sábado, 1 de dezembro de 2012

Atar e desatar os novos laços sociais

A psicanálise é convocada para o debate que divide a França: o projeto de lei que regulamenta o casamento homossexual

Os franceses ainda não falaram em cabras, mas no que concerne o casamento homossexual pode-se dizer que o bicho anda pegando na França. Em junho do ano passado, o Partido Socialista apresentou projeto de lei que autorizaria homossexuais a casarem e adotarem crianças, mas ele foi rejeitado pela assembleia. Durante sua campanha, o socialista François Hollande prometeu retomar o projeto que foi apresentado ao conselho de ministros no fim de outubro. Desde então, as manifestações sociais contra e a favor do “projeto de lei sobre o casamento homossexual”, que será votado em janeiro, causam grande estardalhaço.

No último dia 17, 100 mil pessoas manifestaram pelas ruas de Paris contra o projeto. Os argumentos eram os mais variados, do “bom senso” ao “nojo”, de “Adão e Eva” ao “fim da sociedade”, mas algo ressoava como estribilho – o casamento homossexual colocaria as crianças em risco. Na multidão, composta em grande parte por pessoas religiosas de diversas idades, destacava-se a pletora de carrinhos de bebês e faixas com slogans como “uma criança precisa de um papai e uma mamãe”. A imensa maioria dos “contra” se antecipa em afirmar que a contestação não carrega qualquer conteúdo homofóbico. Segundo eles, o que está em jogo é a “perda de referências” (repères) que o casamento homossexual implicaria às crianças: “Deux mères, deux pères: enfants sans repères” (duas mães, dois pais: filhos sem referências), diz o jargão.

Os “pró”, na defensiva, reclamam sobretudo a igualdade de direitos. Acusam os “contra” de homofobia, mas se esmeram em sustentar que os valores familiares e sociais não ruirão. No que tange à criação das crianças, o desafio é mostrar que o casamento homossexual é tão apto quanto o heterossexual. Os “contra” admitem que casais homossexuais possam assegurar as condições materiais e, em suas palavras, “educativas” necessárias ao desenvolvimento de uma criança, porém colocariam em flagrante risco sua constituição psíquica. Neste ponto, “pró” e “contra” se valem de argumentos calcados na psicanálise. Em audição realizada com sete psis na Assembleia Nacional no último dia 19, os “pró” venceram por quatro a três.

Provavelmente, os porta-bandeiras mais conhecidos da refrega sejam Elisabeth Roudinesco (“pró”) e Christian Flavigne (“contra”), ambos convocados à audição. Roudinesco incita seus colegas psicanalistas a assinarem uma petição que, no início de novembro, reunia 560 assinaturas. O segundo acaba de publicar um livro intitulado Eu Quero Papai E Mamãe. Curiosamente, a discussão dos savants reproduz, por vezes, o ataque-defesa dos leigos.

Flavigne afirma que o casamento homossexual produz a “falsificação da família”. Estando “fora dos laços de filiação”, a genealogia da criança seria descosturada em sua linhagem, tendo fraudada sua origem. Para Flavigne são os laços diretos de filiação que “garantem a interdição do incesto”. Ademais, “o pai homossexual encarna o fato de que a criança está privada de ter mãe, e isso faz com que ela se desestime”. Seus argumentos são, aliás, amplos e implicam frequentemente todo o tipo de adoção, pois afirma que mesmo os padrastos não podem “assumir o papel de transmissão da paternidade”.

Com propósitos semelhantes, Pierre Levy-Soussan, psiquiatra e psicanalista consultado pelo governo, propõe que crianças adotadas por casais homossexuais seriam “sem domicílio afetivo”, cunhando palavra-chave dos “contra”. A expressão retoma a fórmula francesa usada aos moradores de rua – “sem domicílio fixo”. Ou seja, assim como é recorrente nos debates sobre moradores de rua, Levy-Soussan aponta o risco da liberação do casamento homossexual talhar o laço social.

Intrigantes formulações. Primeiro, por deduzirem leituras antigas da psicanálise, nas quais o complexo de Édipo tem aplicação literal, encarnada nos pais de carne e osso. Segundo, por serem melancólicas, generalizadoras e, por isso, avessas ao trabalho psicanalítico. É importante ressaltar que, há menos de dois anos, os psicanalistas franceses estavam em polvorosa com a publicação do livro de Michel Onfray. Baseado exatamente em tais leituras, ele tratava Freud de misógino, antissemita, perverso, instigador do nazismo. A obra tornou-se o livro de não-ficção mais vendido na França em 2010. Ora, qualquer leitura mais fina de Freud faz pensar mãe e pai no complexo de Édipo como funções que vão evidentemente muito além da figura dos genitores ou cuidadores.

Deste modo, os “pró” defendem o casamento homossexual sustentando que é o olhar dos cuidadores que tece a sexualidade, a noção de origem, a história dos filhos. Insistem, ademais, em salientar a prática clínica, lembrando que há priscas eras recebem crianças adotadas por casais homossexuais que não parecem sofrer mais que as outras. Afirmam que não se pode estabelecer generalização que lhes defina sintomas específicos ou aguçados.

Parêntese: um número considerável de psicanalistas preferiu não tomar partido. Desconfiar da demanda que coloca o psicanalista em lugar de expertise que o autorize a apontar e prever o que é adequado ou não para a sociedade parece salutar. Isso não significa indiferença frente ao contemporâneo e às discussões políticas, nem repúdio aos partidários. Não significa, outrossim, calar face às concepções da psicanálise que por estes são empregadas.

Parêntese fechado, salienta-se, como determinado entendimento da psicanálise se enlaça à difundida ideia dos “contra” que veem no casamento homossexual o risco de destituição da sociedade. Para Lévi-Strauss, a proibição do incesto é fiadora da cultura – pode-se dizer do laço social. Para construir sua proposição, o antropólogo se baseou justamente nas restrições sociais às possibilidades de casamento. Para ele, não há sociedade em que nenhum tipo de casamento seja proibido.

O casamento homossexual, evidentemente, ao contrário do que propõe Flavigne, não extingue a proibição do incesto. Entretanto, parece tocar em um ponto nevrálgico, não somente da sociedade francesa, mas de uma certa concepção (inconsciente) do laço social. Todos temos um fantasma – leia-se fantasia inconsciente, concepção psíquica – do que seria o laço social, e é esse fantasma que os “contra” parecem ver posto contra a parede. Tal como constituído, é difícil imaginar um laço social em que os adultos não tomem posições muitas vezes arbitrárias sobre a vida das crianças – têm que ir à escola, respeitar os outros, tomar banho. Ou seja, depositamos neles o nosso fantasma do laço social, seja defendendo “pró” e “contra” ou equilibrando o olhar sobre o muro.

Porém, talvez uma das diferenças seja que os “contra” – psicanalistas ou não – destaquem reiteradamente supostas incapacidades dos pais-cuidadores homossexuais e não o discurso, comportamento das crianças. Deste modo, em vez de proteger as crianças, parecem querer ser protegidos por elas, colocando-as perigosamente como escudo do seus fantasmas do laço social e não o contrário.
--------------------------
*MANOEL MADEIRA | Psicólogo (UFRGS), ME em Antropologia (EHESS-Paris), ME. e doutorando em Psicanálise (Uni.Paris VII)
Fonte:  http://www.clicrbs.com.br/zerohora/01/12/2012
Imagem da Internet

Nenhum comentário:

Postar um comentário