sábado, 1 de dezembro de 2012

“A guerra contra a escrita acabou”

PEDRO GONZAGA *

 

A decisão do escritor Philip Roth de abandonar a produção literária aos 79 anos traz a perplexidade: por que deixar de escrever quando se poderia seguir escrevendo

1 - “Não tenho mais a resistência física para suportar a frustração. Escrever é frustração – frustração diária, sem falar na humilhação. Não consigo mais encarar dias em que jogo fora as cinco páginas que escrevi. Não posso mais fazer isso.” Assim Philip Roth anunciou a sua retirada do cenário literário em recente matéria do New York Times, confirmando a declaração feita anteriormente para a revista francesa Les Inrockuptiples. No auge de uma carreira frutífera, um dos mais importantes escritores vivos decide levar a vida comum de um quase octogenário. Alguma coisa em nós, no entanto, não aceita sua decisão. A alegria revelada pelo escritor no resto do artigo nos soa quase ofensiva. Ouso dizer que para alguns de nós seu ato seguirá incompreendido, quem sabe uma jogada de marketing. Então lembramos da seriedade com que escreveu os 31 livros do que agora parece ser sua obra completa.

2 - Anos atrás, quando ainda era músico em tempo integral, lembro de ter lido em uma revista especializada em saxofone (os americanos sempre souberam o que era segmentação de mercado), uma reportagem com um grande artista do instrumento, que recentemente se aposentara. Em sua casa de campo, ele recuperava os pontos altos da carreira. A certa altura, o jornalista percebeu o estojo debaixo da cama e perguntou se ele ainda tocava, ao que veio a resposta: “Nunca mais”. Diante da surpresa do interlocutor, que o via ainda cheio de saúde, o músico acrescentou: “Quando tenho saudades, ouço uma de minhas tantas gravações. Não seria mais capaz de tocar daquela maneira, por um aspecto físico, mas também vital”.

3 - Em um dos mais belos livros de amor à arte já escritos, Presenças Verdadeiras, de George Steiner, a certa altura lemos o seguinte: “O poema, a sonata, a pintura, poderiam muito bem não existir. Exceto na perspectiva trivial e contingente de uma comissão, de uma necessidade material, do uso da coerção física, o fenômeno estético, o ato de dar forma a alguma coisa, está em todos os tempos, em todos os lugares, livre para não se materializar”. O aspecto gratuito da arte, sua falta de função, sua liberdade de não ser. Por querermos tanto que ela seja, por queremos que ela exista, esquecemos do único elo da cadeia em que a criação é pura. Todo o resto, este artigo, os estudos acadêmicos, todos os satélites que orbitam em torno das obras artísticas dependem desse gesto criador, em parte sempre inexplicável, sempre inconcebível, sempre ameaçado por aniquilamento que é o abandono da escrita, da pintura, do instrumento.

4 - Não escrever, deixar de escrever quando se poderia seguir escrevendo. Movimento que nos faz pensar em primeiro lugar em desistência. Escrever é prazeroso, dizem certos manuais. A alegria da arte e outras fórmulas sofríveis que mascaram a complexa gênese daquilo que não precisaria existir. Não se pode negar que uma grande obra dará muito mais aos outros, aos leitores e espectadores, do que ao próprio artista. Por isso, somos nós os injustiçados quando um mestre desiste. Não têm eles o direito de nos privar do que ainda podem nos oferecer. Raros são os casos de um verdadeiro reconhecimento que possa compensar os criadores de alguma maneira enquanto estão vivos. Roth teve sorte de ser reconhecido desde meados da carreira como uma das mais importantes vozes a tratar dos dilemas da América contemporânea. Borges estava velho e cego quando descobriram que ali estava um dos grandes gênios do século 20. Kafka e Van Gogh, desesperançados, optaram pelo radicalismo.

5 - Bartleby e sua tentação, preferir não fazer as coisas, personagem de um conto de Melville, brilhantemente retomado pelo escritor espanhol Enrique Vila-Matas para representar os escritores que deixaram de escrever, em geral por motivos inaparentes. Para os aficionados da literatura, alguns casos clássicos de deserção logo virão à tona: Ruan Rulfo, Raduan Nassar, Murilo Rubião, e agora Roth. De certo modo, no post-it afixado no monitor do autor de A Marca Humana há uma pista importante sobre o dilema que se passa do outro lado do balcão: “A guerra com a escrita acabou”.

6 - Nenhuma esperança, nenhuma necessidade. Ter ou não público nunca levou alguém a escrever mais ou menos. O sucesso comercial serve para os best-sellers. Parece haver na verdadeira arte apenas um motor, incorruptível: a integridade. Para atingir essa integridade é preciso mergulhar em terreno movediço durante meses, anos, décadas. Não há garantias. Acertar a mão em um livro, em um tela, em uma peça, em um disco, em um filme, não é garantia de nada. Ao contrário de outras atividades humanas, asseguradas pela uniformidade da burocracia, aqui não há estabilidade. Cada nova empreitada traz consigo a certeza de uma nova e encarniçada e longa guerra. No limite, dedicar-se a uma obra é pôr-se à prova de um modo físico e anímico (e me perdoem o último termo, mas mental seria excluir os sentimentos e aquela outra parte imponderável do fazer artístico).

7 - Sabe-se que por um grave problema na coluna, Philip Roth muitas vezes escreveu de pé seus livros. Flaubert levava horas e mais horas em um punhado de frases. Balzac estourou seu coração de tanto beber café, coagido por prazos impossíveis. Escrever é físico. Rimbaud terminou o que tinha a dizer antes ainda dos 20 anos, gastando o resto de sua energia em outros fronts. Depois do último livro, Nêmesis, de 2010, pela primeira vez Roth se viu sem ter o que escrever. Escrever é anímico. Parar é admitir que um ou outro dos vetores, ou mesmo os dois, já não estão presentes. Esfacelada quedará a integridade. Assim param os gigantes quando param ainda em vida.

8 - Pensando bem, o que talvez saibamos – e isso nos entristece – é que, com um gigante a menos, faltará um tanto mais de integridade ao mundo. Quando um grande artista para, de algum modo, somos devolvidos ao plano da integridade invisível do mundo que habitamos. Certo que muitos de nós se entregam às atividades da vida diária de corpo e alma, como se costuma dizer, mas tal entrega é invisível. Uma vez inserida na necessidade do mundo, na utilidade do mundo, nossa integridade se consome envolta em fenômenos perecíveis. Por estar fora e dentro do mundo ao mesmo tempo, somente a integridade que move a obra de arte (e que nela se preserva) pode servir de espelho para revelar e salvar da consumição a síntese daquilo que é o humano.
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* Escritor e professor de Literatura
Fonte: ZH on line, 01/12/2012

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