sábado, 1 de dezembro de 2012

‘Não posso dizer que minha vida é normal, eu tenho muitas limitações’



Uma vida positiva. O produtor cultural Rafael Bolacha foi diagnosticado há três anos: blog e livro sobre a infecção pelo HIV
Foto: Leo Martins

Uma vida positiva. O produtor cultural Rafael Bolacha foi diagnosticado há três anos: 
blog e livro sobre a infecção pelo HIV Leo Martin

Aos 28 anos e soropositivo, Rafael Bolacha mostra a nova face da Aids e desfaz ilusões

No blog “Uma vida positiva” (umavidapositiva.com.br) e no livro de mesmo nome, da Editora Cidade Viva, lançado no Dia Nacional de Combate à Aids, Rafael, de 28 anos, desafia a noção de que é fácil viver com o HIV, de que se trata de uma simples doença crônica. “Não dá para achar que toma o remédio e está tudo bem. Eu não posso dizer que a minha vida é normal. É possível viver? Claro que é. Mas tem muitas limitações”.
Por que você foi fazer o teste?

Eu estava com problemas intestinais por semanas. Aí resolvi ir ao médico e ele me pediu um monte de exames, inclusive o de HIV. Eu não tinha ideia de nada, mas quando vi o HIV na lista fiquei meio apavorado. Quando fui buscar os resultados, disseram que eu ia ter que repetir um dos exames. Na hora eu me lembrei que tinha lido numa placa no laboratório que quando o teste de HIV dá positivo, é preciso repetir para confirmar. Me apavorei.

E em que momento você pegou o resultado final?
A comprovação final tive pela internet. Recebi o diagnóstico sozinho em casa, na frente do computador.

Você falou com alguém?
Na época, eu dividia apartamento com uma amiga, e o telefone tocou naquela hora e era ela. Eu dei a notícia e ela desmaiou dentro do ônibus. Mas eu não conseguia nem chorar. Depois ela chegou em casa, e chegou um outro amigo nosso também, e ficamos os três em silêncio. Aí eu saí de casa, resolvi ir até a praia. Sentei lá e chorei tudo o que eu tinha que chorar. Me dei conta de que não poderia realizar o meu maior sonho, que é ser pai. Pensei que eu não podia mais ficar vivendo de trabalhos esporádicos de dança (ele é bailarino), que eu ia precisar ter uma estrutura financeira mais sólida.

Você contou para os seus pais? Qual foi a reação deles?
Sim. O resultado saiu em dezembro e na semana do Natal voltei para Ribeirão. Minha mãe é uma pessoa muito forte, toda a minha força vem da minha família. Mas eu também não cheguei lá aos prantos. Eu busquei reunir informação para chegar e contar serenamente. Ela respirou fundo, olhou para mim e perguntou: e como funciona agora? Meu pai me olhou nos olhos e disse: te amamos e estaremos sempre com você.

Você tinha informação sobre a Aids, sabia dos riscos do sexo sem proteção?
Sim, eu tinha informação e estava atento a isso. Olha, vou dizer que mais de 90% das coisas que eu fiz, eu fiz com proteção. Mas sempre tem uns 10%. Seja porque você confia demais, seja porque você está bêbado. Acontece com todo mundo. Mas as pessoas precisam estar muito cientes das consequências disso. Porque não é achar que toma o remédio e está tudo bem. Funciona bem, claro, mas eu não posso dizer que a minha vida é normal.

Em que sentido não é normal?
Não é normal, aos 28 anos, tomar sete comprimidos por dia. Abrir mão de vários sonhos, de planos. Ir ao banheiro dez vezes por dia (entre os efeitos colaterais estão problemas intestinais). Isso é um constrangimento. São desde as menores coisas até as maiores. Sabe, a minha bebida preferida é leite. Por mim, eu tomava leite o dia inteiro. Mas não posso mais tomar por causa desse efeito colateral. E por conta desse problema, eu tive um abcesso anal. Então, outro dia, era uma sexta-feira à noite, e, enquanto todos os meus amigos estavam saindo, eu estava tomando um banho de assento. Isso não é normal. Ter mais trabalho para ter um filho também não é. É possível viver? Claro que é. Mas tem muitas limitações.

É possível ter relacionamentos?
Eu quero saber também porque eu nunca namorei. Já saí com pessoas, claro, mas é sempre com medo, com culpa. Quando penso nisso, dá um baque. Porque uma pessoa, para estar comigo, vai ter que bancar todo o resto.

Você conta no livro que esteve apaixonado duas vezes por pessoas que não quiseram ficar contigo por conta do HIV. A desinformação é grande?

De certa forma, eu consigo compreender, me colocar no lugar dessas pessoas. Eu paro e penso: e eu? Será que eu bancaria uma coisas dessas? Eu não posso julgar ninguém que tenha essa dúvida, mas, claro, é doloroso e complicado. Tento informar à pessoa o máximo que posso, falar dos riscos, das probabilidades, justamente para dar uma segurança maior. Mas isso não quer dizer que não sofra por isso. Depois da fase de contar para a família, a maior dificuldade é essa, a dos relacionamentos. É uma grande complicação.

Com o uso do coquetel criou-se a ideia de que a Aids é como uma doença crônica, com a qual é possível conviver sem maiores problemas. Muitos especialistas temem essa percepção, acham que a infecção cresce entre jovens e homossexuais por conta dessa ideia errada. Você concorda?
Acho que ficamos sem referência e as coisas ficaram meio mascaradas. Para a minha geração, as referências de Cazuza e Renato Russo já eram muito distantes. E a imagem deles não condiz com o momento atual da doença, em 2012. Então acho que faltam referências no país; os jovens trabalham muito com modelos. Sou um grande fã de séries americanas, programas como “Grey's Anatomy“, “E.R.”, que falam disso com naturalidade, isso é inserção. Aqui, num país que é referência no tratamento, não temos isso.

Dai veio a ideia do blog?
É. Comecei o blog sentindo que era uma forma de exteriorizar o que eu sentia, o que eu pensava. Mas, inicialmente, era mais para mim e para alguns amigos do que para todos. Só que eu comecei a ter muito retorno das pessoas. Como trabalho de conclusão do curso resolvi fazer uma peça, que já foi aprovada pela Lei Rouanet, estou agora buscando patrocínio. Vou fazer um balé e um documentário. Todo mundo tem feridas, né, por que escondê-las?
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Reportagem por  Roberta Jansen

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