domingo, 4 de julho de 2010

Espelho partido

Distúrbios alimentares associados ao consumo cada vez maior
de bebidas entre os jovens
produzem um efeito devastador no
organismo das mulheres

Vera Fiori

Presas. As mulheres estão cada vez mais vulneráveis à drunkorexia.
 Foto: Paula Prandini/AE

Na novela Viver a Vida, exibida recentemente pela Rede Globo, duas situações antagônicas podiam ser vistas em cena: de um lado, o merchandising escancarado de bebidas, uma vez que o protagonista principal vivia com um copo na mão, e , de outro, a personagem Renata (Bárbara Paz), uma modelo alcoólatra e anoréxica, com penteado emprestado da cantora Amy Winehouse. O exemplo da ficção ilustra o que ocorre na vida real. A glamourização do álcool, a ditadura da magreza como passaporte para a aceitação social e a exposição da vida instável das bad girls do show bizz inspiram milhares de adolescentes. Para elas, o que os especialistas chamam de comportamento de risco, trata-se de um "estilo de vida".

O psiquiatra Carlos Salgado, presidente da Associação Brasileira de Estudos do Álcool e outras Drogas (Abead), alerta sobre a tolerância à bebida. "Bebendo e repetindo padrões e valores dos 52% de brasileiros que bebem, as mulheres garantem o mercado da bebida em nosso país. Não é só no comercial bem humorado que elas fazem presença. É também na elegância discreta das rodas sociais e familiares que a indústria da bebida as tem como ponta de lança. Ao beber, as mulheres realizam o desejo de empresários ambiciosos e legitimam o álcool como bem incontestável, o que é uma deslavada mentira."

Drunkorexia, segundo a psiquiatra Patricia Hochgraf, do Programa de Atenção à Mulher Dependente Química (Promud), do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo, é uma denominação sem classificação médica. "O termo foi cunhado por um jornalista do The New York Times. Seria como um subtipo da anorexia, que fica na fronteira entre transtorno alimentar e dependência química."

De acordo com a especialista, o abuso do álcool é mais comum entre pessoas que comem compulsivamente. "Mas a parcela com anorexia bebe de barriga vazia, troca as calorias da comida pelas calorias vazias do álcool. Não comer acaba sendo uma espécie de compensação para poder beber depois. Há também quem use o álcool para tirar a fome, como se fosse uma técnica emagrecedora. Não basta uma latinha de cerveja, mas muitas." Observa que o organismo da mulher é diferente. "Há uma concentração maior de gordura e menor de água e desidrogenase, enzima que metaboliza o álcool e protege o fígado contra seus efeitos nocivos", alerta.

Anorexia e dependência química são dois problemas graves e distintos, a serem tratados a longo prazo, contando-se recaídas, diz a especialista. O tratamento é feito com terapia comportamental e acompanhamento nutricional para controle do transtorno alimentar e do alcoolismo, o que exige trabalhos de grupo, reuniões do Alcoólicos Anônimos e avaliações clínicas.

Para Maria Del Rosario, médica nutróloga e diretora da Associação Brasileira de Nutrologia (Abran), o consumo de álcool estaria ligado a uma maior aceitação social. "Esta realidade é comum entre homens e mulheres de 18 a 25 anos, sendo mais vulneráveis as estudantes universitárias. Estudos apontam um porcentual de 35% de abuso de álcool na bulimia nervosa, e 25% na anorexia nervosa." Segundo ela, em geral, as meninas começam a beber de brincadeira, aumentando as doses a ponto de se tornarem dependentes.

Os graves distúrbios alimentares, que podem ser decorrentes da drunkorexia, provocam complicações cardiovasculares, digestivas, endócrinas, hematológicas e ósseas. Desnutrição, desidratação, hipoglicemia e confusão mental também podem estar presentes no quadro. "O efeito do álcool é devastador, causando complicações gastrointestinais, hepáticas, neurológicas e psiquiátricas."

As consequências, informa a nutróloga, são distúrbios nutricionais importantes, com mudanças orgânicas, como doenças neurológicas, anemia, distúrbios menstruais, alterações da tireoide. Para prevenir, cabe aos pais observarem o comportamento alimentar dos filhos.

Web, um clube. Vanessa Alckmin Reis, mestranda em tecnologias da comunicação pela Universidade Federal de Juiz de Fora, abordou o tema em sua tese de mestrado de 2009, intitulada Websites Pró-ana e mia, redes sociais e suas transformações. Em seu estudo, observa que o movimento pró-anorexia e pró-bulimia surgiu na internet em 2000, inicialmente nos Estados Unidos e Inglaterra, espalhando-se rapidamente para outros países.

No Brasil, segundo o levantamento, os primeiros blogs surgiram em 2002. Dois anos depois, foram criadas comunidades virtuais para reunir as bulímicas e anoréxicas, tanto aquelas que estão em tratamento quanto as que querem continuar nessas condições. "Protegidas pelo anonimato, as seguidoras da ‘ana’ e ‘mia’ (apelidos carinhosos dados, respectivamente, a anorexia e bulimia), encontraram nos blogs, fóruns e sites de relacionamentos lugares nos quais poderiam falar sobre uma parte de suas vidas que, na maioria das vezes, é silenciosa: a relação complicada com a alimentação e a imagem corporal." Ainda segundo o estudo, com idades entre 13 e 17 anos, as mulheres são a grande maioria no universo dos distúrbios alimentares (os homens chegam a 10%).

Basta dar um giro pela internet para encontrar relatos sobre a complicada relação com a comida e a imagem corporal. Para não caírem em tentação, além de usarem frases de efeito - "coma para não morrer, mas não viva para comer", "morrer, lutando"-, anas e mias alimentam seus blogs e páginas nas redes sociais com imagens de celebridades esquálidas que admiram ("thinspiration", como elas chamam), e fotos de saboneteiras ossudas (collar bones).

Rigorosas com as calorias, trocam dicas de como perder peso rapidamente, usando as siglas NF (no food) e LF (low food). Falam em atingir metas irreais, como chegar aos 39, 40 quilos. Quando comem demais depois de dias em jejum, sentem-se culpadas. Algumas mencionam o uso de pulseiras em cores que distinguem as "anas" das "mias". Uma delas descreve no Orkut a utilidade do acessório: "olhe para sua pulseira e lembre-se de que você é mais forte que um pedaço de bolo."

DRUNKORÉXICAS

Depois de ter tentado vários regimes sem solução, Renata (nome fictício), de 16 anos, decidiu radicalizar. Com 1,60 metro de altura e 55 quilos, quer chegar aos 46 quilos. "Faço como um amigo meu e como de três em três dias."

Para despistar os pais, finge que come. Depois cospe a comida no guardanapo e usa roupas largas. Seguindo a dieta que copiou de um blog, só se alimenta de uma bolacha água e sal light pela manhã e muita água; no almoço, alface, peito de peru e um iogurte com 30 calorias. No jantar, uma fatia de pão integral, uma de queijo minas, três ou quatro uvas. Se extrapola, toma laxante.

"Quando sinto tontura, como uma maçã pequena que coloco na bolsa para emergências." Renata sabe dos riscos, mas morre de nojo de ficar uma "gordaaaa". No fim de semana, não abre mão de beber algumas latinhas de cerveja ou vodca ice. Prefere a bebida à comida.

Mari (nome fictício), 20 anos, universitária, às vezes acorda e toma uma lata de cerveja em jejum para despistar a fome. A bebida, diz, é seu ponto fraco. Faz cálculos mirabolantes para não abrir mão dela. "Se estou deprimida, como tudo de forma compulsiva. Acho que é uma punição. Quando estou bem, esqueço a comida."

OPINIÃO: Marco Tommaso, psicoterapeuta

As causas que levam à drunkorexia são físicas, genéticas, familiares e psicológicas, resume o psicoterapeuta Marco Tommaso. "Entre os fatores desencadeantes, estão a valorização do corpo magro pela mídia e a tolerância social à bebida."

A faixa etária varia, mas concentra-se entre os 20 e 40 anos. A característica principal desse grupo é a restrição calórica aos alimentos em função da bebida alcoólica. Algumas alegam que o álcool reduz a fome. Beber em jejum e usar a ressaca do dia seguinte à balada como meio de driblar a fome são práticas frequentes.

"Muitas apresentam o ‘binge drinking’, episódios de compulsão por bebida em curto período de tempo, podendo ou não provocar o vômito para beber mais e evitar comida." Marco Tommaso, que dá assistência psicológica a duas agências de modelos, diz que adolescentes são altamente influenciadas pela mídia. "De nada adiantam movimentos anti-anorexia se, nas passarelas, o que se vê são modelos com medidas irreais."
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Fonte: Estadão online, 04/07/2010

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