Em passagem pelo Brasil, Göran Therborn, entusiasta dos
movimentos sociais da América do Sul diz que cientista social
progressista tem hoje poucas razões para chorar
Por Carla Rodrigues, em O Outro Lado da Notícia / Valor Econômico
Desde que o prefixo “pós” se antepôs a todos as
categorias do pensamento contemporâneo, ainda nos anos 1950, houve uma
expansão intensa do seu uso. Do pós-moderno nas artes plásticas à
pós-modernidade como generalização de todos os pensamentos que
pretenderam, ao longo do século XX, superar os conceitos modernos, foi
um salto de poucos anos e muitas denominações. Pós-estruturalista,
pós-humano, pós-gênero, pós-feminista, pós-capitalista – era como se o
“pós” pudesse revigorar de conteúdo conceitos que pareciam estar
ultrapassados em suas principais características. Uma vez revistos e
atualizados pela mágica do “pós”, esses conceitos retomam seu lugar de
valor para o pensamento.
Embora reconheça certa inflação no uso do “pós”, o sueco Göran
Therborn, 70 anos, professor emérito de sociologia da Universidade de
Cambridge, quis se valer dele como estratégia para apontar o frescor do
pensamento marxista, tão em voga no período pós-crise americana de 2008.
Na semana passada, ele percorreu o Brasil, de Porto Alegre a Belém,
passando por São Paulo, para lançar “Do Marxismo ao Pós-marxismo?”
(Boitempo Editorial), seu segundo livro traduzido no país. Admirador das
ciências sociais no Brasil, Therborn é um entusiasta dos movimentos
sociais da América do Sul, que embalam seu ideal de que “outro mundo é
possível”. “Um cientista social progressista hoje tem poucas razões para
chorar”, diz ele na entrevista a seguir:
A globalização, o neoliberalismo e todas essas transformações
que se generalizam no termo pós-modernidade podem ser pensados ainda a
partir de Marx? O que há de atual nesse pensador alemão do século XIX
que possa ser útil aos grandes dilemas do século XXI?
Göran Therborn: Primeiro, é preciso fazer algumas
classificações. A globalização é o voo da modernidade, e o
neoliberalismo é uma variante da modernidade de direita. Em outras
palavras, temos aqui mutações do modernismo e da modernidade, e não a
pós-modernidade. Sobre a globalização, estamos no mesmo terreno que
Marx, o primeiro grande teórico social da modernidade contemporânea,
como foi Baudelaire no que diz respeito à pintura e à poesia. O
“Manifesto Comunista” foi a primeira inovação mais eloquente da
globalização. Por isso, Marx foi recentemente ressuscitado, por exemplo,
por Thomas Friedmann, do “New York Times”. O economista Nouriel
Roubini, que previu a crise de 2008, reconheceu a importância de Marx
como o principal analista da dialética e das contradições do
capitalismo. O capitalismo é autodestrutivo – e digo isso sem qualquer
tom apocalíptico -, e a expansão dos baixos salários é insustentável,
como Taiwan e Hong Kong estão aprendendo agora.
“Do Marxismo ao Pós-marxismo?” é um título estranho para um
livro. Primeiro, porque faz uma interrogação que fica sem resposta.
Depois, porque introduz no vocabulário da pós-modernidade o pós-marxismo
como um conceito. Trata-se, afinal, de uma superação, de um avanço ou
de um progresso do marxismo?
Therborn: O ponto de interrogação do título se
refere a um futuro em aberto, ainda incerto. Comparado com Confúcio,
Platão, Aristóteles, Maquiavel, John Locke, Adam Smith, ou com Dante,
Cervantes e Shakespeare, Marx ainda é jovem. Ele será relido,
reinterpretado e reinvocado ainda muitas vezes no futuro. O que é
duvidoso é se haverá uma identidade coletiva para “os marxistas”. Daí o
ponto de interrogação. Para Marx, isso não significava muito. Como ele
afirmou, numa provocação: “Eu não sou marxista”.
Pós-marxismo, pós-capitalismo, pós-feminismo, pós-modernismo, pós-humanismo. O prefixo pós virou uma panaceia?
Therborn: Você está certa, houve uma inflação muito
grande deste prefixo “pós”. No entanto, o impulso intelectual
pós-modernista era extremamente desafiador e importante, com suas
investigações sobre as suposições mais básicas do nosso tempo – de
“progresso”, “desenvolvimento” etc. São questionamentos que têm sido
muito frutíferos para fins políticos, bem como para um
autoquestionamento intelectual.
O senhor cita a Universidade de São Paulo (USP) como
referência para o não conformismo ao pensamento dominante e como suporte
ao pensamento marxista de esquerda. O senhor está atualizado sobre a
produção acadêmica brasileira neste sentido? Em que um país periférico
como o Brasil pode contribuir para o desenvolvimento de teorias
alternativas?
Therborn: Tenho um grande respeito pelas ciências
sociais brasileiras, que conheço um pouco, não só da USP, mas também de
outras universidades e do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento
(Cebrap), do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e da
Fundação Getúlio Vargas (FGV). Eu acredito que a academia e a
inteligência brasileiras certamente têm contribuições muito importantes
intelectuais para o mundo.
“Sexo e Poder”, seu primeiro livro traduzido no Brasil,
discute as mudanças na instituição familiar em todo o mundo no século
XX. Em que medida a mudança na família também alterou o modo de produção
para o qual a crítica de Marx se dirigia?
Therborn: A família e os diferentes sistemas
familiares no mundo inteiro continuam a ser importantes. Como mostrei em
meu último livro, “The World” (Cambridge, 2011), menos da metade da
força de trabalho mundial está empregada numa relação direta
capital/trabalho. Um terço da mão de obra é formado por trabalhadores
por conta própria, um sexto são membros da família patriarcal ajudando
nas atividades econômicas, e de 5% a 10% estão em empregos públicos.
Ou seja, o fim do emprego industrial, que já não concentra
mais a maioria da classe trabalhadora. É a isso que o senhor atribui o
que chama de “fracassos e derrotas da esquerda”?
Therborn: Sim, a teoria de Marx se concentra nos
circuitos do capital, inclusive nos mercados transnacionais. Mas é
verdade, um desenvolvimento não ideológico das ideias de Marx tende a
destacar que a virada do capitalismo avançado em direção à
desindustrialização significou um enfraquecimento estrutural do trabalho
e, consequentemente, da esquerda.
O senhor se refere ao “encontro malsucedido entre os
manifestantes do mítico maio de 1968 e os movimentos trabalhistas”. O
que deu errado neste encontro?
Therborn: Basicamente, foi um não-encontro entre a
utopia radical do movimento estudantil, do pragmatismo, por mais de
esquerda que fosse, e do movimento sindical. Na melhor das
circunstâncias, houve um longo período de contato entre o pragmatismo
trabalhista de Lula, que se transformou, sem renegá-lo, no radicalismo
de Dilma.
O senhor diz estar interessado nos “movimentos críticos ao
modernismo que não são, contudo, defesas de direita do privilégio e do
poder tradicionais”. Que movimentos são estes? O tom geral do seu livro é
de apelo a uma renovação no pensamento da esquerda. O senhor é um
otimista?
Therborn: Os movimentos de direitos humanos, os
movimentos feministas, movimentos das crianças, movimentos homossexuais,
movimentos urbanos, movimentos de direitos de sustentabilidade. Há
certamente sinais de despertar crítico. A tendência para a desigualdade
intranacional e extrema polarização econômica levou a deslegitimação
para uma dimensão impressionante, inclusive na última reunião de Davos. A
“Primavera Árabe” colocou o capitalismo oligárquico em xeque, mesmo que
se abram fluxos internacionais de comércio e capital. A América do Sul,
exceto Chile e Colômbia, é um laboratório de transformação social. E a
direita no Chile está sob forte pressão popular, dos movimentos
estudantis e suas repercussões sociais. Um cientista social progressista
hoje tem poucas razões para chorar, mesmo que o mundo permaneça sendo
terrivelmente desigual. Outro mundo continua sendo possível.
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Fonte: http://ponto.outraspalavras.net/2012/11/30/
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