Roberto DaMatta*
Meu amigo vinha de uma família grande nascida
pelo casamento de viúvos — um amor
instigado pela dama de negro
Fui colega e amigo de um
sociólogo que era fascinado pela morte. Tanto que pretendia, conforme
disse ao nosso professor-orientador, realizar uma “sociologia da morte”.
Ele usava a expressão certo do impacto de sua estranha elegância, como a
acatar a ideia de que a vida das representações coletivas engloba (ou
deveria englobar) a morte, do mesmo modo que uma moeda tem uma cara e
uma coroa, e não seria moeda sem uma delas.
Testemunhei esse
dialogo e jamais esqueci o comentário do mestre, um homem de sucesso,
cujo objetivo na vida era pensar o mínimo naquilo que seria o objeto de
reflexão de um aluno dedicado: “Você — disse ele, que era leitor de
Sartre — tem a morte na alma!”
Era possível. Meu amigo vinha de
uma família grande nascida pelo casamento de viúvos — um amor instigado
pela dama de negro. Crescera ouvindo um folclore macabro de perdas de
tios, contado por sua mãe, a qual havia sido uma atriz de teatro de
futuro, mas cujos filhos e ciúme de um marido que andava armado fizeram
com que desistisse da carreira profissional. Como compensação, ela
transferiu o seu talento trágico para dentro de casa e o seu enredo
favorito era narrar a morte de seus irmãos, sobretudo do que faleceu aos
20 anos de apendicite. No leito de morte, despediu-se do pai, da mãe e
dos irmãos. A cada qual deu a desculpa de todos os mortos: perdoem-me
por morrer... Em seguida, disse que ia sentir uma imensa saudade da vida
que, a despeito de tudo, é extraordinária mesmo no sofrimento. Um outro
detalhe que a mãe elaborava, era a despedida da noiva, a qual ele
libertou lacrimejante — numa cena de cinema — devolvendo-lhe um
pequenino anel de compromisso.
Meu amigo desistiu da sociologia —
era um modo presunçoso e onipotente de ver o mundo, dizia ele —, mas
continuou fascinado por funerais e teorias sobre a morte em diferentes
religiões e sociedades. Foi inspirado em suas notas que, no ensaio “A
morte nas sociedades relacionais: reflexões a partir do caso
brasileiro”, publicado no livro “A casa & a rua”, eu afirmei que,
“no Brasil, a morte mata, mas os mortos não morrem!”
O ponto
central de sua “sociologia da morte” era que o falecimento sendo,
obviamente, o último ato de uma vida, coroava as biografias e criava uma
contradição. Pois a mais importante e perturbadora experiência de toda a
existência humana, a morte, era a única que não podia ser
compartilhada. Daí o seu mistério revestido num silêncio negador da
incessante comunicação que é o centro da vida. Esse compartilhar sem o
qual não há difusão, olhares diferenciados e as fantasias que nos povoam
incessantemente. Sabe-se da morte — mas não se sabe como é morrer
porque a morte abandona a vida, mas continua sendo dela uma parte
essencial. Num mundo interligado, ela é autossuficiente e imune ao
diálogo. Fora da esfera religiosa, ninguém sabe nada da morte.
Há
um elo profundo entre morte e infortúnio. Se a morte é o ato final, há a
obrigação moral de dela dar conta: de compreendê-la e racionalizá-la
para que a vida possa se refazer. A morte repentina é mãe do infortúnio e
da tragédia. Uma pessoa sai para dar uma aula e volta para o velório do
filho. Quando isso ocorre, há o infortúnio penoso de agasalhar dentro
da série de relações rotineiras que tornam o mundo plausível. Por que
aconteceu com ele e não comigo ou com uma outra pessoa? Como equilibrar
moralmente esse contrassenso que rouba não apenas o ente querido e
admirado, mas a própria razoabilidade do mundo? Será que existe mesmo
algum sentido ou tudo é uma invenção que temos o dever de vigiar e
honrar do melhor modo possível, lutando inclusive contra os seus
sabotadores, como o niilismo, o acidente e a corrupção dos que preferem
chafurdar na amplidão da vergonha do que na estreiteza da
responsabilidade?
Se há regras em alguns lugares — se à noite
segue-se o dia; se dou, devo receber —, onde elas foram parar quando o
infortúnio esbofeteia a nossa cara, rompendo o programa? E isso fica
ainda mais patente quando o morto é alguém que eleva as expectativas de
sabedoria ou é porta-voz de bem-estar.
Na morte súbita há uma
cisão entre o extermínio (que apaga) e o morto que se acende e,
luminoso, continua nos corações de quem o amava. Em nenhuma morte,
entretanto, súbita ou lenta, o morto acompanha a morte. Ele sempre fica
na saudade e nas lembranças afetuosas. A diferença é que a morte
inesperada surpreende a vítima em plena atividade, ao passo que a morte
anunciada pela doença ou vingança nada mais é do que mais uma crônica da
vida, como demonstrou García Márquez num livro admirável. Se todos
morremos, todas as mortes são sempre anunciadas. Trata-se de uma questão
de grau e tempo. Conforta-nos o fato de que temos a capacidade de tudo
suportar com resignação, pois somos feitos do cimento humano, que é um
amálgama de anjos e demônios, de impulsos e mandamentos.
Não
preciso mencionar que escrevi pensando na figura de Eduardo Campos, na
sua família, no seu legado e no futuro do Brasil, que não pode continuar
confundindo aparelhagem com administração pública nem teimosia e
corrupção com ideologia.
------------------------ * Roberto DaMatta é antropólogo
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