sábado, 10 de julho de 2010

Sou você amanhã

Gustavo Lins Ribeiro*

 
A partir da necessidade do estabelecimento de
novos parâmetros na relação entre professores e alunos,
uma reflexão sobre os aspectos da natureza do poder na universidade

A universidade é o universo da imaginação, da inteligência, da crítica, da (re)produção e troca dadivosas de conhecimentos. Suas qualidades maiores se efetivam por meio da abertura ao outro e ao mundo, da admiração, do diálogo e do respeito mútuo. Qualquer assunto concernente à vida universitária deve ser tratado neste espírito. Nos últimos dois anos e meio, o movimento estudantil da Universidade de Brasília tem dado mostra de sua vitalidade e alcance, historicamente expressos em diferentes e importantes lutas políticas. Por isso, é preciso debater alguns ângulos da questão política que o movimento tem trazido no interior do seu espaço mais típico, que é a própria universidade. Um ponto que merece reflexão é a posição, amplamente difundida no movimento estudantil, favorável ao exercício da paridade entre os três segmentos: professores, servidores técnico-administrativos e estudantes. O âmago da questão se encontra no exercício do poder internamente a instituições.

Uma primeira confusão que se faz é entre democracia republicana e democracia institucional. Defendo ambas, mas uma diferenciação é mais do que necessária. Nenhuma instituição pode ser pensada como se fosse uma espécie de microcosmo da República. Na política republicana, evidentemente, todos devem ser iguais e cada pessoa significa um voto. Isso está longe de esgotar o sentido de democracia, mas qualquer mudança nessa condição básica é um retrocesso intolerável, especialmente para uma geração como a minha que lutou para vê-la implementada.

Entretanto, uma instituição não comporta a complexidade da República. As instituições, por sua própria natureza, possuem regras específicas que devem ser seguidas por suas partes constitutivas. Diferenças de atribuições articuladas em um todo, funcionalidade, clareza de objetivos mais imediatos e concretos são fatores centrais para a existência das instituições. Como supõem cooperação entre diversos atores, mas também divergências, as instituições têm uma dimensão política e, assim, a democracia deve ser parte inerente de suas vidas. A questão passa a ser qual a natureza da democracia institucional. Para progredir, o debate deve descolar-se da analogia República/instituição e procurar encontrar a forma mais apropriada para a participação de todos os segmentos em processos decisórios e de resolução de conflitos.

É comum que um dos segmentos constitutivos de uma instituição detenha papel diferenciado, possuindo os principais atributos e responsabilidades que espelham seus objetivos precípuos e permitem alcançá-los. É a habilidade, encarnada neste segmento, de desempenhar determinados serviços materiais ou simbólicos, que atrai as pessoas às instituições. Assim, quando alguém procura entrar em uma universidade, o que lhe atrai é aquele segmento que desempenha o papel precípuo da universidade enquanto lugar de produção e difusão de conhecimentos complexos: os professores. Por força de seus atributos, responsabilidade e engajamento diferenciados, os professores devem ser aqueles cuja opinião e direcionamento mais incidam sobre o destino da instituição. Mas esse não pode ser um poder exclusivo. A participação no processo decisório institucional visa o aperfeiçoamento de suas práticas, algo para o qual todos interessados podem e devem contribuir. Além disso, o autoritarismo, o desrespeito à opinião dos outros e a arrogância são o melhor caminho para simplificações, conflitos, fracassos, desperdício de tempo e recursos preciosos.

Diferenças necessárias

Outro ponto básico é como pensar a natureza do poder exercido pelos professores. Alguns estudantes dão a impressão de estarem convencidos de que se trata de um poder indevido. No limite dessa perspectiva, pode-se até insinuar que não existem diferenças entre estudantes e professores e que os primeiros estariam tão qualificados a ensinar aos professores quanto vice-versa. Enquanto todo professor sabe ser verdade que muito se aprende ensinando, qualquer um sabe que, ao menos que haja algum problema cognitivo, quanto mais tempo se estiver estudando (e ensinando) um tópico, mais sobre ele se saberá. Hoje para ser professor universitário requer-se o título de doutor. Uma trajetória média leva cerca de 4 anos de graduação, 2 anos e meio de mestrado e quatro anos e meio de doutorado, ou seja, onze anos de estudo e dedicação à pesquisa (sobretudo na pós-graduação). Salvo a existência de indivíduos verdadeiramente geniais — e todo sistema educacional deve estar preparado para reconhecê-los — é de se esperar que seja inusitado que estudantes em geral saibam tanto ou mais que os professores. Se saber mais do que os professores fosse fato generalizado e comum, deveríamos contestar a necessidade da universidade, tendo em vista que seu diferencial — ser um espaço de um saber que se almeja — seria inexistente ou farsesco. Claro que nada disso é assim. O bom senso acaba se impondo na forma de demanda pelo saber existente nas mãos de professores e pesquisadores trabalhando nas universidades.

Talvez, por trás de tudo isso, exista uma simplificação metafórica, para fins de usos políticos, da relação professor/estudante que, hierárquica (o que não significa autoritária) — afinal, alguém precisa aprender alguma coisa que alguém sabe — pode ser apresentada como portadora de uma contradição a ser suplantada, para que algum sujeito político novo e mais progressista venha a se instalar. A assunção da hierarquia na educação não significa que não possa haver horizontalidade na relação de aprendizagem. A relação mais rica ocorre justamente quando a crua percepção da hierarquia, calcada em papéis funcionais pré-estabelecidos no gradiente institucional de poder, é substituída por uma fusão de horizontes baseada na admiração pelo conhecimento do outro. Aqui a percepção da hierarquia se estabelece não por força imposta por uma estrutura funcional mas pelo reconhecimento subjetivo/objetivo de que aquele outro sabe mais do que eu. O reconhecimento de que alguém sabe mais do que eu é o verdadeiro núcleo duro da relação professor/estudante e de qualquer vontade de aprender/conhecer. Deve, portanto, ser o verdadeiro núcleo duro da vida acadêmica. Em outras palavras, a admiração é o fundamento da hierarquia compartilhada e aceita conscientemente no meio universitário.

Sem antagonismo

Exploremos o raciocínio segundo o qual para chegar a exercer o poder político dos professores há que considerá-los como antagonistas a serem deslocados. Trata-se, mais uma vez, de outra confusão sobre a natureza da relação professor/estudante. Diferentemente de outras relações de poder, como aquelas existentes, por exemplo, entre proletários e capitalistas, as relações de poder entre professores e estudantes se resolvem sem que maiores mudanças estruturais no mundo sociopolítico ocorram. Na verdade, os professores esperam que muitos estudantes se transformem neles, a “classe” dos estudantes é sua origem e, assim, em um sentido além do laboral, sua condição de reprodução. Como, graças ao espaço de liberdade que toda universidade deve ser, há professores de todos vieses políticos, também há espaço para todos tipos de inclinações políticas estudantis.

"O reconhecimento de que alguém sabe mais do que eu
é o verdadeiro núcleo duro da relação professor/estudante e
 de qualquer vontade de aprender/conhecer.
Deve, portanto, ser o verdadeiro núcleo duro
da vida acadêmica"



Um professor já foi estudante e pode dizer algo que esse não pode dizer: eu sou você amanhã. Para o estudante se transformar em professor, naquele cujo poder deseja exercer, não é necessária nenhuma revolução estrutural. Na verdade, é a passagem do tempo dentro da estrutura sociopolítica compartilhada entre alunos e professor, isto é, dentro da instituição, que transformará o aluno em professor, se o primeiro assim o desejar. Nesse sentido, a suposta contradição se esvanece com algo que a todos nos acontece: a passagem do tempo dentro de uma estrutura sócio-política. Por isso, o desejo de lideranças estudantis de terem tanto poder quanto os professores na universidade é uma prefiguração cuja realização concreta teria como impacto imediato a antecipação do exercício do poder institucional por parte de pessoas que ainda estão formalmente preparando-se para tanto. Tal vontade de poder serve melhor à universidade como um todo se — desviando-se da ansiedade prefigurativista (de resto, desnecessária nesse contexto) — aprofundar as interlocuções já garantidas pelas estruturas acadêmicas que reconhecem o lugar fundamental da imaginação e contribuição estudantis para a vida universitária e suas transformações.

No melhor espírito da tradição universitária, o maior objetivo que podemos, todos, perseguir é procurar o aperfeiçoamento da democracia institucional, visando construir uma universidade mais forte e pronta a responder aos desafios cada vez mais complexos com que se defronta.
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*Gustavo Lins Ribeiro é diretor da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de Brasília
Fonte: Correio Braziliense online, 10/07/2010

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