Nascido em 26 de agosto de 1914, o escritor argentino Julio Cortázar
considerava a literatura "uma empresa de conquista verbal da realidade".
Antes das palavras, a realidade é amorfa e difusa, não apresenta formas
precisas, não tem um rosto. Só as palavras lhe conferem uma fisionomia.
Mas é a literatura - palavras potencializadas em um estilo - que lhe
sopra vida e contorno. Em célebre ensaio sobre a situação do romance,
Cortázar escreve: "A literatura vai apoderando-se paulatinamente das
coisas e de certa forma as subtrai, roubando-as ao mundo". A literatura
é, pois, uma conquista do real. Cada vez que um leitor lê uma ficção,
contudo, essas mesmas coisas são devolvidas ao mundo, agora
potencializadas. Para Cortázar, a literatura é uma máquina de energizar e
impulsionar a realidade.
Mais do que interessada nas grandes coisas e nos grandes
acontecimentos, a ficção se debruça sobre as coisas próximas e os
aspectos singulares do homem. Com isso, ajuda a traçar um semblante do
humano, com seus paradoxos, incoerências e desacertos. "A literatura se
empenha na batalha pelo indivíduo humano, vivo e presente, você e eu,
aqui, agora, esta noite, amanhã", prossegue Cortázar no mesmo ensaio,
guardado em "Valise de Cronópio", livro publicado no Brasil em 1993 pela
editora Perspectiva. Os grandes temas interessam à ciência, à
filosofia, às religiões. À ficção importam as miudezas que, sem alarde e
sem escândalo, desenham nosso dia a dia sobre o planeta.
Para Cortázar, um mundo mudo e sem palavras está à espera da
literatura para ser enfim descoberto e conhecido. Para que nos apossemos
dele. No centro desse mundo, porém, está o próprio homem. Diz Cortázar:
"Nada é mais importante do que o homem como tema de exploração e
conquista". A ficção é a posse do imperfeito, do incompleto, do difuso -
dos pequenos sinais que desenham nossas pequenas vidas. Conquista, até,
daquilo que não se deixa conquistar. Para o escritor argentino, à
ficção cabe perguntar como é esse homem e por que ele é como é. Cabe
interrogá-lo e agitá-lo, e não apenas representá-lo.
"Escrever, para mim, é tentar sonhar, é uma
tentativa de romper barreiras.
Acontece, às vezes, que ao escrever
algumas janelas se abrem", disse Cortázar
Enfatizava Cortázar, assim, a importância do pensamento na ficção.
Sábia lição ainda hoje, tempos em que muitos escritores se guiam por
padrões pragmáticos - escrevem para o mercado, pensando nas traduções
para o exterior, nas adaptações para o cinema, nas listas de mais
vendidos e nos prêmios. Pensando, enfim - e antes mesmo do contato com o
texto vivo -, nas vantagens que a literatura pode lhes trazer.
Predomina, assim, uma visão utilitária da literatura, vista, antes de
tudo, como uma atividade geradora de riquezas e de bens materiais. Daí a
importância de um reencontro com Julio Cortázar. Para ele, a literatura
era, antes de tudo, aventura secreta e exploração íntima. "O romance
supõe a procura com seu impuro sistema verbal do impuro sistema do
homem." Tudo muito distante da busca frenética do "benfeito", do
impecável e dos clichês da moda que caracteriza o contemporâneo.
Daí a importância de reler Cortázar. De voltar sempre a ele. Em vez
de uma ficção clara - e a clareza tornou-se um deus contemporâneo -,
Cortázar nos propôs uma literatura de grande tensão existencial, que vem
menos para explicar ou para iluminar e mais para se aprofundar nas
complexas coisas humanas. Uma literatura que deseja ver não o geral, mas
o particular e suas feridas insubstituíveis. Em vez de se preocupar com
a construção de um homem perfeito, a ficção de Cortázar nos leva a cair
em nós mesmos, a nos defrontar com nossos limites e nossas
insuficiências. Trata-se de uma arte que busca o sumo da existência,
desprezando a performance impecável, os padrões de consagração e
qualquer utilitarismo.
Tudo depende, sempre, da maneira de olhar - e se há algo que Julio
Cortázar nos ensinou foi a desdobrar e multiplicar nosso olhar. Daí a
importância que ele atribuiu às inovações formais, instrumentos para
revirar e interrogar esse homem que, visto a distância, parece sempre
tão banal e tão igual. Ter um estilo é produzir certa tensão sobre seu
objeto, de modo que ele se desmascare enquanto coisa singular. É tocá-lo
com certa intensidade e de certa maneira, de modo que ele se revele
único e insubstituível. Um romance fabuloso como "O Jogo da Amarelinha",
que o escritor argentino publicou em 1963, seria outro livro se a mesma
história fosse escrita de outra maneira. Se Cortázar não tivesse optado
por uma arquitetura tão arriscada e surpreendente. Admitia (ele que,
mais de uma vez, se declarou "um sentimental") que, nessa aposta na
forma, se esconde uma postura romântica - uma firme escolha do que o
homem tem de mais espontâneo e de mais ímpar. É, de novo, uma luta pela
forma - uma luta de conquista verbal - que ele nos propôs. Escrever
ficção é usar de instrumentos frágeis para se apoderar de uma realidade
que é mais frágil e arredia ainda.
Por isso, para Cortázar, o escritor pode ser tudo, menos indiferente
ao real. Sofreu para produzir suas ficções: adoecia, agoniava-se,
sucumbia ao próprio esforço; e por isso, ao se defrontar enfim com o
texto pronto, experimentava uma espécie íntima de libertação. Falava no
"efeito psicoterápico" do texto, não só para quem lê, mas, sobretudo,
para quem escreve. Estamos todos, sempre, em desajuste com o real.
Estamos todos deslocados, enviesados - não há correspondência precisa
entre o homem e seu mundo, não há coerência e uniformidade. É com esse
deslocamento primordial que Cortázar trabalha. Para realizar seu ofício,
o escritor se apropria desse desvio - dessa posição inclinada e torta
que todos temos diante do real - para transformá-la em objeto de
potência. Do que temos de imperfeição, a ficção arranca não o perfeito -
porque este não lhe interessa -, mas a força do particular.
Por isso, porque perseguiu novas posições e novos olhares, Cortázar
experimentou a literatura como um jogo. Um jogo árduo, mas também
divertido, que o escritor joga com as peças do real. Não há um acordo,
não há solução - não existe nada que se pareça com um vencedor. Jogo sem
vitórias, ele é uma espécie de dança, que dinamiza nossa relação com a
realidade, que a eletriza. Daí a necessidade de alguns elementos, que
ele julgava fundamentais, como o humor, a ironia e a leveza. Só com eles
um escritor consegue suportar a fratura que o separa do mundo - e tirar
algo dela. Consegue atravessar seu texto e sobreviver.
A vida é cheia de surpresas e de choques. Dizia Cortázar - em longa
entrevista a Ernesto Bermejo, publicada pela Zahar ("Conversas com
Cortázar", 2002) - que estamos todos sujeitos à ação de "invasões
inexplicáveis". Declarou a Bermejo: "Eu tenho sido invadido por
concatenações instantâneas, vertiginosas, entre coisas heterogêneas que
entram no campo do meu sentido. E isso acontece sempre em momentos de
distração".
Quando estamos muito lúcidos, isto é, aferrados à razão, a mente se
enrijece, tornando-se uma espécie de capacete que bloqueia o contato com
as interferências criativas. Defendia Cortázar, ao contrário, a
importância da distração como elemento fundamental da criação literária.
Necessidade de estar um tanto desatento e alheado, isto é, desarmado,
para que, enfim, a realidade tome novas formas e possamos acessá-las por
novas portas de entrada. É da surpresa e do choque que um escritor tira
suas ficções. Daí lhe ser estranha a ideia de um esquema, de um
planejamento organizado ou de um cronograma. A renovação do olhar é
menos fruto de uma preparação e mais o resultado de uma desatenção. De
uma falta de concentração - o que não deixa de ser outra maneira, menos
mecânica e mais fértil, de se concentrar.
Cortázar defendeu a ideia de que o escritor deve estar
desconcentrado, isto é, atento a erros, equívocos, enganos,
interferências - elementos que ele precisa, em vez de descartar,
valorizar. Sempre foi um amante do jazz, gênero musical baseado no
imprevisto e no improviso. E carregava para a literatura a estratégia
dos melhores jazzistas que tanto amou. Escrever não é enrijecer, mas
flutuar. Não é ordenar-se, mas desordenar-se. Tudo isso, porém, se passa
em torno de um núcleo vivo e inabalável que é o próprio escritor. Em
vez de destruí-lo, esse estado de devaneio só o fortalece. Só com a
mente em estado de flutuação e distração - e não de rigidez e
concentração - o escritor consegue acessar a "intensidade máxima", que
elimina o secundário e o inútil, para chegar àquilo que só ele tem. Só
assim consegue chegar ao coração de si mesmo. Consegue cair em si e em
sua escrita. Para chegar a si, o escritor deve atravessar esse estado de
inquietação - de aposta radical, de jogo - sem o qual seu núcleo não
emerge. Um escritor deve cavar a si mesmo - com alegria, com
improvisação, com ousadia - ou não conseguirá escrever nada que preste.
Nada que seja verdadeiro.
Foi justamente esse contato com o inesperado que Cortázar chamou de
fantástico. Quando o apontam como um autor de "literatura fantástica",
muitos se enganam imaginando que escrevia sobre monstros, bruxas,
espectros. Nada menos verdadeiro. Para Julio Cortázar, o fantástico se
guarda nas brechas mais estreitas do cotidiano e do comum. Ele se
esconde em nosso dia a dia - ele o alimenta. O fantástico não é algo
distante e ameaçador. Ao contrário, está nas miudezas, nas inquietações,
nos improvisos de que nos valemos - que inventamos - para dar conta da
existência. Mesmos elementos de que um escritor se serve para enfrentar
sua escrita. Este é o grande desafio legado por Cortázar: precisamos nos
arriscar a ver o fantástico não no fabuloso ou no extraordinário, mas
em nossa pequena vida banal. É nos pequenos atos, nos atributos mais
íntimos e nos improvisos mais cegos que o fantástico se esconde. O
fantástico não está fora de nós, mas está dentro de nós. E esse é o
desafio que ele nos legou e agora nos espera.
Disse Cortázar, ainda, a Bermejo: "Escrever, para mim, é tentar
sonhar, é uma tentativa de romper barreiras. Acontece, às vezes, que ao
escrever algumas janelas se abrem". Enfatiza, assim, a necessidade da
luta e o caráter de desafio que a literatura necessariamente guarda. O
caráter imprevisível. Nenhum escritor escreve para repetir o já escrito.
Mesmo quando o faz, como o Pierre Ménard, de Jorge Luis Borges, que
reescreveu por inteiro o "Quixote", é sempre a outro livro que ele
chega. A ficção não é algo morto - não é matéria de reverência e ritual.
Ao contrário, é algo vivo. Desafio maior, já que só assim ela consegue
ultrapassar nossos vícios e rotinas - rasgar nossas máscaras -, nos
ajudando a chegar a nós mesmos.
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REPORTAGEM Por José Castello | Para o Valor, do Rio
Fonte: Valor Econômico online, 29/08/2014
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