Especialista norte-americano
Jay Winter descreve como a Primeira Guerra modificou a envergadura dos
conflitos, ao adotar armas de destruição em massa. E a aniquliação dos
restos mortais deu origem a uma crise cultural.
por DW
A Batalha de Verdun, o Holocausto e o 11
de Setembro têm em comum o fato que, de suas vítimas, acabaram ficando
somente os nomes, já que essas catástrofes praticamente não deixaram
restos mortais, afirma o historiador norte-americano Jay M. Winter
Isso modificou as formas de luto
praticadas nas sociedades ocidentais há séculos, exigindo novas formas
de lidar com os mortos. “Os nomes significam tudo. Nós os encontramos em
todo lugar do mundo. Eles representam um caminho para levar os mortos
para casa, num sentido metafórico.” A Primeira Guerra Mundial
democratizou a morte, acredita o historiador.
Deutsche Welle:O senhor é autor de obras importantes sobre a Primeira Guerra Mundial e foi curador de uma exposição a respeito, intitulada Missing sons(Filhos
desaparecidos), na Bundeskunsthalle de Bonn. Em imagens, o senhor
explica a forma duradoura como esse conflito alterou as formas de
prantear os mortos. Seu ponto de partida é a tese que a Primeira Guerra
Mundial significou uma revolução na conduta bélica. Quais seriam as
razões para tal?
Jay M. Winter:A Primeira Guerra Mundial é
o que os historiadores chamam de uma “guerra total”, ou seja, uma
guerra industrializada entre as potências industriais. A produção do
aparato de guerra podia ser multiplicada segundo a demanda, quer se
tratasse de armas ou dos projéteis lançados contra os partidos em
conflito.
Se 10 milhões de pessoas morreram na
Primeira Guerra, foi devido à enorme quantidade de material transformado
em armas, artilharia, gases tóxicos, etc. Nunca tantos haviam morrido
numa guerra, até então. Esse é o ponto em que a guerra se transforma em
algo pior, mais monstruoso do tudo o que jamais se viu.
Em decorrência das novas formas de
combate e do poder de fogo avassalador da artilharia, os restos mortais
dos soldados foram aniquilados. Que consequência isso teve?
O número das vítimas foi altíssimo.
Somente nos primeiros quatro meses do conflito, 1 milhão de pessoas
morreram, sobretudo no front ocidental, mas também no oriental. Era
impossível enterrar esses homens em cemitérios, nos quais mais tarde se
pudesse encontrá-los e identificá-los. Os fronts se modificavam no
decorrer dos choque, os cemitérios se tornavam alvos de guerra, as covas
simplesmente desapareceram.
A ideia de prantear um morto sem ter um
lugar aonde se pudesse ir, sem um corpo para se velar, precipitou os
parentes das vítimas numa crise. Nunca houvera algo assim, antes. O
único paralelo que se pode traçar na história, é com a Guerra Civil
Americana, na qual morreram 800 mil pessoas. Mas na Primeira Guerra
Mundial morreram 10 milhões. Além do volume das mortes em si, houve o
bombardeio dos cemitérios pelo fogo de artilharia. Por fim, não havia os
restos mortais de nem a metade das vítimas. Elas desapareceram,
literalmente.
Ou seja, a Primeira Guerra Mundial não revolucionou somente a conduta bélica, mas também a cultura do luto?
Acima de tudo, a guerra democratizou a
morte. O ano de 1914 marcou o início das mortes em massa. Não são mais
exércitos profissionais que se combatiam, mas sim hordas gigantescas.
Mas a grande dificuldade era o fato de que não havia lugar para o luto.
Como prantear os mortos, quando não há restos mortais ou quando o morto
jaz atrás das linhas inimigas?
Os rituais de luto praticados há séculos
não eram mais cabíveis. Em busca de novas respostas, alguns se voltaram
para práticas bem pouco usuais, como o espiritismo, em que se tentava
escutar vozes os mensagens do além, nas sessões espíritas. Todos esses
são sinais de uma crise cultural.
No Holocausto da Segunda Guerra, na
Guerra do Vietnã ou nos atentados de 11 de setembro de 2001, os mortos
também desapareceram. Trata-se de uma continuidade, que liga a Primeira
Guerra aos nossos dias?
Acredito que o que liga a Primeira Guerra
Mundial ao presente é o culto aos nomes. Os nomes significam tudo. Nós
os encontramos nos memoriais, nas igrejas, na Alemanha, em todo lugar do
mundo. Eles representam um caminho para levar os mortos para casa, num
sentido metafórico.
Na Alemanha, a Primeira Guerra caiu
no esquecimento, de certa forma, obliterada pela Segunda Guerra e o
Holocausto. Como explica isso?
A gama da memória da Segunda Guerra
Mundial é avassaladora. Eu próprio venho de uma família de vítimas do
Holocausto. Como não estou realmente em condições de escrever sobre a
Segunda Guerra, dedico minha vida à pesquisa sobre a Primeira, para
escapar do horror que destruiu a minha família.
É disseminada a ideia que a Segunda
Guerra Mundial foi tão terrível que ofuscou a visão dos acontecimentos
que vieram antes e, de certa forma, também depois. Acho que devemos
considerar essas coisas separadamente, que 1914 foi uma espécie de Urkatastrophe, de “catástrofe primordial”, o começo de um século que traria coisas ainda piores.
O senhor concorda com a tese de que a
Primeira Guerra Mundial marca a ruptura da Europa, e que hoje nós
testemunhamos a reunificação do continente?
Na Primeira Guerra Mundial, foi destruída
a primeira fase da globalização. Agora vivenciamos uma segunda fase da
globalização. A unificação europeia mostra hoje, de certa forma, o que
teria acontecido se a Primeira Guerra não tivesse ocorrido. Mas aí
vieram o ano 1914, a crise econômica mundial, os nazistas. Precisamos de
todo um século para chegar de novo onde já estávamos em 1914.
A crença nos valores militares, a crença
de que Forças Armadas poderiam modificar o mundo num sentido positivo,
levaram a tanto sofrimento, a tamanha perda de vidas. O “experimento
Europa” tem por base a ideia de que, até onde se pode prever, os
Estados-membros nunca empregarão violência uns contra os outros. Em
minha opinião, isso significa que os meus netos viverão num mundo
melhor.
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Fonte: http://hannaharendt.wordpress.com/2014/08/02/primeira-guerra-alterou-formas-de-prantear-os-mortos-afirma-historiador/
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