Tatiana Salem Levy*
Ao contrário do que pensam
os fanáticos, não existe
um mal-entendido essencial entre palestinos e
israelenses nem entre árabes e judeus.
Trata-se de uma disputa pela
terra.
Uma disputa dolorosa, legítima para ambos os lados,
que tem num
acordo a única saída possível.
Mas acontece que o fanatismo de um lado e
de outro
termina por ofuscar a palavra e o papel,
fazendo que as armas
se tornem o grande motor do conflito, perpetuando décadas de confronto.
Enquanto escrevo esta coluna, os principais jornais do mundo
anunciam o início de uma trégua de 72 horas entre Israel e Palestina.
Quando ela for publicada, o cenário já será outro. Sem sorte, os ataques
terão sido retomados, de ambos os lados. Com sorte, a trégua terá se
prolongado, o cessar-fogo, se concretizado. Mas, infelizmente, não me
parece provável que em tão pouco tempo a paz já esteja reinando na
região, nem que o Estado palestino tenha sido criado, nem que suas
terras ocupadas tenham sido devolvidas, nem que Israel tenha sido
reconhecido pelo Hamas. Portanto, o pequeno livro "Contra o Fanatismo",
de Amos Oz, continuará sendo leitura obrigatória para quem quiser
entender um pouco mais o conflito que se arrasta há mais de seis décadas
no Oriente Médio. Mas não só: trata-se de um livro para todos os que se
interessam pela natureza do fanatismo, em pequena ou grande escala.
As três conferências reunidas no livro foram proferidas no Fórum de
Literatura da Universidade de Tubingen, na Alemanha, em 2002, poucos
meses após o atentado às Torres Gêmeas, mas continuam atuais e poderiam
ter sido realizadas hoje. Amos Oz, escritor israelense de algumas
obras-primas como "A Caixa Preta" e "O Mesmo Mar" e ativista político,
expõe algumas de suas reflexões sobre a natureza do fanatismo e, em
seguida, aprofunda o conflito entre Israel e Palestina. Vou fazer o
contrário: começar pelo conflito, para em seguida chegar ao fanatismo.
Mais precisamente vou tomar como ponto de partida algumas das reações
que tenho visto proliferar na internet - em comentários nos sites de
jornais, blogues ou Facebook - e me parecem extremamente nocivas. Falo
mais especificamente daquelas que revelam um ódio assustador aos
israelenses, e aos judeus em geral, e daquelas que, do outro lado,
revelam um ódio igualmente assustador aos palestinos e aos árabes em
geral. Ódios esses tomados de clichês e reducionismos que não contribuem
em nada para o que deveria ser o único objetivo da região: a paz. Todos
os que bramem essa raiva deveriam ser obrigados a ler o livro de Oz,
que enfrenta com desenvoltura algumas das certezas inquietantes que se
espalham por aí.
Em primeiro lugar, o conflito israelense-palestino não é tão linear
quanto pode parecer. Embora a principal preocupação dos ocidentais
bem-intencionados seja definir quem é o bom e quem é o mau da fita, a
verdade é que não se trata de um filme de faroeste. "Não é uma luta
entre o Bem e o Mal, mas antes uma tragédia no sentido mais antigo e
rigoroso do termo: um choque entre quem tem razão e quem tem razão, um
choque entre uma reivindicação muito convincente, muito profunda, muito
poderosa, e outra reivindicação muito diferente, mas não menos
convincente, não menos poderosa, não menos humana", define Oz, com
precisão.
Os palestinos estão na Palestina porque essa é a única pátria do povo
palestino, assim como os judeus israelenses estão em Israel porque como
povo, como nação, é o único país que podem chamar de seu. Os palestinos
foram expulsos de suas terras, perderam territórios ocupados por
Israel, assim como foram rejeitados pelos libaneses, os sírios, os
iraquianos e os egípcios. Sobre os judeus, Amos Oz nos conta que, quando
criança, seu pai via as ruas da Polônia cobertas de inscrições tais
como "judeus, vão para a Palestina!" Cinquenta anos depois, quando ele
regressou à Europa, os muros estavam cobertos de inscrições: "Judeus,
fora da Palestina!"
A questão é que, ao contrário do que pensam os fanáticos, nem os
palestinos nem os judeus têm que ir embora. Ao contrário do que pensam
os fanáticos, não existe um mal-entendido essencial entre palestinos e
israelenses nem entre árabes e judeus. Trata-se de uma disputa pela
terra. Uma disputa dolorosa, legítima para ambos os lados, que tem num
acordo a única saída possível. Mas acontece que o fanatismo de um lado e
de outro termina por ofuscar a palavra e o papel, fazendo que as armas
se tornem o grande motor do conflito, perpetuando décadas de confronto.
Segundo Oz, o fanatismo nasce com a adoção de uma atitude de
superioridade moral que impede a obtenção de consensos. Sua essência
reside no desejo de obrigar os outros a mudar, de "melhorar o vizinho,
de corrigir a esposa, de fazer o filho engenheiro ou de endireitar o
irmão, em vez de deixá-los ser". Nesse sentido, o fanático é um ser
generoso, altruísta: está mais interessado nos outros do que em si
próprio, quer nos salvar, nos redimir, nos libertar dos nossos horríveis
valores. Está na sua natureza ser muito sentimental e, ao mesmo tempo,
ele carece de imaginação. Este, para Amos Oz, pode ser um dos remédios
possíveis contra o fanatismo: injetar imaginação nas pessoas.
Sammy Michael, outro escritor israelense, conta uma experiência que
ocorreu com ele num táxi, quando o motorista afirmou que era importante,
para os judeus, matar todos os árabes. Em vez de xingá-lo, Sammy
Michael lhe perguntou: e quem você acha que deveria matá-los? Quem
deveria fazer o trabalho? A polícia? O Exército? O Corpo de Bombeiros? O
taxista coçou a cabeça e respondeu: "Cada um de nós devia matar
alguns". Michael continuou o jogo: então cada um bate na porta de uma
casa e pergunta se o outro é árabe, e se for dispara? E aí, vamos supor
que, quando você vá embora, você ouve o choro de um bebê. Você voltaria
para matá-lo? Sim ou não? Ao que o taxista retrucou: "Sabe, o senhor é
um homem muito cruel".
A estratégia de Michael é justamente injetar imaginação no taxista.
Assim, ele se sente incomodado e pode reduzir o fanático que há dentro
de si. O mesmo tipo de pergunta deveria ser colocado ao ex-membro da
inteligência militar de Israel que recentemente defendeu o estupro das
mulheres palestinas. Ou à deputada israelense que defende a morte de
todas as mães palestinas. Ou aos membros do Hamas que defendem a
aniquilação do povo israelense.
Infelizmente, são esses fanáticos que conduzem a guerra, que
sobrepõem as armas às palavras. Mas aos que não concordam com essa
atitude de destruição de si mesmo e do outro - sejam eles palestinos,
israelenses, europeus, latino-americanos - resta pensar, em vez de
participar de um movimento de inflação do ódio. Por uma defesa parcial
contra o fanatismo, Amos Oz propõe ao menos duas soluções: senso de
humor e capacidade de imaginar o outro. Ele afirma nunca ter conhecido
um fanático com senso de humor nem viu uma pessoa com senso de humor se
converter num fanático, a não ser que tenha perdido o senso de humor.
Podem ser sarcásticos, mas não têm humor, porque humor "implica a
capacidade de rir de si próprio. Humor é relativismo, habilidade de nos
vermos como os outros nos veem".
O outro é sempre a chave para se anular o fanatismo. Imaginar o que o
outro sente, o que outro sentiria, imaginá-lo quando lutamos, quando
nos queixamos e mesmo quanto acreditamos ter 100% de razão. Nesse
sentido, a literatura, embora não seja a resposta, pode trazer um
antídoto contra o fanatismo, visto que estimula a imaginação dos
leitores. Em Shakespeare, por exemplo, toda forma de fanatismo termina
em tragédia ou comédia. Gogol faz os leitores tomarem consciência do
pouco que sabemos, mesmo quando estamos convencidos de ter razão. Kafka
revela como há trevas mesmo quando acreditamos não ter feito nada de
mal. Yehuda Amijai afirma que "onde temos razão não podem crescer
flores". Oz diz que "gostaria de poder receitar simplesmente: leiam
literatura e ficarão curados do fanatismo. Infelizmente, não é assim tão
simples".
A literatura pode não salvar, não pôr fim ao conflito entre esses
dois povos, mas o acordo de paz só será possível se israelenses e
palestinos conseguirem se colocar no lugar do outro. A autoridade
palestina precisa proferir que Israel é a pátria dos judeus israelenses,
por mais doloroso que isso seja. Tal como os judeus israelenses têm que
dizer em alto e bom som que a Palestina é a pátria do povo palestino,
por mais inconveniente que isso lhes pareça. Vai doer para ambos, como
num divórcio. Nenhum dos lados vai estar propriamente feliz. Todos terão
que abrir mão de alguma coisa - Israel dos territórios ocupados, a
Palestina de cidades que não voltarão a ser suas.
Em todo caso, a solução não está nas armas. Nem na opressão, na
exploração, no derramamento de sangue, no terror, na violência. Por mais
insatisfatório que seja, só um acordo trará a paz. Um acordo em que
ambos os povos consigam se colocar na pele do outro. Imagino que possa
haver leitores se dizendo que essa é uma posição pró-Israel demais;
outros, que é muito pró-Palestina. Mas e se pensarmos nela como
pró-Palestina e pró-Israel? E se todos aqueles que se manifestam sobre o
Oriente Médio fossem a favor dos dois povos - será que não
caminharíamos mais depressa em direção à paz?
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* Tatiana Salem Levy, doutora em letras e escritora, escreve neste espaço quinzenalmente
E-mail: tatianalevy@gmail.com
Fonte: Valor Econômico online, 15/08/2014
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