Marcio Pochmann*
Trata-se de viabilizar uma contribuição solidária
para que os países mais pobres tenham condições
para superar desafios
da fome e
da extrema pobreza
Esteve em pauta na reunião do G-20, em Toronto, a proposta de se garantir uma contribuição justa do setor financeiro para a recuperação das economias atingidas pela crise financeira global. A oposição do Brasil tem sido interpretada erroneamente como uma mudança em relação à posição defendida anteriormente.
A base da discussão foi um relatório do Fundo Monetário Internacional (FMI) que sugeriu a adoção de duas taxas: uma sobre as instituições financeiras - contribuição financeira para a estabilidade -, a fim de prevenir futuros gastos públicos relacionados a crises financeiras; outra sobre operações financeiras para fortalecer a base de arrecadação dos governos. Antes mesmo de ser submetido à apreciação dos ministros de finanças do G-20, na Coreia do Sul, em abril, os setores financeiros se articularam contra a proposta, em dissonância ao sentimento público nos EUA (como demonstra a aprovação de uma taxa sobre o setor financeiro pelo Congresso americano, em 25 de junho) e na União Europeia. Todavia, ambas acabaram sendo chamadas, sobretudo pela mídia, de Taxa Tobin, gerando confusão sobre o seu caráter e objetivo.
O economista Tobin lançou a proposta de uma taxa sobre transações cambiais na década de 1970 para conter as atividades especulativas em regime de câmbio flutuante e garantir um mínimo de autonomia às autoridades monetárias nacionais. Naquele momento, a proposta não emplacou, sendo retomada nos anos 1990, após as crises financeiras que envolveram ataques especulativos contra moedas (do México à Ásia).
O mercado cambial não parou de crescer em ritmo superior ao do comércio e do investimento das empresas transnacionais, atingindo um volume médio diário de mais de US$ 3 trilhões em 2010. Diante disso, surgiu a proposta apresentada pelo presidente Lula e seus colegas da França, Chile e Espanha nas Nações Unidas, em 2004, de introduzir uma taxa, pequena o suficiente para não desencadear impacto significativo na economia real e, ao mesmo tempo, grande o suficiente para combater a fome e a pobreza extrema, no âmbito dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) negociados pela Organização das Nações Unidas (ONU).
Em setembro de 2008, em meio à crise sistêmica global, o presidente Lula insistiu, em um evento da ONU, em se considerar a taxação dos fluxos financeiros globais na busca de mecanismos de financiamento inovadores para ajudar a viabilizar a Ação Contra a Fome e a Pobreza. Em outubro de 2009, o Brasil juntou-se à iniciativa da França e de outros dez países, entre os quais Japão, Alemanha, Chile e Grã-Bretanha, criando uma força tarefa para estudar a viabilidade técnica da taxação dos fluxos financeiros para financiar o desenvolvimento. Para isso instalou um grupo de peritos que acaba de concluir seu relatório final e apontar as transações cambiais, por estarem centralizadas em plataformas de compensação e liquidação, como a melhor alternativa para se viabilizar essa contribuição solidária. Estima-se que uma taxa de 0,005% arrecadaria entre US$ 30 bilhões a US$ 33 bilhões por ano, considerando uma queda de 14% no volume negociado.
O fato de o Brasil ter se unido ao Canadá e à Austrália, no âmbito do G-20, contra as propostas de taxação do FMI, não implica em uma contradição ao posicionamento que o presidente da República vem assumindo ao longo dos anos. Em primeiro lugar, a proposta de 2004 - e do grupo de peritos - envolve uma taxa muito inferior à do FMI justamente porque não se busca dar respostas aos problemas orçamentários - déficit fiscal e dívida pública crescente - dos países desenvolvidos. Trata-se de viabilizar uma contribuição solidária para que os países mais pobres possam alcançar as condições mínimas para superar desafios da fome e da extrema pobreza. Em segundo lugar, a taxação proposta pelo FMI seria aplicável a diferentes setores financeiros e, portanto, não deveriam ser objeto de uma decisão única.
Vale dizer, não faz sentido um imposto sobre o sistema bancário brasileiro, para prevenir crises ou para aumentar a arrecadação, pois não foram envolvidos da mesma forma na crise financeira global.
Esse posicionamento do Brasil não se contrapõe, portanto, às conclusões do grupo de peritos sobre taxação de fluxos financeiros. Para aprofundar os aspectos técnicos deste debate, o Ipea realizou no último mês de junho um seminário internacional, durante o qual foi lançado o livro: Globalização para Todos - Taxação Solidária Sobre os Fluxos Financeiros Internacionais (disponível gratuitamente no site ipea.gov.br).
Essa discussão deve ganhar força na Assembleia-Geral da ONU, em setembro de 2010, quando será realizado um balanço de dez anos dos ODM, em particular o elevado déficit entre os compromissos assumidos pela comunidade internacional e o realmente executado, explicitando as dificuldades para se atingir as metas previstas para 2015. A taxa solidária global, sugerida pelo grupo de peritos, caminha exatamente nesta direção, viabilizar uma globalização menos desigual.
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*Marcio Pochmann é presidente do Ipea e professor licenciado do Instituto de Economia e do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (Cesit) da Unicamp.Fonte: Valor Econômico online, 02/07/2010
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