quinta-feira, 21 de agosto de 2014

Eduardo Galeano e um século de desastres


Eduardo Galeano e um século de desastres
Enigmas, mentiras, vidas e morte – de Fidel Castro a Muhammad Ali, de Albert Einstein a bonecas Barbie. Olhando para os desastres do século 20, seria possível irmos além?

Por Eduardo Galeano, em Tom Dispatch, de seu livro “Espelhos – uma história quase universal” | Tradução: Vinicius Gomes


Stalin

Ele aprendeu a escrever no idioma da Georgia, sua terra natal, mas no seminário, os monges o fizeram falar russo.

Anos mais tarde, em Moscou, seu sotaque do sul do Cáucaso ainda o entregava.

Então, ele decidiu se tornar mais russo do que os russos. Não foi o Napoleão, que saiu da ilha de Córsega, mais francês que os franceses? Não foi Catarina, a Grande, que era alemã, mais russa do que os russos?

Então, o georgiano Iosif Dzhugashvili escolheu um nome russo. Ele se autonomeou Stalin, que significa “aço”.

O homem de aço esperava que seu filho fosse feito de aço também: desde a infância, seu filho Yakov foi forjado a fogo e gelo e moldado por marteladas.

Não funcionou. Ele era o filho da mamãe. Aos 19 anos, Yakov não aguentava mais, não podia suportar mais.

Ele puxou o gatilho.

O tiro não o matou.

Ele acordou no hospital. No pé da cama, seu pai comentou: “Nem mesmo isso você faz direito”.

Fotografia: o olho mais triste do mundo

Princeton, New Jersey, Maio de 1947.

Fotógrafo Philippe Halsman pergunta a ele: “Você acha que haverá paz?”

E enquanto o obturador clica, Albert Einstein diz, ou melhor, murmura: “Não”.

As pessoas acreditam que Einstein ganhou o Prêmio Nobel por sua teoria da relatividade, que ele foi o criador da frase “tudo é relativo”, e que ele foi o inventor da bomba atômica.

A verdade é que não deram a ele o Nobel por sua teoria da relatividade, nem pronunciou tais palavras. Tampouco inventou a bomba, apesar de que Hiroshima e Nagasaki não teriam acontecido se ele não tivesse descoberto o que descobriu.

Ele sabia muito bem que suas descobertas, nascidas pela celebração da vida, foram usadas para aniquilá-la.

As idades de Josephine

Aos nove anos de idade, ela trabalha limpando casas em St. Louis, às margens do rio Mississippi.

Aos 10, ela começa a dançar na rua em troca de moedas. Aos 13, ela se casa.

Aos 15, se casa novamente. Do primeiro marido, ela não guarda nem mesmo uma lembrança ruim. Do segundo, ela guarda o sobrenome, pois gosta de como ele soa.

Aos 17, Josephine Baker dança o Charleston na Broadway. Aos 18, ela cruza o Atlântico e conquista Paris. A “Vênus de Bronze” faz sua performance nua, usando nada mais do que um cacho de bananas.

Aos 24, ela é a mulher mais fotografada no planeta. Pablo Picasso, de joelhos, a pinta. Para parecer com ela, as jovens donzelas pálidas de Paris esfregavam creme de nogueira, que escurece a pele.

Aos 30, ela tem problema em alguns hotéis, pois viaja com um chimpanzé, uma cobra, uma cabra, dois papagaios, vários peixes, três gatos, sete cães, uma chita chamada Chiquita, que usa um colar de diamantes, e um porquinho chamado Albert, que ela banha em um perfume Je Reviens.

Aos 40, ela recebe a medalha de Honra da Legião, por seus serviços à Resistência Francesa durante a ocupação nazista.

Aos 41 e em seu quarto marido, ela adota 12 crianças de diversas cores de pele e diversas origens, que ela chama de “minha tribo arco-íris”.

Aos 45, ela retorna aos EUA. Ele insiste que qualquer um, brancos ou negros, se sentem juntos em seus shows. Senão, ela não se apresentaria. Aos 57, ela divide o palco com Martin Luther King e fala contra a discriminação racial diante de um imenso público na Marcha a Washington.

Aos 68, ela se recupera de uma calamitosa falência e no Teatro Bobino, em Paris, ela celebra cinqüenta anos nos palcos.

E ela morre.

O pai do computador

Alan Turing era motivo de piadas por não ser um cara durão, um He-Man com pelos no peito.

Ele choramingava, grasnava, gaguejava. Ele usava uma velha gravata como cinto. Ele raramente dormia e passava dias sem se barbear. E ele corria de uma ponta da cidade para outra enquanto juntava complicadas fórmulas matemáticas em sua mente.

Trabalhando para a inteligência britânica, ele ajudou a encurtar a Segunda Guerra Mundial ao inventar uma máquina que decifrava os impenetráveis códigos militares usados pelo alto comando alemão.

Nesse ponto, ele já tinha sonhado com um protótipo para um computador eletrônico e já tinha estabelecido as fundações teóricas para os sistemas de informações atuais. Depois disso, ele liderou a equipe que construiu o primeiro computador a operar com programas integrados. Ele jogou intermináveis partidas de xadrez contra o computador e perguntava a ele questões que enlouqueceram a máquina. Ele insistia que o computador lhe escrevesse cartas de amor. A máquina respondeu emitindo mensagens que eram bem incompreensíveis.

Mas foi a polícia de carne e osso de Manchester que o prendeu em 1952 por indecência.

No julgamento, Turing alegou ser culpado por ser homossexual.

Para ficar fora da cadeia, ele aceitou passar por um tratamento médico que o curasse de sua aflição. O bombardeio de drogas o deixou impotente. Seios cresceram nele. Ele ficou recluso e deixou de ir à universidade. Ele ouvia sussurros, sentia olhares às suas costas.

Ele tinha o hábito de comer uma maçã antes de ir dormir.

Em uma noite, ele injetou a maçã com cianeto.

Imperador Vermelho

Eu estava na China três anos antes do fracasso do Grande Salto para Frente. Ninguém fala a respeito. Era um segredo de Estado.

Eu vi Mao prestar uma homenagem a Mao. Na Praça Tiananmen, o Portal da Paz Celestial, Mao presidiu diante de uma imensa parada, liderada por uma imensa estátua de Mao. O Mao de gesso mantinha sua mão no alto, e o Mao de carne e osso respondia ao gesto. Em um oceano de flores e balões coloridos, a multidão reverenciava os dois.

Mao era a China e a China era seu reino. Mao exortava a todos a seguirem o exemplo dado por Lei Feng e Lei Feng exortava a todos que seguissem o exemplo dado por Mao. Lei Feng, um jovem comunista de existência dúbia, passava seus dias consolando os doentes, ajudando as viúvas e dando sua comida aos órfãos. Em suas noites, ele lia os trabalhos completos de Mao. Quando dormia, ele sonhava com Mao, o seu guia para cada passo. Lei Feng não tinha namorada, nem namorado, pois ele não perdia tempo com frivolidades e nunca ocorreu a ele que a vida pode ser contraditória ou a realidade, diferente.

Fidel

Seus inimigos dizem que ele foi um rei não coroado que confundiu unidade com unanimidade.

E, nisso, os seus inimigos estão certos.

Seus inimigos dizem que se Napoleão tivesse um jornal como o Granma, os franceses nunca teriam ouvido falar do desastre de Waterloo.

E, nisso, os seus inimigos estão certos.

Seus inimigos dizem que ele exerceu o poder falando muito e ouvindo pouco, pois ele era mais acostumado a ouvir ecos do que vozes.

E, nisso, os seus inimigos estão certos.

Mas algumas coisas que seus inimigos não dizem: não foi para posar para os livros de História que ele estufou o peito contra a munição dos invasores; ele encarou furacões como um igual, de furacão para furacão; ele sobreviveu 637 atentados contra sua vida; sua energia contagiosa foi decisiva para tirar o país da condição de colônia; e não foi por conta de uma maldição do diabo ou por um milagre de deus, que o novo país conseguiu sobreviver a dez presidentes dos EUA, com seus guardanapos no colo, prontos para devorá-lo com garfo e faca.

E seus inimigos nunca mencionam que Cuba é um dos raros países que não competem na Copa do Mundo dos Capachos.

E eles não dizem que a Revolução, punida pelo crime de dignidade, é o que conseguiu ser e não o que desejava se tornar. Nem dizem que a muralha, separando desejo de realidade, cresceu ainda mais e mais graças ao bloqueio imperial, que sufocou a democracia “à cubana”, militarizou a sociedade e deu à burocracia – sempre pronta com um problema para cada solução – o álibi que precisava para justificar e se perpetuar.

E eles não dizem que, apesar de toda essa tristeza, apesar de toda agressão externa e o alto controle interno, essa aflita e obstinada ilha criou a sociedade menos desigual na América Latina.

E seus inimigos não dizem que sua proeza veio do sacrifício de seu povo e, também, da vontade teimosa e do velho senso de honra do cavaleiro que sempre lutou do lado dos perdedores, como seu famoso colega nos campos de Castile.

Ali

Ele foi uma borboleta e uma abelha. No ringue, ele flutuava e picava.

Em 1967, Muhammad Ali, nascido Cassius Clay, se recusou a vestir um uniforme.

“Não tenho nada contra nenhum vietcongue”, ele disse. “Nenhum vietnamita nunca me chamou de ‘preto’”.

Eles o chamaram de traidor. Eles o sentenciaram a cinco anos de prisão e o barraram de lutar boxe. Eles tiraram seu título de campeão do mundo.

A punição se tornou seu troféu. Ao lhe tirarem a coroa, eles o transformaram em rei.

Anos depois, alguns estudantes universitários lhe pediram para recitar alguma coisa. E, para eles, improvisou o poema mais curto na história da literatura:

“Eu, nós”.

Muros

O Muro de Berlim foi notícia todos os dias. Da manhã até a noite, nós líamos, víamos, ouvíamos: o Muro da Vergonha, o Muro da Infâmia, a Cortina de Ferro…

No final, um muro que merecia cair, caiu. Mas outros muros brotaram e continuaram brotando ao redor do mundo. E, apesar de serem muito maiores que aquele em Berlim, nós raramente ouvimos sobre eles.

Pouco é dito sobre o muro que os EUA estão construindo ao longo da fronteira com o México, e menos ainda é dito sobre as barreiras de arame farpado cercando os enclaves da Espanha em Ceuta e Melila, na costa africana.

Praticamente nada é dito sobre a Muralha na Cisjordânia, que perpetua a ocupação israelense em terras palestinas e será 15 vezes maior do que aquela em Berlim. E nada, absolutamente nada, é dito sobre o Muro de Marrocos, que perpetua o controle das terras natais dos nativos do Saara pelo reino de Marrocos, e é 60 vezes o comprimento do Muro de Berlim.

Por que alguns muros são gritantes e outros são mudos?

Barbie vai à guerra

Existem mais de um bilhão de Barbies. Apenas os chineses as superam.

A mais amada mulher do planeta nunca nos decepcionaria. Na guerra contra o mal, a Barbie se alistou, bateu continência e marchou para o Iraque.

Ela chegou ao fronte usando uniformes sob medida para operações em terra, água e ar – revisados e aprovados pelo Departamento de Defesa dos EUA.

A Barbie é acostumada a mudar de profissões, estilos de cabelo e roupas. Ela foi uma cantora, uma atleta, uma paleontóloga, uma ortodontista, uma astronauta, uma bombeira, uma bailarina, e quem sabe mais o quê. Todo novo trabalha exige um novo visual e um guarda-roupa novo para que toda garota no mundo seja obrigada a comprar.

Em fevereiro de 2004, a Barbie quis mudar de namorados também. Por quase meio século, ele se manteve de maneira estável com Ken, cujo nariz é a única protuberância em seu corpo, quando um surfista australiano a seduziu e a convidou a cometer o pecado do plástico.

Mattel, a fabricante, anunciou uma separação oficial.

Foi uma catástrofe. As vendas caíram. A Barbie podia mudar ocupações e vestuário, mas ela não tinha direito algum de dar o mau exemplo.

A Mattel anunciou a reconciliação oficial.

Guerras mentirosas

Campanhas publicitárias, esquemas de marketing. O alvo é a opinião pública. Guerras são vendidas da mesma maneira que carros: através da mentira.

Em agosto de 1964, o presidente norte-americano Lyndon Johnson acusou os vietnamitas de atacar dois navios de guerra dos EUA no Golfo de Tonkin.

Então, o presidente invadiu o Vietnã, enviando aviões e tropas. Ele foi aclamado por jornalistas e políticos, e sua popularidade disparou. Os democratas no poder e os republicanos fora do poder se tornaram um único partido unido contra a agressão comunista.

Depois de a guerra ter massacrado vietnamitas em grandes números – a maioria sendo mulheres e crianças – o secretário de defesa, Robert McNamara, confessou que o ataque no Golfo de Tonkin nunca ocorreu.

Os mortos não voltaram à vida.

Em março de 2003, o presidente norte-americano George W. Bush acusou o Iraque de estar prestes a destruir o mundo com suas armas de destruição em massa, “as armas mais letais já construídas”.

Então, o presidente invadiu o Iraque, enviando aviões e tropas. Ele foi aclamado por jornalistas e políticos, e sua popularidade disparou. Os democratas no poder e os republicanos fora do poder se tornaram um único partido unido contra a agressão terrorista.

Depois de a guerra ter massacrado iraquianos em grandes números – a maioria sendo mulheres e crianças –, Bush confessou que as armas de destruição em massa nunca existiram. “As armas mais letais já inventadas” foram seus próprios discursos.

Na eleição seguinte, ele foi reeleito.

Em minha infância, minha mãe costumava me dizer que a mentira tem perna curta. Ela estava mal informada.

Enigma

Eles são os membros mais importantes de nossa família.

Eles são glutões, devoradores de gás, petróleo, milho, cana-de-açúcar e qualquer outra coisa que surja em seu caminho.

Eles mandam em nosso tempo: os banhando, os alimentando, os abrigando, falando sobre eles e abrindo caminhos para eles.

Eles se reproduzem mais rápido que nós, e são 10 vezes mais numerosos do que eram meio século atrás.

Eles matam mais pessoas que guerras; não, ninguém condena os assassinos, muitos menos os jornais e canais de televisão que vivem de suas propagandas.

Eles roubam nossas ruas. Eles roubam nosso ar. Eles riem quando nos ouvem dizendo “Eu dirijo”.

Achados e perdidos

O século 20, que nasceu proclamando a paz e a justiça, morreu banhado em sangue. Ele nos passou um mundo muito mais injusto daquele que herdou.

O século 21, que também nasceu enaltecendo a paz e a justiça, está seguindo os passos de seu predecessor.

Na minha infância, eu tinha certeza que tudo que se perdia no mundo acabava indo parar lá em cima, na Lua.

Mas os astronautas não encontraram nenhum sinal de sonhos perigosos ou promessas quebradas ou esperanças traídas.

Senão na Lua, onde elas podem estar? Talvez ela nas nunca tenham se perdido. Talvez elas estejam escondidas aqui na Terra. Esperando.
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Fonte:  http://www.revistaforum.com.br/blog/2014/08/eduardo-galeano-e-um-seculo-de-desastres/

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