Sírio Possenti*
Bandeira palestina em ato de apoio na Central do Brasil (RJ)
às vítimas dos ataques de Israel à Faixa de Gaza.
Na mídia, os
combatentes israelenses costumam ser chamados de ‘soldados’ e os do
Hamas, de ‘radicais’.
(foto: Flickr/ Mídia Ninja/ CC BY-NC-SA)
Em sua coluna de agosto, o linguista Sírio Possenti lembra
que muita gente, ao escrever ou falar, pensa que apenas se refere a
coisas, conceitos ou pessoas, esquecendo que a escolha das palavras pode
revelar uma opção ideológica.
Suponhamos (não invento!) que se assiste a um jornal na tevê e o
apresentador dá as últimas informações sobre o conflito entre Israel e a
Faixa de Gaza. Como se ele falasse de Marte, o texto é (menciono só o
essencial, o que, na verdade, se repete dia após dia): “Os soldados israelenses atacaram... e destruíram X túneis”. “Os radicais (ou extremistas) do Hamas revidaram...”.
A notícia pode ser invertida: “Os radicais atacaram e os soldados
revidaram”. O que importa é que as palavras que designam cada grupo são
proferidas como se fossem a simples designação indiscutível de uma
coisa (assim como se chamam os túneis de ‘túneis’, digamos): soldados e
extremistas.
Falta simetria nessa fala: se, de um lado,
há soldados, do outro também os há
(no mínimo, são combatentes)
Acontece que falta simetria nessa fala: se, de um lado, há soldados,
do outro também os há (no mínimo, são combatentes). Mas o jornal faz de
conta que, de um lado, estão soldados e, do outro, radicais ou
extremistas.
Alguém poderia propor uma fala neutra, que os nomearia
simetricamente: de um lado, Israel; de outro, a Faixa de Gaza. De um
lado, o exército; do outro, também. Ou, de um lado, radicais; e do
outro, também. Por que, afinal, o que é um radical?
Acontece que isso não se dá nos discursos reais. Os dicionários podem
dar a definição que lhes aprouver, podem ser até heterogêneos e
contemplar diversas definições. Mas, num jornal, radical é sempre o outro.
Função textual da linguagem
Eventualmente, palavras entram numa sequência de frases para fazer um texto, como nesta notícia antiga:
“Acaba de chegar ao Brasil um medicamento contra a rinite. O antiinflamatório em spray (...) diminui sintomas como nariz tampado e coriza. Diferente de outros medicamentos, é aplicado uma vez por dia, e em doses pequenas. Estudos realizados pela (...), laboratório responsável pelo remédio, mostram que ele não apresenta efeitos colaterais, comuns em outros medicamentos, como o sangramento nasal. ‘O produto
é indicado para adultos e crianças maiores de 12 anos, mas estuda-se a
possibilidade de ele ser usado em crianças pequenas’, diz o alergista
(...), de S. Paulo”.
Os termos ‘medicamento’, ‘antiinflamatório’, ‘remédio’ e ‘produto’
são espécies de sinônimos. ‘O antiinflamatório’, na segunda frase,
retoma ‘um medicamento’, da primeira. É um exemplo de coesão, cuja
matéria-prima é um nome precedido de artigo definido.
A ideologia comparece inevitavelmente
nos textos e, concedamos,
às vezes nem o autor se
dá conta disso
Esse tipo de procedimento serve para fazer textos (é a função textual
da linguagem, segundo o linguista britânico Michael Halliday). O que
quer dizer que existem palavras cuja função básica é organizar
sequências para criar uma unidade de sentido, o texto.
Acontece que não se trata apenas de texto, de uma questão ‘cognitiva’
ou de domínio dos gêneros. A ideologia comparece inevitavelmente nos
textos e, concedamos, às vezes nem o autor se dá conta disso. Sua
ideologia é tão decisiva que ele pode pensar que está falando do mundo
tal como ele é. Não se dá conta de que o mundo dele não é o de todos.
No caso, embora as quatro palavras mencionadas não sejam sinônimas
(na verdade, a relação entre elas é de categorias mais amplas com
categorias menos amplas ou o inverso (medicamento é um tipo de produto
etc.). Aceitemos que, em casos assim, não se revela uma ideologia
explícita.
No entanto, se alguém escrever (ou disser): “O Hamas... Este grupo
extremista / radical / terrorista”, a ideologia está exposta à luz do
dia.
Guerra de palavras
A propósito do conflito, que ainda não acabou (aliás, uma amiga
perguntou: “É um conflito ou uma guerra?”, distinção relevante, porque
há ‘crimes de guerra’, definidos em tratados internacionais, mas não
‘crimes de conflito’ com estatuto similar), as discussões que a mídia
veiculou são interessantes.
Ao lado da terrível guerra (vou chamar
assim), que matou muita gente, houve uma guerra de palavras, ora mais,
ora menos declarada.
O exemplo do começo da coluna parece guerra de guerrilha: a pessoa
faz de conta que não quer nada com nada, apenas quer contar os fatos,
mas os conta de forma tal que ‘mata gente’ de um lado e não do outro.
Mas houve também guerras explícitas, como, por exemplo, entre quem
defendeu que ‘antissionismo’ e ‘antissemitismo’ são a mesma coisa e quem
discordou dessa equivalência (explicando simplificadamente: para
alguns, combater a atual política de Estado de Israel implica
antissemitismo, uma atitude de tipo racista; para outros, significa
apenas combater a atual política de Estado de Israel, que pode mudar
etc.).
Em outros momentos, e a propósito de temas completamente diferentes, a
mesma guerra de palavras já deu as caras. Uma pessoa escreve um texto
‘pensando’ apenas em referir-se a coisas, conceitos ou pessoas, mas
outros veem na escolha das palavras uma opção ideológica.
Há não muito tempo, um colunista escreveu sobre ‘homossexualismo’ e
recebeu críticas, porque esse termo implicaria preconceito; o termo
correto deveria ser ‘homossexualidade’.
De novo: pode parecer apenas uma guerra de palavras, e, às vezes, é
mesmo. Mas isso não significa que seja uma guerra menos mortal, ou
grave, ou agressiva. Quem diz que se trata apenas de questão semântica
não tem ideia do que isso significa.
---------------------------------
* Departamento de Linguística Universidade Estadual de Campinas
* Departamento de Linguística Universidade Estadual de Campinas
Fonte: http://cienciahoje.uol.com.br/22/08/2014
Nenhum comentário:
Postar um comentário