quarta-feira, 20 de agosto de 2014

UMA SOCIOLOGIA DA MORTE?

Roberto DaMatta*
 
 Meu amigo vinha de uma família grande nascida 
pelo casamento de viúvos — um amor 
instigado pela dama de negro
Fui colega e amigo de um sociólogo que era fascinado pela morte. Tanto que pretendia, conforme disse ao nosso professor-orientador, realizar uma “sociologia da morte”. Ele usava a expressão certo do impacto de sua estranha elegância, como a acatar a ideia de que a vida das representações coletivas engloba (ou deveria englobar) a morte, do mesmo modo que uma moeda tem uma cara e uma coroa, e não seria moeda sem uma delas.

Testemunhei esse dialogo e jamais esqueci o comentário do mestre, um homem de sucesso, cujo objetivo na vida era pensar o mínimo naquilo que seria o objeto de reflexão de um aluno dedicado: “Você — disse ele, que era leitor de Sartre — tem a morte na alma!”

Era possível. Meu amigo vinha de uma família grande nascida pelo casamento de viúvos — um amor instigado pela dama de negro. Crescera ouvindo um folclore macabro de perdas de tios, contado por sua mãe, a qual havia sido uma atriz de teatro de futuro, mas cujos filhos e ciúme de um marido que andava armado fizeram com que desistisse da carreira profissional. Como compensação, ela transferiu o seu talento trágico para dentro de casa e o seu enredo favorito era narrar a morte de seus irmãos, sobretudo do que faleceu aos 20 anos de apendicite. No leito de morte, despediu-se do pai, da mãe e dos irmãos. A cada qual deu a desculpa de todos os mortos: perdoem-me por morrer... Em seguida, disse que ia sentir uma imensa saudade da vida que, a despeito de tudo, é extraordinária mesmo no sofrimento. Um outro detalhe que a mãe elaborava, era a despedida da noiva, a qual ele libertou lacrimejante — numa cena de cinema — devolvendo-lhe um pequenino anel de compromisso.

Meu amigo desistiu da sociologia — era um modo presunçoso e onipotente de ver o mundo, dizia ele —, mas continuou fascinado por funerais e teorias sobre a morte em diferentes religiões e sociedades. Foi inspirado em suas notas que, no ensaio “A morte nas sociedades relacionais: reflexões a partir do caso brasileiro”, publicado no livro “A casa & a rua”, eu afirmei que, “no Brasil, a morte mata, mas os mortos não morrem!”

O ponto central de sua “sociologia da morte” era que o falecimento sendo, obviamente, o último ato de uma vida, coroava as biografias e criava uma contradição. Pois a mais importante e perturbadora experiência de toda a existência humana, a morte, era a única que não podia ser compartilhada. Daí o seu mistério revestido num silêncio negador da incessante comunicação que é o centro da vida. Esse compartilhar sem o qual não há difusão, olhares diferenciados e as fantasias que nos povoam incessantemente. Sabe-se da morte — mas não se sabe como é morrer porque a morte abandona a vida, mas continua sendo dela uma parte essencial. Num mundo interligado, ela é autossuficiente e imune ao diálogo. Fora da esfera religiosa, ninguém sabe nada da morte. 

Há um elo profundo entre morte e infortúnio. Se a morte é o ato final, há a obrigação moral de dela dar conta: de compreendê-la e racionalizá-la para que a vida possa se refazer. A morte repentina é mãe do infortúnio e da tragédia. Uma pessoa sai para dar uma aula e volta para o velório do filho. Quando isso ocorre, há o infortúnio penoso de agasalhar dentro da série de relações rotineiras que tornam o mundo plausível. Por que aconteceu com ele e não comigo ou com uma outra pessoa? Como equilibrar moralmente esse contrassenso que rouba não apenas o ente querido e admirado, mas a própria razoabilidade do mundo? Será que existe mesmo algum sentido ou tudo é uma invenção que temos o dever de vigiar e honrar do melhor modo possível, lutando inclusive contra os seus sabotadores, como o niilismo, o acidente e a corrupção dos que preferem chafurdar na amplidão da vergonha do que na estreiteza da responsabilidade?

Se há regras em alguns lugares — se à noite segue-se o dia; se dou, devo receber —, onde elas foram parar quando o infortúnio esbofeteia a nossa cara, rompendo o programa? E isso fica ainda mais patente quando o morto é alguém que eleva as expectativas de sabedoria ou é porta-voz de bem-estar.
Na morte súbita há uma cisão entre o extermínio (que apaga) e o morto que se acende e, luminoso, continua nos corações de quem o amava. Em nenhuma morte, entretanto, súbita ou lenta, o morto acompanha a morte. Ele sempre fica na saudade e nas lembranças afetuosas. A diferença é que a morte inesperada surpreende a vítima em plena atividade, ao passo que a morte anunciada pela doença ou vingança nada mais é do que mais uma crônica da vida, como demonstrou García Márquez num livro admirável. Se todos morremos, todas as mortes são sempre anunciadas. Trata-se de uma questão de grau e tempo. Conforta-nos o fato de que temos a capacidade de tudo suportar com resignação, pois somos feitos do cimento humano, que é um amálgama de anjos e demônios, de impulsos e mandamentos. 

Não preciso mencionar que escrevi pensando na figura de Eduardo Campos, na sua família, no seu legado e no futuro do Brasil, que não pode continuar confundindo aparelhagem com administração pública nem teimosia e corrupção com ideologia.
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* Roberto DaMatta é antropólogo
Imagem da Internet

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