Mauro Aranha-Lima*
"O que leva pessoas a deixar o conforto para atender
vítimas de um vírus letal?"
Os mortos pelo vírus Ebola aproximam-se de mil e a Organização Mundial da Saúde já declarou o presente surto uma “ameaça sanitária internacional”,
o que poderia implicar medidas mais eficazes de isolamento da população
infectada, tais como fechamento de fronteiras dos países atingidos em
face das outras regiões do continente africano e restrição contundente
das conexões aeroportuárias com o restante do mundo.
De uma forma ou de outra, isolar vítimas de doenças
infectocontagiosas graves sempre foi, na história do mundo, mais que uma
decisão apenas das autoridades sanitárias; foi, sobretudo, a tendência
espontânea e intuitiva a mover pessoas sãs para além do círculo
potencialmente fatal onde imperem os eflúvios, concretos ou imaginários,
dos portadores de contaminação, morbidade ou morte. Boccaccio
retrata essa realidade no século XIX: sete mulheres e três homens, em
dez dias, reúnem-se no campo, nos arredores das cidades toscanas, para
fugir à peste bubônica que, à época, dizimava os citadinos; distraíam-se
uns aos outros evocando narrativas que, em seu conjunto, compõem o Decameron, o início da novela ocidental.
De lá para cá, deu-se o que Weber designou como o
“desencantamento do mundo”, em que o pensamento e valores enraizados em
uma cosmologia e determinação divinas dão lugar ao enfoque secular dos
acontecimentos terrenos - visão que ganhou impulso exponencial na razão
iluminista, no desenvolvimento tecnológico e científico e nos interesses
mercantis da razão instrumental.
Na peste, médicos levavam serviço e conforto aos doentes condenados à
morte. Eles próprios, mesmo com especiarias e perfumes na ponta das
máscaras, à guisa de filtrar os miasmas da doença, contaminavam-se e
morriam. Àquela época, ainda, Deus imperava na
consciência dos homens. E, assim, morrer pelo outro poderia significar
remissão de culpas, direito e mérito ao paraíso. Mas hoje que “Deus está morto”, conforme vociferou Nietzsche,
me pergunto: o que leva médicos do século XXI, com capas e máscaras, a
emigrar de suas casas confortáveis, em países desenvolvidos, para cuidar
de doentes anônimos, vitimados por um vírus tão imprevisível quanto
letal como o Ebola, ante expectativas de cura tão
desproporcionalmente menores que o risco de morte? Insensatez,
insanidade, desprendimento, autodestrutividade elevada ao suicídio?
Nós, humanos, temos a consciência de ter consciência. Vale dizer,
somos dois: um, o que vive, e o outro, o que reflete sobre o viver. O
que vive tem desejos, pulsões e indizíveis razões de sorrir, chorar,
esperar, desesperar. O outro procura decifrar as razões que fazem
inclinar suas ações para uma ou outra direção. A vida, por seu turno,
impõe-nos as próprias razões. Freud apontava o conflito
inevitável entre o princípio do prazer e o princípio da realidade. Ora,
quantos prazeres podemos ter na vida! Todavia, a sequência e
intensidade dos prazeres não nos são suficientes. Não nos sentimos
serenos. Mas há que se dizer não só de nossas pulsões de vida. Há
outras, que Freud chamava “pulsões de morte”. Entenda-se morte como símbolo. E os símbolos “dão o que pensar”, conforme dizia Ricoeur.
Inspirar, depois expirar. Tocar, depois copular. Copular, depois
descansar. Ter, depois dar. Dizer, depois silenciar. Nenhum dos polos da
ação se perpetua. Vida e morte pautam a harmonia serena dos contrastes
que não se encontram num intermédio comum, cuja figura final viria a ser
o círculo perfeito, em que não é mais preciso buscar. Quando já não
lutamos por questiúnculas agora descartáveis. E temos os olhos
determinados num horizonte em que já não seremos apenas nós mesmos e
nossas pequenas inquietações. O círculo é a fusão final de vida e morte,
em que a morte é a morte do eu para ser o início do encontro em que
estaremos presentes, mas já não seremos os mesmos, e também não mais e
não menos que outrem. Aqui falo não do outro que refletia sobre o que
vivia e não conseguia ser para mais além disso. Falo do homem maduro,
não importa sua idade cronológica. Falo do homem aberto para o outro
homem, para a dádiva simples e terna ao homem tão precário quanto eu.
Se esse eu é um artista, ele mais contempla do que pinta. Se esse eu é
um harpista, ele não mais dedilha o som, ele é o som que sempre esteve
fora do instrumento, ao seu redor, sem o saber. Se é um médico ou um
enfermeiro ou um missionário, não cura o corpo ou o espírito de outrem,
porque outrem não é mais somente um conjunto de sintomas a serem
corrigidos. Ele cuida de outrem, totalidade única e irredutível a partes
ou mesmo a generalizações. Acolhe a inteireza do sofrimento de outrem,
pacifica-o com a própria paz, torna-se agora definitivamente outro.
Nunca mais recuará ao que fora. E morrer para si é, ainda, apenas uma
metáfora, talvez.
Os aparelhos burocráticos a afastarem médicos de pacientes. Os
interesses mesquinhos, ocultos e traiçoeiros de uma indústria que fatura
com a doença alheia. As práticas de prolongamento da vida sem a
consciência e o usufruto mesmo da vida, atrelados aos aparelhos
sofisticados de hospitais que miram o lucro sem fim. Se o médico
realmente se deixa tocar pela alteridade que sofre, recusa tudo quanto o
afasta de outrem. Deixa-se interpelar. Sua ciência, seus olhos, suas
mãos, tudo nele agora toca o verdadeiramente outro. Ele se tornou
outrem. Daí a morrer, pouco importa. Se morrer é apenas metáfora, e ele
se tornou um novo homem, muito bem, isso é bom. Se para isso
concretamente morrer, não é porque buscasse o suicídio. O suicídio
finaliza a desesperança total. Ele não se sente desesperar. Para ele,
agora tudo é possível e não lhe dói esperar.
--------------
*Psiquiatra e vice-presidente do CREMESP em artigo publicado no Estado de S. Paulo, 09-08-2014.
Fonte: IHU online, 12/08/2014
Imagem da Internet
Nenhum comentário:
Postar um comentário