticar. Dizer, por exemplo, que é
um absurdo metade dos candidatos nas eleições deste ano não ter nível
universitário. Logo a pessoa é classificada de elitista, mas a falta de
preparo para a atividade parlamentar também gera violência."
A política é, portanto, o ponto de chegada na corrida da investigação
de saídas para a violência contemporânea. A falência do homem
civilizado coincide com o malogro dos políticos e das instituições como
mediadoras da convivência social. Na opinião dos intelectuais, sem
resgatar o político será impossível deter a barbárie. Seria
imprescindível repensar o econômico e remodelar as instituições para
trazê-las de volta ao papel de mediação. Em busca da hipertrofia de seus
ganhos, sobretudo financeiros, o econômico sequestrou o político e sua
hegemonia criou um capitalismo de incertezas, volatilidade e
desigualdade. "A imprevisibilidade é a maneira mais difusa com a qual a
violência afeta o seu corpo físico, mas o fato de você se sentir numa
vida imprevisível, isso em si é uma dimensão constitutiva da maior
violência que o ser humano pode sofrer", nota Lessa.
Talvez em nenhuma outra dimensão essa imprevisibilidade se manifeste
com tanta clareza do que no mercado de trabalho. Depois da crise
financeira de 2007, as tendências mundiais foram de incertezas para os
jovens, principalmente na Europa, embora a deterioração das relações
trabalhistas seja notada a partir do fim dos anos 1970. O sociólogo Guy
Standing, autor de "O Precariado - A Nova Classe Perigosa", afirma que
uma vida laboral de adaptação infinita, insegura, constantemente
ameaçada, deteriora o sentido moral. Standing une o indivíduo sem
relação de trabalho formal, o precarizado, com o assalariado, e sustenta
que este é tomado pela raiva e pela revolta em se sentir sempre
explorado ou ameaçado de perder o pouco que tem. "A mente do precariado é
alimentada pelo medo e motivada pelo medo, causando desengajamento
político e intolerância", escreve.
As mutações no mercado de trabalho são uma das explicações para a
deterioração da representação política e da confiança nas instituições.
Elas podem provocar fragmentação dos objetivos, das reivindicações, das
bandeiras políticas. As manifestações de massa também podem ser
reduzidas a meros aglomerados, com poucas chances de obter resultados do
governo, das instituições reclamadas, e ampliam a frustração com o
poder constituído. "Essas diferenças é que precisam ser apagadas, essas
fronteiras da democracia", diz Novaes. "O direito, o Estado, a revolução
não foram eficientes em regular essa igualdade. Convém agora instalar
no centro da política a luta contra as formas de violência."
A questão é que o Estado ainda tem o papel de ser o grande mediador,
mas falha também quando responde à situação de emergência com mais
violência. Essa suposta resposta, como aponta o sociólogo Zygmunt
Bauman, em "O Mal-Estar da Pós-Modernidade", só alimenta a "economia do
cárcere", isto é, toda uma indústria, em numerosos países, que produz
presos e um exército de profissionais que vive deles, como advogados,
servidores públicos e todos os tipos de prestadores de serviço para os
presídios. O Brasil tem a terceira população carcerária do planeta, com
715.655 presos, perde apenas para os Estados Unidos (2.228.424) e a
China (1.701.344).
O problema é que a prisão, aos olhos de grande parte da população, é
insuficiente como penalidade. "Para as pessoas, o Estado prende e solta
ou não dá conta de prender, e a sensação é de insegurança, logo, o
indivíduo dispensa a mediação do Estado e acredita que pode fazer
justiça por conta própria", afirma Ariadne Natal, pesquisadora do tema
linchamentos no Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São
Paulo. Ela analisou 385 casos ocorridos na região metropolitana da
capital paulista em 2009. Muitos casos podem estar subnotificados, pois,
quando a polícia prende uma pessoa como aquele ladrão da alameda
Lorena, em geral, registra o fato como roubo, agressão corporal. "A
própria vítima do linchamento não tem capital social para registrar o
ocorrido."
Os casos de linchamento oferecem mais uma prova da falência do
"processo civilizatório", pois a ideia dos algozes só encontra relação
com a noção de Justiça do período pré-iluminista ou medieval. Remete às
práticas de tortura. "É uma visão que o direito e a Justiça só têm valor
se houver o castigo físico", observa Ariadne. "A violência é vista como
forma de educar e punir. Se isso não acontecer, a justiça não foi
feita. Essa é uma declaração que ficou muito presente nos entrevistados
na minha pesquisa." A socióloga destaca que esse sentimento tem o mesmo
fundamento daqueles que acreditam que a criança deve apanhar para
aprender ou mesmo da pena de morte. Mas, nesse caso, com um agravante.
"Nos países onde a pena de morte é legal, embora seja um ponto polêmico,
a forma é a mais asséptica possível, pelo menos a legislação prega uma
ausência de dor. No linchamento, o objetivo é a exposição social, a dor
física, a ideia de sofrimento."
Na pesquisa de Ariadne, o sentimento de vingança é comum a todas as
classes sociais e níveis educacionais. Essa uniformidade atua também
sobre aqueles que estão no papel de exercer as regras do chamado
"processo civilizatório", isto é, os policiais. Esse é o próximo tema de
pesquisa da socióloga. "O policial também faz a mesma avaliação de que o
Estado e a Justiça não honram o trabalho dele, porque depois liberta o
preso. Então, ele parte para a execução por conta própria", diz, citando
como exemplo o caso dos policiais militares do Rio que foram filmados
ao assassinar um garoto no Alto da Boa Vista (Sumaré).
Outro aspecto contemporâneo é intrigante para os intelectuais
envolvidos na discussão da violência. Assim como as regras de
convivência e regulatórias se mostraram promissoras para frear os
instintos mais primitivos do seres humanos, o processo de esclarecimento
do século XVIII com um maior fluxo de informação racional foi a aposta
de fazer do homem o ser civilizado. Pois justamente no momento em que a
internet permite o maior acesso à informação, provocando uma espécie de
"iluminismo cibernético", é que recrudescem a violência desumana, as
guerras, a carnificina movida pelo ódio.
Seria uma materialização da violência praticamente a todo instante no
espaço virtual quando, por exemplo, alguém bloqueia outro alguém em sua
rede social? "A lei hoje é: se me incomodar, elimino", afirma Olgária.
Talvez esse seja mais um fator a ser levado em conta para conhecer os
motivos intrínsecos ou naturais daquele senhor dos Jardins ávido pela
vingança. Ou para justificar a conclusão de que a violência fez do ser
moderno aquele que sofreu um trauma.
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REPORTAGEM Por Jorge Felix | Para o Valor, de São Paulo
Valor Econômico online, 01/08/2014
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