B. Piropo*
Na virada do século – ou do
milênio, para soar mais grandiloquente – quando a Internet ainda era uma
novidade para o público em geral (até 1994 ela estava apenas ao alcance
de membros das instituições acadêmicas e militares), um velho amigo e
colega de trabalho, Orlando Eulálio, me olhava de esguelha enquanto eu
punha em dia o correio eletrônico. Suas previsões para o futuro da rede
eram negras. Dizia ele que um meio de transferência de informações de
tão amplo alcance, disponível para toda e qualquer pessoa e com acesso
tão fácil e barato não poderia se manter livre assim por muito tempo.
Que logo seriam impostas barreiras, condições, filtragem de conteúdo,
censura ou simplesmente bloqueio da rede pelos diferentes governos. Era
só esperar para ver.
Eu, por outro lado, argumentava que a
estrutura da Internet foi concebida nos tempos da guerra fria justamente
para evitar que as comunicações nos EUA fossem interrompidas em caso de
ataque nuclear e depois, quando se espalhou pelo mundo, manteve esta
característica de rede quase anárquica, com centenas de milhares de nós
interligados de tal forma que os dados, que procuravam sempre a rota
menos sobrecarregada entre a fonte e o destino, poderiam burlar qualquer
tentativa de bloqueio simplesmente fluindo automaticamente por outra
rota. Sendo o número de rotas praticamente infinito e não havendo um
“centro de comando” ou coisa parecida, não seria possível estabelecer
qualquer controle ou bloqueio sobre ela. E acrescentava que, caso um
governo lograsse sucesso em suas tentativas, os especialistas em redes
sempre conseguiriam contornar o problema restabelecendo inda que
parcialmente a comunicação. Portanto, no máximo, aquilo viraria um
interminável jogo de gato e rato.
Passaram-se quinze anos e
quem inspecionar a situação atual da Internet chegará a uma conclusão um
tanto paradoxal sobre nossas previsões: ambos estávamos certos. Há
governos que conseguiram filtrar o conteúdo da rede dentro de suas
fronteiras, como previu Orlando. Por outro lado, como se viu na recente
primavera árabe, a Internet ainda pode ser uma ferramenta essencial para
que informações sobre o que ocorre em alguns países corram o mundo à
revelia de seus governos ditatoriais, como eu antevi.
Porém o temor dos especialistas é que, nos próximos onze anos, as previsões dele se mostrem mas verazes que as minhas.
Figura 1
Pelo
menos isso é o que se pode concluir dos resultados da prospecção sobre o
futuro da Internet conduzida este ano em conjunto pelo Pew Research Center e pela Universidade de Elon. Os autores classificam o trabalho como “prospecção” (“canvassing”) e não “pesquisa” (“survey”)
porque o universo de onde foi colhida a amostra não foi constituído por
um conjunto aleatório de internautas, como o exigido por um projeto de
pesquisa, mas por um grupo seleto de convidados que pertencem a um
conjunto de especialistas notoriamente conhecidos por sua atuação na
área tecnológica e por terem contribuído com previsões mais acertadas
nas pesquisas anteriores sobre o futuro da Internet conduzidas pelas
mesmas instituições . Ainda assim a amostra não foi pequena: mais de
1.400 especialistas atenderam ao convite e forneceram suas respostas e
opiniões (quem estiver interessado no critério usado para a seleção e em
uma lista parcial de participantes pode encontrar mais informações aqui).
Um (alentado) resumo do projeto e de seus resultados pode ser encontrado no artigo de Janna Anderson e Lee Rainie “Net Threats”
publicado mês passado no sítio do Pew Research Center. É apenas um
resumo, mas levando-se em conta que o trabalho analisou minuciosamente
as respostas de mais de 1400 especialistas, não dá para publicar aqui
sequer um resumo do resumo. Mas tentarei expor pelo menos a forma pela
qual a prospecção foi realizada e as principais conclusões a que
chegaram os responsáveis pelo projeto.
Cada participante
devia responder apenas a duas perguntas. A primeira, a ser respondida
apenas com um “sim” ou “não”, em tradução livre era a seguinte:
Em 2025 haverá significativas mudanças para pior e maiores obstáculos nos meios usados para obter e compartilhar conteúdo “online” em comparação com as formas usadas hoje peias pessoas globalmente conectadas?
… e a segunda, mais curtinha porém diabolicamente mais complicada, foi:
Por favor, elabore sua resposta.
… seguida de uma longa lista de tópicos que deveriam ser analisados para justificar a resposta à primeira pergunta, incluindo “no seu entender, quais são as mais sérias ameaças ao acesso e compartilhamento de conteúdo via Internet”.
Bem,
no caso da primeira pergunta, que admitiu como resposta somente uma
entre as duas alternativas, fica mais fácil resumir o resultado que,
aparentemente foi positivo: apenas 35% responderam “sim” contra
otimistas 65% que responderam “não”. O problema é que – justificando o
“aparentemente” da frase anterior – alguns dos que responderam “não”, na
justificativa de sua resposta informaram que se tratava mais de uma
“esperança” do que de uma previsão, e muitos declararam que gostariam
que houvesse uma terceira opção: “sim ou não”.
Conforme
mencionado acima, não dá nem mesmo para resumir o resumo das opiniões de
mais de mil autoridades mundiais em assuntos da Internet. Mas dá para
transcrever e comentar os quatro tópicos que mais chamaram a atenção dos
organizadores do trabalho não apenas pelo número de especialistas que
os mencionaram como também pelas justificativas por eles oferecida.
Estes tópicos estão listados na primeira página do artigo de Anderson e
Rainie sob o título: “As ameaças à Internet temidas pelos
especialistas”. Aqui vão elas, em ordem de importância:
1
– Ações implementadas por estados ou países por questões de segurança e
controle político redundarão em mais bloqueios, filtragem, segmentação e
“balcanização” (ver adiante) da Internet;
2
– O fato de tomarem conhecimento de que governos e grandes corporações
bisbilhotam o conteúdo que flui pela internet e a real possibilidade de
que o nível de bisbilhotice aumente ao longo do tempo pode deitar a
perder a confiança dos cidadãos na Internet;
3
– Fortes pressões comerciais sobre praticamente tudo, desde a
arquitetura da rede até o fluxo de informações, porão em risco a
estrutura aberta da vida “online”; e, finalmente:
4 – Os esforços para resolver o problema do excesso de informações (TMI ou “Too Much Information”)
pode resultar em um efeito perverso que, em vez de proteger o
internauta da enxurrada de informações, prejudique o compartilhamento de
conteúdo.
Alguns comentários deste vosso amigo e humilde escrevinhador:
Começando
pelo significado do termo “balcanização”, relativamente comum nos EUA
porém raro no Brasil (sim, o vocábulo existe em português). Trata-se de
uma alusão à mutável geografia política da península balcânica,
originalmente parte do Império Otomano e que, a partir do início do
século dezenove, começou a se fragmentar em diversos países, alguns
hostis e pouco colaborativos com seus vizinhos. A fragmentação
recrudesceu no final do século passado ao ponto da região conter hoje
mais de quinze países independentes (vale a pena consultar o tópico correspondente na Wikipedia
apenas para apreciar a animação que mostra as fragmentações, fusões e
novas fragmentações da região). No contexto da pesquisa, ao se referirem
à “balcanização” da Internet, os especialistas expressam o temor de
que, devido à cada vez maior interferência dos governos, a Internet se
fragmente em redes menores, cada uma delas submetidas a regras e
regulamentos diferentes conforme políticas locais.
Já a
possível – e provável – desconfiança dos cidadãos que tomaram
conhecimento das estripulias de alguns governos, notadamente o dos EUA,
espionando tudo o que fluía pela rede, dispensa maiores comentários.
Por
outro lado, o receio das pressões comerciais tem a ver com a crescente
monetização (detesto este termo, mas ele existe em português, está
dicionarizado, portanto não há impedimento para que eu o use, embora a
contragosto) das atividades na rede, que está afetando cada vez mais o
fluxo de informações e conteúdo. Um dos principais temores é que a
ganância venha a interferir com o princípio da neutralidade da rede (se
você não sabe o que é isto, sugiro uma consulta à coluna sobre o assunto,
por mim publicada aqui mesmo em abril passado, posto que a
interpretação literal da expressão nada tem a ver com seu significado
técnico). Além disto, receiam ainda que as rígidas restrições sobre
direitos autorais e patentes, devidas a uma visão de curto prazo que
privilegia o lucro, acabem resultando em prejuízos para o
compartilhamento de informações que podem ser de grande valor futuro.
Quanto à seriedade da questão dos direitos de propriedade intelectual,
basta lembrar a celeuma despertada pela inclusão na coleção de imagens
públicas da Fundação Wikimedia da foto que um macaco tirou de si mesmo
sob a alegação de que, como foi o animal que tirou a foto, o dono da
câmara (o fotógrafo profissional David Slater) não detém direitos sobre
ela. A questão gerou uma ação judicial e, aproveitando enquanto ela está
disponível na coleção da Wikimedia, aqui vai a foto do trêfego primata
com seu sorriso arrebatador, cujo nome não foi divulgado provavelmente
em respeito à sua privacidade.
Figura 2
Mesmo
sem levar em conta suas habilidades como fotógrafo, percebe-se que o
simpaticíssimo animal tem uma indiscutível vocação artística, pois não?
Finalmente,
as preocupações relativas ao último tópico têm a ver com o uso cada vez
mais frequente de filtros de conteúdo que visam poupar o internauta da
enxurrada de informações que a Internet despeja sobre ele. O temor é que
de tanto filtrar, se acabe limitando demais o espectro de informações
que o usuário venha a receber, resultando em um efeito mais prejudicial
do que benéfico, principalmente levando em conta que muitos dos
provedores destes filtros recebem “incentivos econômicos” de empresas
interessadas em que a informação seja apresentada desta ou daquela
forma.
Pois é isso. Como esta coluna está se tornando
demasiadamente longa, sugiro que os interessados nos detalhes consultem o
artigo citado acima. Na verdade, mais do que sugiro: recomendo, e com
veemência.
Porém, para não encerrá-la de forma tão abrupta,
vou fazê-lo citando um trecho da resposta de Robert Cannon, especialista
em direito e políticas da Internet com larga experiência no assunto.
Diz ele:
“Nós já vimos a repetição do mesmo padrão… logo
após a implementação dos primeiros serviços de telégrafo, telefone e
rádio. O início é a era utópica da inauguração dos serviços, saudando a
tecnologia com clamores de paz mundial. Depois, vem a era da competição,
com o surgimento de diversas empresas pequenas que tiram proveito do
novo mercado e da inovação. E por fim vem a era da consolidação, na qual
os vencedores da era da competição se movimentam para garantir suas
posições no mercado e eliminar a concorrência”.
E Cannon encerra seu comentário com:
“Nos serviços de informação, acabamos de entrar na era da consolidação”.
O que pode ser muito bom para algumas empresas. Mas, definitivamente, não é bom para os usuários.
Quanto
a mim, apesar de ninguém ter me perguntado, tomo a liberdade de,
metendo o nariz onde não fui chamado, dar minha opinião. A julgar pelo
que vem acontecendo nestes vinte anos em que venho acompanhando de perto
o que acontece na Internet, que cada vez fica menos lúdica, não sei o
que acontecerá em 2015 no que toca à intervenção do Estado, à falta de
confiança, à tal “monetização” ou ao excesso de informação.
Mas desconfio que ficará bem mais “sem graça” do que é hoje.
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* B. Piropo é engenheiro por profissão, professor por prazer e colunista
de informática por paixão. Escreve sobre computadores desde 1991.
Publica colunas nos jornais Estado de Minas e Correio Brasiliense, no
sítio ForumPCs e mantém o Sítio do Piropo em www.bpiropo.com.br.
Fonte: http://www.techtudo.com.br/artigos/noticia/2014/08/internet-o-que-temem-os-especialistas.html
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