terça-feira, 13 de julho de 2010

Como Virginia Woolf conversava com os mortos

Biografia da escritora mostra que a vida lhe doía demais, e, por isso,
só conseguia viver quando escrevia

José Castello


FUGA DA REALIDADE
Virginia Woolf (em 1933) escrevia para se proteger do mundo, segundo sua biógrafa

Para a inglesa Virginia Woolf (1882-1941), a literatura era mais que um exercício intelectual refinado. Era uma máquina de ressuscitar. Esse poder se evidencia em um de seus romances mais célebres, O farol, publicado em 5 de maio de 1927. Trinta anos antes, em um dia 5 de maio, ela perdera a mãe. Ao ler os originais, a irmã lhe disse: “É quase doloroso vê-la ressuscitar diante dos olhos”.

Quando a mãe morreu, Virginia tinha 13 anos. Só com dificuldade podemos falar em um exercício de memória. “Na qualidade de sua escrita se confirmava um quê de assustador e inquietante”, diz a crítica italiana Nadia Fusini na bela biografia Sou Dona da Minha Alma: O Segredo de Virginia Woolf (Bertrand Brasil, 420 páginas, R$ 45, tradução de Karina Jannini). “Como se o ato adquirisse faculdades mediúnicas; como se, para ela, escrever fosse um colóquio particular com os mortos.” O segredo de Virginia não estava, só, na reconstrução do passado, mas também na assombrosa prospecção do futuro. Escreveu livros para antecipar o que o mundo poderia ser caso os homens fossem mais sensíveis e generosos. A literatura foi sua salvação. Nela, guardou sua alma. “Para dizer a verdade, Virginia recorre ao fingimento”, afirma Nadia. A vida lhe doía demais, e só conseguiu expressá-la – só conseguia viver – quando escrevia. Quando escrevia e mentia. No dia em que perdeu esse poder de reparação, perdeu também o rumo. Sem palavras, como poderia amar? Depois de se afastar de Vita Sackville, sua grande paixão, desinteressou-se das mulheres e dos homens. Desistiu de amar, embora conservasse o marido, Leonard. Reduziu seu mundo aos cães, às flores e à casa.

O encontro direto e sem nuances com o real a devastou. “O verão de 1936 foi um dos piores de sua vida”, escreve Nadia. “Passou manhãs de tortura, com dores de cabeça lancinantes, tormentos indefiníveis, sentimentos de absoluto desespero.”

Em estado de imersão bruta na realidade – como se o véu protetor da ilusão tivesse, em definitivo, se rasgado e ela estivesse exposta ao sol impiedoso do banal –, Virginia escreveu Os anos, livro que Leonard definiu como “estranho, interessante e triste”. Falava de sua mulher.

Nunca a literatura a levara a tal desnudamento. Sem o véu protetor das palavras – sem sua alma –, já não conseguia viver. O estranho é que o escreveu em estado de extremo torpor, que se parecia com um transe. Leonard não apreciou Os anos, mas a poupou dessa verdade. Ela pensou em queimar os originais. Retrato impecável de seu tempo, o livro mereceu enfáticos elogios.

A partir dele, Virginia se engajou nas questões feministas e nos debates públicos. Mas o mundo era insuportável, e agora ela não tinha mais as palavras. A partir daí, as palavras a lançavam contra o mundo. A mesma máquina que ressuscitava os mortos um dia a matou.

Até que, em 1941, talvez porque estivesse viva demais, e a ação da máquina a duplicasse em proporções absurdas, Virginia, não tolerando mais o peso do mundo e o desenrolar das horas, encheu os bolsos com duas grandes pedras e, aos 59 anos, com os passos lentos de quem leva uma criança para passear, entrou no Rio Ouse. A criança era ela. “Seu corpo era leve como uma pluma”, escreve Nadia. O mundo a massacrava, e só lhe restou fugir.

Ainda hoje, muitos atribuem seu sofrimento a uma doença mental. Ela mesma, em 1925, depois de perder a consciência e passar um mês de cama, escreveu sobre isso em Sobre ficar doente. Em uma festa de aniversário da sobrinha Angélica, preparando-se para uma adaptação doméstica de Alice, de Lewis Carroll, escolheu encenar o papel de Lebre de Março, com um argumento devastador: “Visto que louca eu já sou”.

O curto-circuito acontecia, porém, em outro lugar. “Não podia escrever, não conseguia. Este foi o golpe decisivo”, diz Nadia. Afastada das palavras, despida de sua alma, Virginia abraçou o grande silêncio.
 
Trecho da biografia de Virgina Woolf

Virginia na encruzilhada

No verão de 1932, Virginia estava em uma encruzilhada. Continuaria a escrever segundo uma linha experimental, naquele estilo tão particular que realizara por completo nas Ondas? Ou tentaria robustecer a veia polêmica, empenhada e civil, que exprimira em Um teto todo seu?

Foi esta a direção que decidiu tomar: escreveria um romanceensaio, The Pargiters, ou A família Pargiter. Voltaria àquele estilo de romance do qual Noite e dia era uma prova. Chega de visões: resistiria ao impulso da visão, que era forte nela; colecionaria os fatos. Iniciou, assim, um caminho longo de anos e fadiga, que a levaria a escrever seu livro mais árduo, Os anos, e o ensaio Os três guinéus, texto igualmente difícil, escabroso a seu modo.

Ainda estava revendo os rascunhos de Flush e já morria de vontade de escrever o romance-ensaio: outro título poderia ser Assim são os homens, mas era feminista demais, e a ele renunciou. Em fevereiro
— estamos em 1933 —, em uma espécie de vácuo do tempo — Nessa está em Charleston; Clive, na Jamaica; Roger, em Tanger; e Vita, na América —, mergulhou no novo livro e, em março, quando
recusou as homenagens da graduação ad honorem na Universidade de Manchester, o fez como se fosse Elvira Pargiter, a personagem que inventara e à qual estava se afeiçoando cada vez mais. Vivia
cada vez mais nesse romance, pensava, raciocinava e se identificava com a figura da outsider, da marginalizada, da excluída que já criara em Um teto todo seu e que agora ressuscitara. Se não aceitava
as homenagens era para não desfrutar do prazer que sentiria: seria corrupção... Era uma mulher, e nada mais no mundo a tornaria conivente com o sistema hipócrita de privilégios e exclusões do
mundo patriarcal.

O livro revelaria as raízes desse sistema no mundo vitoriano. Iniciaria no final do século XIX, justamente quando nascera Virginia, pois o livro era verídico, baseava-se em fatos e conteria
tudo: sexo, instrução, vida cotidiana etc. E procederia como uma ágil camurça saltando sobre os precipícios, de 1880 até seus dias — aqui e agora seria o título...

Na fase maníaca da concepção, que começou em 10 de outubro de 1932, Virginia passeava pelas ruas de Londres declamando frases, preparando cenas e episódios. Já não vivia no mesmo mundo
dos outros, delirava. Era como quando escrevia Orlando. Havia anos abstinha-se do romance de fatos e, depois da abstinência, a excitação era muito forte. Sentia-se audaz, impudente e com disposição
para aventuras. Às vezes, na cama, em seu coração desenfreavam-se os cavalos a galope, e sentia medo. Puxou as rédeas, mas o esforço

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de manter a imaginação sob controle era enorme, a exauria. A imaginação era incandescente. Sentia o impulso à visão, mas resistia. Após As ondas, era correto assim. Quando se sentiu mais segura com
o movimento, afrouxou só um pouco as rédeas e tentou combinar fatos e visão, como se quisesse harmonizar Noite e dia e As ondas. No fundo, ambos eram suas criaturas.

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Fonte: Revista ÉPOCA online, 09/07/2010

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