O Papa Paulo VI disse certa vez: o mundo
precisa de testemunhas mais do que de mestres e, em tempos como estes,
ser um mestre pode significar levar a sala de aula para a rua, a fim de
dar testemunho pelas graves injustiças que estão
prejudicando nossos
irmãos.
A opinião é de Kim Redigan, professora de teologia em uma escola católica de Detroit, formadora de não violência e educadora de paz do Meta Peace Team. Kim faz parte do Conselho Estadual Pax Christi Michigan e escreve para o blog Write Time for Peace.
A carta foi publicada por National Catholic Reporter, 06-08-2014. A tradução é de Claudia Sbardelotto.
Eis o texto.
Caros alunos,
Alguns de vocês entraram em contato comigo depois de ver a notícia da minha prisão por uma ação não violenta devido aos desligamentos de água aqui em Detroit.
Embora tocada por sua preocupação, eu imploro a vocês que reservem o
seu apoio para aqueles que estão sendo afetados pelos desligamentos e
para a sua própria geração, que, a menos que as coisas mudem, está a
caminho de herdar um mundo mercantilizado em que a beleza, a natureza e a
vida serão vendidas pelo menor preço corporativo, uma afronta a tudo o
que é bom, digno e humano.
A ação em que eu e vários outros nos envolvemos foi apenas um pequeno
gesto de resistência, uma humilde oferta de nossos corpos contra os
efeitos desumanizantes e democrático-esmagadores da vida sob a
administração emergencial indicada pelo Estado de Detroit. O Papa Paulo VI
disse certa vez: o mundo precisa de testemunhas mais do que de mestres
e, em tempos como estes, ser um mestre pode significar levar a sala de
aula para a rua, a fim de dar testemunho pelas graves injustiças que
estão prejudicando nossos irmãos.
A disparidade gritante entre ricos e pobres em Detroit
e a rapidez impressionante com que essa diferença está aumentando é
totalmente bíblica. Com suas caixas de areia para adultos, seus pianos
de rua caprichosamente pintados e seus lofts de luxo, o centro de Detroit tornou-se um playground
brilhante para os pioneiros da "nova" Detroit enquanto, a alguns
quarteirões de distância, as crianças são incapazes de escovar os dentes
ou puxar a descarga de seus banheiros.
De forma bem clara, isso é pecado. "Eu estava com sede, e você... desligou a minha água".
Embora eu saiba que, para alguns de vocês, a imagem de um de seus
professores sendo levado algemado é chocante, vocês não devem se
surpreender. Como discutimos em sala de aula, plantamos nossos pés no
solo de boa qualidade de uma tradição bíblica e no corpo da doutrina
social que exigem justiça e uma opção preferencial pelos pobres. Se não
formos capazes de encarnar esses ensinamentos, eles permanecem secos
como pó. Como podemos estudar os profetas, os Evangelhos, as encíclicas,
os santos e não agir? Como já foi dito, "Saber e não fazer é ainda não
saber".
Depois de testemunhar casa após casa ter sua água desligada nas
primeiras horas da manhã, onde empreiteiros marcam o seu trabalho com um
traço forte de tinta de spray azul (uma ação que sugere uma espécie de
ritual de Páscoa ao reverso), depois de ouvir histórias de pessoas que
tentam evitar o inevitável (a vida é sempre complicada quando o dinheiro
está apertado) e depois de preparar kits de banho com lenços umedecidos
para que idosos possam se limpar, eu tinha que agir.
Quando me uni a outros para bloquear os caminhões contratados de sair
para o desligamento naquela manhã, eu agi como mãe, professora e
seguidora de Jesus, consciente do privilégio que carrego, um privilégio
não concedido àqueles que são muitas vezes vítimas de um sistema legal
de entorpecimento da alma que discrimina os pobres e os negros.
À luz daqueles cuja existência diante de uma injustiça brutal e
implacável é um ato diário de resistência, a nossa ação era uma mera
migalha, uma pequena ondulação, um gesto vergonhosamente pequeno de
solidariedade. Uma forma de tentar trazer um pouco de decência e ordem a
uma situação desordenada.
Ironicamente, fomos presos por conduta desordeira, uma acusação
interessante para uma professora cuja vida de agendas, horários e
conversas educadas em sala de aula é baseada na boa ordem. Há um outro
tipo de ordem, no entanto, que ao longo da história tem sido usada para
manter as botas dos brutos e dos impérios nas costas de pessoas,
especialmente dos pobres e vulneráveis.
Essa foi a chamada ordem do dia que levou os profetas a levantarem
suas vozes para os altos céus por causa da exploração impiedosa das
viúvas e dos órfãos e a ordem opressora dos tempos que compeliu Jesus a
virar as mesas no templo.
E essa é a angustiante e dolorosa ordem do dia aqui em Detroit,
onde dezenas de milhares de pessoas estão tendo sua água desligada,
apesar dos protestos de cidadãos locais, dos enfermeiros de todo o país,
das Nações Unidas e das pessoas de boa vontade de todo o mundo.
Não, se alguma coisa está desordenada, essa coisa é um sistema
imposto de governo que está desprivilegiando cidadãos (especialmente nas
comunidades afro-americanas), extirpando a classe pobre e trabalhadora,
privatizando os bens comuns e negando aos bebês e aos idosos o direito
humano à água.
Em termos bíblicos, o transtorno do momento presente pode ser melhor
entendido como um ataque agressivo dos principados e potestades, das
vorazes (ouso dizer demoníacas) forças econômicas e sociais que estão
esmagando os pobres em grave violação da lei do amor articulado em Mateus 25 e nas Bem-aventuranças.
Esse é um momento tanto para lamentação quanto para ação. Um tempo
para travar o amor, como aconselhou a mãe do movimento da água de Detroit, Charity Hicks, com toda a coragem e compaixão que possamos juntar.
Gostaria de dizer muito mais, mas, quando eu os ver em classe em algumas semanas, iremos discutir essas coisas.
Você são estudiosos - façam a pesquisa e, em seguida, levem a sério as palavras do Papa Francisco, que falou contra a idolatria do dinheiro, a "nova tirania", como ele chama.
Quando voltarmos para a escola, vamos nos sentar calmamente com a pergunta de Francisco:
"Como pode ser que um morador de rua idoso que morre de frio não é
notícia, mas quando o mercado de ações perde dois pontos, isso é
notícia?". Uma das primeiras coisas que faremos em nossa volta é
discutir o princípio fundamental da doutrina social da Igreja - a dignidade da pessoa humana - algo que vale a pena ponderar, em tempos como estes.
Por enquanto, voltem sua atenção para aqueles ao seu redor e ao seu
próprio futuro. Saibam que há idosos da comunidade que deram suas vidas
por essa luta durante um tempo muito longo e chegam a esse trabalho
sagrado com uma sabedoria duramente conquistada. Ouçam-nos.
Respeitem-nos. Aprendam com eles. Sejam solidário com o bom e agraciado
trabalho já em curso.
Estudem o contexto histórico do momento presente, façam uma análise
social em conjunto com outros e então decidam onde colocar seus pés.
Jesus escolheu ficar com o menor entre nós. Onde vocês vão escolher ficar?
O que vocês vão fazer para trazer ordem a um mundo desordenado que precisa de vocês para colocar amor em tudo o que vocês têm?
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Fonte: IHU online, 13/08/2014
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