segunda-feira, 12 de julho de 2010

Eros, Tanathos e as Raízes da Modernidade

*Homero Luís Santos e Maria Fernanda Cardoso Santos


Prevaleceu o alhures da última caminhada… O papo entre ambos, pai e filha, prosseguiu portanto num cenário campestre. Desde o passeio à beira-mar, não tinham mais se falado, mas de certo modo a conversa havia continuado em segundo plano. Fragmentos daquelas idéias sobre a civilização e seus deuses se faziam presentes no cotidiano de cada um deles, gerando reflexões e indagações.

O cheiro de maresia deu lugar à mistura de aroma de terra, de umidade e de ciprestes. Eles caminhavam sob um belo céu de inverno – azul e límpido. Entre um passo e outro, ele divagava: “Estava pensando que poderíamos levar mais deuses àquele panteão, além de Mercado, Ciência e Morte. Veja a tradição védica: temos, dentre os muitos deuses menores ali existentes, a suprema tríade de Brahma, Vishnu e Shiva, chamada de Trimúrti. Observando bem, a trindade Mercado-Ciência-Morte corresponde de forma invertida a essa Trimúrti. Brahma é, no hinduísmo, o Criador da Vida enquanto, na trindade que identificamos antes, o deus Morte elimina vidas ainda que para viabilizar outras vidas ao longo da cadeia alimentar. Vishnu é o Mantenedor da Ordem enquanto o deus Ciência cria a desordem na ordem natural, tentando subjugá-la. E Shiva é o Transformador do Mundo, correspondendo ao inverso do deus Mercado, anestesiador da vontade de mudança, já que oferece a saciedade acomodatícia”.

Ela reconheceu a ressonância dessa proposição com outra, que reúne vida e morte numa dualidade oposta e complementar. Pensou em Freud e sua pesquisa acerca daquilo que impulsiona nossas ações. E emendou: “O psicanalista dirá que o que nos move são as pulsões, duas pulsões básicas das quais se originam as demais – pulsão de vida (Eros) e de Morte (Tanathos). Ao lado da pulsão de vida – que busca o prazer e evita o desprazer – há a pulsão de morte, que busca a aniquilação e é um não-querer, uma espécie de movimento niilista que conduz ao inorgânico, ao inerte. Eros e Tanathos seriam opostos e complementares como Brahma e Morte.”

E prosseguindo nas considerações: “O interessante é que um dos caminhos que Freud percorreu para formular a ideia de pulsão de morte foi observar a brincadeira de uma criança pequena. Toda vez que a mãe da criança se ausentava, a criança enrolava um carretel e o arremessava para longe de seu berço para depois recuperá-lo pela linha presa aos dedos, sempre pronunciando nesse vai-e-vem as palavras Fort-Da (Fort – longe; Da – perto). Freud interpretou essa brincadeira como um jogo representacional em que a criança se apoderava do próprio processo de perda da mãe. Perdia-a e a recuperava simbolicamente, repetindo uma experiência desagradável, mas dessa vez com controle sobre ela. Enquanto a repetia, a controlava e elaborava: ao sofrimento pela perda contido no Fort (Cadê?) sobrevinha a alegria do reencontro do Da (Achou!).”

Já estavam quase no fim da trilha que serpenteava entre relvas e ondulações do terreno quando ela, depois de alguns passos em silêncio, disse: “Nessa brincadeira encontramos de maneira emblemática os deuses da trindade: vida e morte impulsionando nossas ações, criando uma ordem humana e subjugando a natural, através da Ciência. Ambos vigorando através dos mecanismos de saciedade que o Mercado oferece. Tal como a criança pequena, nessa brincadeira nós desenhamos maneiras de jogar e recolher o carretel, buscando controlar a inexorabilidade de nosso destino.”

A essa altura, o sol ardido do inverno recomendava uma pausa sob a copa de uma árvore qualquer e um sorvo providencial de água. Pairava uma atmosfera de reflexão entre os dois e parecia que a parada no trajeto tinha posto um ponto final ao papo. Foi quando ele, parecendo que fisgara algo no vórtice de idéias que se agitavam em seu pensamento, reiniciou o diálogo como que buscando uma conclusão, um fecho: “Eros e Tanathos ou, na nossa elucubração, Brahma e Morte, delimitam os extremos de nosso universo ético, estabelecendo um intervalo pendular de condutas possíveis. Explico melhor. Primeiramente, aquilo que parece distinto e oposto na verdade são faces da mesma moeda. Para preservar a vida do indivíduo amiúde contribuímos para a morte da espécie, da nossa espécie e das demais espécies que sustentam toda a vida, aí incluída a nossa própria. Vivemos do sacrifício de indivíduos de outras espécies para obter o alimento necessário à nutrição de nossa espécie. Todas as espécies fazem o mesmo, com a diferença de que recebemos do deus Ciência, em resposta à nossa devoção, as ferramentas para ampliar nossa ação no mundo, criando extensões de nós mesmos com as quais multiplicamos infinitas vezes nosso impacto, desproporcionalmente à nossa massa corpórea. Em nome do conforto e do progresso, matamos mais, muito mais do que aquilo que seria necessário para…apenas sustentar a nossa vida humana.”

“E é o deus Mercado quem nos disponibiliza esses aparatos, é lá no seu altar que em troca de nossas oferendas monetárias logramos encontrar toda a sorte de meios, que tanto salvam e prolongam vidas como decretam o fim destas, em holocausto ao deus Morte cuja outra face, aliás, é Brahma. Ufa! Vida e Morte, Eros e Tanathos, posições extremas do mesmo pêndulo. Aí se situa o fosso profundo onde está encravada nossa civilização!” Na verdade, esse não foi um fecho, foi a abertura de uma nova rodada de conjecturas.

A essa altura algumas nuvens já começavam a aninhar-se sobre as cabeças deles. Sob a sombra que se criava, começaram a caminhada de retorno. Um tanto atordoados, diga-se de passagem…

*Homero Luís Santos é Vice-Presidente do Conselho Deliberativo do Núcleo de Estudos do Futuro – NEF, membro-fundador da Comissão de Estudos de Sustentabilidade para as Empresas do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa – IBGC, professor e consultor do UniEthos e professor associado da Fundação Dom Cabral. Maria Fernanda Cardoso Santos é doutoranda em Filosofia pela Universidade de Granada, Espanha, mestranda em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte e graduada em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

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