terça-feira, 6 de julho de 2010

Falta olho no olho

ROSELY SAYÃO*

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Em vez de curtir a festa dos filhos,
os pais preferem ficar registrando tudo para depois ver o filme

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O RELACIONAMENTO interpessoal anda difícil, e há muitas razões para isso.

Temos a obrigatoriedade de encontrar a felicidade, pensamos sempre em nós mesmos em primeiro lugar, consumimos e descartamos tudo com facilidade, competimos com quase todos.

Mas é principalmente o fato de vivermos em uma sociedade que aprecia o espetáculo que tem dificultado sobremaneira o relacionamento entre pais e filhos. Você esteve recentemente em alguma festa junina de escola, onde os alunos apresentaram danças? Participou de uma festa de aniversário de criança ou teve a oportunidade de ver pais e filhos em passeios?

Caso sim, certamente deve ter notado que, em geral, entre os olhos dos pais e os dos filhos há um obstáculo: uma câmera. Ela pode ser fotográfica, embutida no celular, de vídeo etc.. Mas está sempre presente.

Às vezes, não é uma câmera que se interpõe entre o encontro de olhares de pais e filhos, e sim um vídeo que não permite que a criança olhe para outra coisa.

Agora, virou moda entreter as crianças com aparelhos portáteis de DVD em todos os lugares.

Muitas famílias já têm esse aparelho até no carro. "Foi a melhor coisa que eu fiz, porque assim as crianças não brigam nem me atrapalham" me disse a mãe de duas crianças.

Outras não viajam sem ele na bolsa, para que esteja sempre pronto para ser sacado em momentos delicados.

Recentemente, em uma viagem aérea, sentei ao lado de um casal com um filho de menos de dois anos. Assim que se acomodaram, a criança começou a berrar e a se contorcer. De imediato, os pais abriram a mochila e de lá retiraram o tal aparelho com um DVD de animação.

Milagre! A criança se acalmou e assim ficou até terminarem o filme e a viagem. Nenhuma troca de palavras ou de olhar entre eles. Nas festas dos filhos, em vez de os pais curtirem a celebração, preferem ficar "registrando" tudo para que depois, em casa, possam assistir ao filme, de preferência com convidados.

Claro que o registro mostra parte da história da família e ajuda a reconstruir a memória pessoal e do grupo, o que é importante na vida.

O problema tem sido a substituição do relacionamento pelo registro porque, dessa maneira, abolimos a memória afetiva.

Vamos reconhecer que, para muitos pais, essa troca é extremamente confortável. É mais fácil acalmar a criança com um filme, é mais tranquilo não ter de enfrentar brigas dos filhos no carro e menos desgastante filmar a festa de aniversário do filho do que participar da mesma.

Só que, dessa maneira, as crianças deixam de aprender coisas importantes e seus pais deixam de exercer seu papel quando ele é mais necessário. Ensinar a criança a conviver é a função mais importantes da família e é isso o que significa socializar.

Saber se conter, se controlar e esperar, desenvolver estratégias frente às decepções e aos sofrimentos, aprender a se cuidar para estar com os outros e a se comportar em diferentes contextos: tudo isso e muito mais é um árduo e longo aprendizado, que deve começar assim que a criança nasce. E a base de todo o ensinamento é o vínculo entre pais e filhos.

É claro que a televisão, o computador, o aparelho de DVD, a câmera, o videogame e tudo o mais têm o seu papel na vida da criança.

Mas a relação entre pais e filhos, o olho no olho, os conflitos entre eles e o convívio entre eles são insubstituíveis.
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*ROSELY SAYÃO é psicóloga e autora de "Como Educar Meu Filho?" (Publifolha)
blogdaroselysayao.blog.uol.com.br
Fonte: Folha online, 06/07/2010

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