Eugênio Bucci*
O fato (genuinamente bíblico) de Deus ter criado o
mundo em apenas seis dias é a maior prova de que a pressa é mesmo
inimiga da perfeição. O dito popular está certíssimo. Se o Criador se
permitisse demorar um pouco mais em seus afazeres, talvez uns dois
meses, ou mesmo um ano, os seres humanos não tropeçariam em tantos
defeitos ao longo da existência, o mundo seria melhor, e,
principalmente, os próprios humanos não seriam essa combinação perversa
de maldades cegas, desejos inconfessos e ambivalências indecifráveis.
Como o senhor Deus foi apressado demais em sua cosmogenia, só o que nos
resta é comer cru. Ou comer o pão que o diabo amassou. Sem entender nada
de coisa alguma, buscamos refúgio filosófico nos chavões e ditos
populares – e seguimos em frente que atrás vem gente (muito mais gente,
muito mais imperfeita).
Das coisas imperfeitas deste mundo de Deus, a imprensa talvez seja
hoje a que mais se dedica à pressa e ao erro. Nesse campo, compete de
igual para igual com o mercado financeiro e com os serviços de
emergência em hospitais públicos e particulares. Mas aqui, preste
atenção, aqui não podemos ser assim tão apressados. Vamos entender essa
história com mais cuidado – e mais vagar.
Jornalistas se dedicam ao erro como o mercado financeiro
ou a emergência dos hospitais
Dizer que a imprensa se dedica a erros não quer dizer que ela goste
de cometê- los. Isso ela também faz, mas não por gosto, e sim por força
das contingências. Para a imprensa, a pressa não é um atropelo, um
“esbaforimento” bíblico, como parece ter sido o caso do Gênesis; para a
imprensa, a velocidade, a agilidade, a presteza, isso a que o dito
popular chamaria apressadamente de “pressa”, é uma virtude. Não há
imprensa sem rapidez. Não é por isso, portanto, que os jornalistas
produzem erros em profusão. Eles os cometem por preguiça, distração e,
principalmente, por negligenciar o método que dá o caráter da profissão.
Quando dizemos que o jornalismo tem parte com o erro, não falamos dos
erros cometidos pelo próprio jornalismo. A coisa toda é um pouquinho
pior do que isso: o jornalismo gosta mesmo é dos erros dos outros.
Sempre que surge alguma história com ares de perfeita demais, de uma
perfeição sobre-humana e, também, sobredivina, imediatamente os
jornalistas correm lá e tratam de encontrar um defeito. De preferência,
defeito grave. É nisso que a imprensa é inimiga da perfeição. Aos olhos
dela, a perfeição é sempre uma fachada, uma máscara, um embuste que pede
para ser desbaratado, virado do avesso e, finalmente, exposto à luz do
sol. Diz o Eclesiastes que não há nada de novo sob o sol. Pois os
jornais se ocupam de, todo dia, trazer à luz segredos impróprios, que
sempre são novidades – e novidades desagradáveis.
Com o perdão dos exemplos mundanos, é assim que os repórteres
vasculham e encontram operações esquisitas envolvendo dirigentes da
Petrobras. É assim que descobrem um aeroporto público beirando a cerca
de uma fazenda da família de Aécio Neves, candidato tucano à Presidência
da República. Jornalistas inspiram desconforto nas rodas dos poderosos,
mesmo quando são jornalistas bajuladores. Todos os políticos, de
Trotsky a Obama, sempre desconfiaram de repórteres, e até têm razão. O
bom jornalista só tem compromisso com a luz do sol, em nome do qual se
sente autorizado a trair todos os outros. É exatamente por isso que a
humanidade, miseravelmente condenada à imperfeição, hoje precisa tanto
da imprensa. Mais exatamente, é por isso que a democracia depende da
imprensa.
Num jornalista, esse traço que seria um defeito (mais um) grave em
qualquer ser humano se converte numa virtude inestimável: a indiscrição
sem freios, radical, absoluta. O jornalista não é apenas curioso. Isso
qualquer um pode ser. O jornalista alia a curiosidade humana à
indiscrição institucional. Ele se realiza profissionalmente quando
quebra os segredos alheios – segredos que ocultam não apenas o
imperfeito, mas o malfeito, aquilo que poderíamos chamar de imperfeição
intencional.
É assim que o jornalista pratica o ensinamento de São Francisco de
Assis ao contrário: aonde existe a fé, ele leva a dúvida. A imprensa, em
seu dever de criticar o poder, não cobre exatamente os fatos, mas os
erros que se ocultam sob os fatos. A imprensa dissemina a centelha do
ceticismo. O padroeiro da profissão deveria ser São Tomé, aquele que
duvidou de Jesus Cristo ressuscitado e pediu para ver e apalpar (com
todo o respeito), antes de acreditar. Tudo isso porque, de perfeito,
basta Deus. E porque nem tudo pode ser explicado pelos ditos populares.
--------------------------
*Eugênio Bucci é professor doutor da Escola de Comunicações e Artes (ECA)
e pesquisador visitante do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da
Universidade de São Paulo (USP). É colunista do jornal "O Estado de S.
Paulo" e do site "Observatório da Imprensa". Integrou o conselho curador
da Fundação Padre Anchieta (TV Cultura de São Paulo) de 2007 a 2010.
Autor de livros e ensaios sobre comunicação e jornalismo, foi presidente
da Radiobrás entre 2003 e 2007. Como crítico de televisão e de cultura,
manteve colunas em jornais na "Folha de S. Paulo" e "Jornal do Brasil" e
nas revistas "Veja", "Nova Escola" e "Sem Fronteiras". Na Editora
Abril, foi diretor de redação de revistas mensais e secretário
editorial.
Bucci é graduado em Jornalismo e em Direito pela Universidade de São
Paulo (USP) e é doutor em Ciências da Comunicação, também pela USP.
Fonte: http://www.imil.org.br/artigos/imprensa-inimiga-da-perfeio-ainda-bem/
Imagem da Internet
Nenhum comentário:
Postar um comentário