Paulo Ghiraldelli*
Tempo livre – você curtindo ao máximo!
É dos sonhos de Karl Marx aquela
fantástica imagem do homem quase em situação paradisíaca: livre do
trabalho árduo, por meio de um arranjo racional da sociedade e de uma
alta tecnologia, o homem poderia dedicar-se às atividades prazerosas da
pescaria, da pintura, da leitura tanto de dia quanto de noite.
Atualmente há mais gente acreditando em Marx do que em qualquer outra
época. Mesmo sem qualquer vínculo com o marxismo, não vemos como milagre
que nossas tarefas mais pesadas possam ser diminuídas, e que a cada ano
que passa há uma tendência mundial de baixar o número de horas de
trabalho em função do aumento do tempo-livre, ainda que enormes bolsões
de trabalho escravo ou quase existam por aí. O paraíso parece estar ali
no horizonte próximo.
Muita gente hoje tem mais tempo livre
que outros de condição social semelhante no passado, e há também um mais
um sonho no horizonte, vindo do Iluminismo, que se realiza: cada um de
nós está em um mundo mais livre, com capacidade de escolhas e decisões
jamais alcançadas por outros do passado. De certo modo é como se a
figura do sujeito moderno tivesse escolhido os nossos tempos para se
tornar verdade.
Nunca fomos tão ativos e ativistas como
hoje. Nunca fomos tão participantes e participativos como agora. Nunca
tivemos tanto tempo livre para curtirmos e decidirmos o que curtir.
Nosso mundo ocidental aumentou consideravelmente a infância e a
juventude, a fase do não-trabalho. Ampliou tempo livre para os adultos
e, mesmo para os que trabalham, criou situações lúdicas interacionistas
que parecem fazer de nossas vidas quase que um piquenique.
Todavia, essa nossa condição moderna,
com todas essas aparências, não é a de piquenique. Talvez não estejamos
mais aptos para nos servir da figura do Ulisses neurótico e melancólico,
para nos explicar, como fizeram os frankfurtianos. Pode ser que a
figura do sujeito moderno que mais nos explique, hoje, seja a de D.
Quixote, de modo que a subjetividade modelar de nossos dias seja a dupla
formada por ele e seu escudeiro, Sancho Pança. Caso optemos por levar
essa sugestão a sério, poderíamos dizer, junto com Sloterdijk, que a
figura do homem moderno é antes a do histérico do que a do neurótico
obsessivo.
Ulisses se fez homem moderno, sujeito,
na repressão de seus instintos. Foi perdendo prazer e exercendo cada vez
mais sua habilidade de cálculo que ele moldou a razão moderna, interior
ao burguês proprietário, o protótipo do sujeito moderno. Não podendo
fazer o luto dessas perdas dentro de si mesmo, tornou-se ao final um
abnegado do sangue e da limpeza pela violência.
Podemos ver o homem moderno assim, quase como um proto-fascista, da maneira que Adorno e Horkheimer o desenharam?
Caso tenhamos de notar que o paraíso tem
a ver conosco atualmente, que não é algo a ser desconsiderado, então
seria melhor escolher uma figura menos reprimida que Ulisses para nos
representar. Estamos numa época de extravagâncias e de fim da
privacidade. Falamos, gesticulamos e aparecemos. Vamos de joguinho em
joguinho, de selfie em selfie, de gincana em gincana, de
mini-celebridades para mini-celebridades de facebook. Isso somos nós.
Somos altamente criativos no sentido da histeria de D. Quixote. Criamos e
recriamos nossa aventura que é, enfim, uma falsa aventura. Essa
histeria tem a ver conosco. Somos modernos, somos sujeitos, no modelo do
montador de Rocinante.
Nesse mundo em que temos mais tempo
livre, o que fazemos? Será que distinguimos o tempo livre do tempo do
trabalho? Ou será que ambos adquiriram uma certa homogeneidade altamente
realista e, por isso mesmo, surrealista, como na aventura histérica
quixotesca?
Deveríamos trabalhar na hora do trabalho e curtir o lazer na hora do lazer. Mas, podemos
fazer isso? Sim, caso a hora do trabalho implicasse trabalho com
finalidade real, e o lazer como diversão real. Mas, o trabalho, já faz
algum tempo, nada tem a ver conosco. Não digo isso por conta das
questões de alienação, como foram postas pela tríade
Rousseau-Hegel-Marx. Digo isso por conta de que nosso trabalho é
trabalho competitivo em sua essência, mas nenhuma competição está
acontecendo ou pode acontecer. Em um mundo onde as empresas são
monopólios, e a competição nada é senão casas do mesmo dono, ninguém de
fato precisa do trabalho diferente, do trabalhador inteligente e
criativo. Mas não podemos dizer isso para todos. Temos de mantê-los
ocupados e se achando como que educados para a criatividade. Então, o
melhor é ver todos como D. Quixotes, altamente criativos, sim, mas em
aventuras que não acontecem, ainda que, de vez em quando, existam surras
reais para se levar e ladrões para ajudar sem querer. Nas democracias
ocidentais apanhamos na rua e votamos em políticos, afinal!
Desse modo, o sujeito moderno é aquele
que precisa se autodesinibir para passar da teoria à prática, agir e
decidir – isso é certo. Mas, não tendo nenhum elemento em seu interior,
forjado pela preparação real, ou algo que efetivamente possa valer, ele é
deslocado para se aconselhar, para pedir ajuda, para consultar o…
consultor. Nem mais é o ideólogo ou guru que ele busca, é o mero
consultor mesmo. A figura do homem do entretenimento, modelo tirado da
TV e vestido de especialista em gincana, ou então a própria máquina, os
Ipods da vida.
Assim, no trabalho e no lazer o que se
faz é simular a vida, empanturrando-se de jogos. Há jogos para ampliar a
produtividade, há jogos dados pela auto-ajuda para viver bem, fazer
sexo bem e se relacionar bem no trabalho. Há jogos para brincar de deus e
brincar de fiéis, em preços variados. Há jogos que levam a jogos, num
cumprir de metas aleatórias postas pelos descendentes de Mario Brós,
Sílvio Santos, G. W. Bush e Cicciolina.
Nisso, pensar no modelo do melancólico
Ulisses serve pouco. O modelo do agitado e fantástico De la Mancha é
mais propício. Ser moderno em uma modernidade tardia, como a que
vivemos, é estar somente com o tolo Sancho Pança como o que nos liga ao
empírico, à Terra. Afinal, a Terra não precisa de nós. Tudo funciona sem
nós. Temos tudo para estar no sonho de Marx, mas como pesadelo.
Boas férias, ou melhor, bom trabalho, ou
boas … ah, sabe-se lá o que você está vivendo. Tudo existe se você
estiver montado no seu Ipod Rocinante, mesmo quando montado em sua
mulher, ou em seu homem. Ou em seu bofe.
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* Filósofo.Fonte:http://ghiraldelli.pro.br/d-quixote-de-la-mancha-na-sociedade-tempo-livre/
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