domingo, 2 de dezembro de 2012

Crise global rebigorou marxismo, diz sociólogo sueco


Em passagem pelo Brasil, Göran Therborn, entusiasta dos movimentos sociais da América do Sul diz que cientista social progressista tem hoje poucas razões para chorar

Por Carla Rodrigues, em O Outro Lado da Notícia / Valor Econômico

Desde que o prefixo “pós” se antepôs a todos as categorias do pensamento contemporâneo, ainda nos anos 1950, houve uma expansão intensa do seu uso. Do pós-moderno nas artes plásticas à pós-modernidade como generalização de todos os pensamentos que pretenderam, ao longo do século XX, superar os conceitos modernos, foi um salto de poucos anos e muitas denominações. Pós-estruturalista, pós-humano, pós-gênero, pós-feminista, pós-capitalista – era como se o “pós” pudesse revigorar de conteúdo conceitos que pareciam estar ultrapassados em suas principais características. Uma vez revistos e atualizados pela mágica do “pós”, esses conceitos retomam seu lugar de valor para o pensamento.
Embora reconheça certa inflação no uso do “pós”, o sueco Göran Therborn, 70 anos, professor emérito de sociologia da Universidade de Cambridge, quis se valer dele como estratégia para apontar o frescor do pensamento marxista, tão em voga no período pós-crise americana de 2008. Na semana passada, ele percorreu o Brasil, de Porto Alegre a Belém, passando por São Paulo, para lançar “Do Marxismo ao Pós-marxismo?” (Boitempo Editorial), seu segundo livro traduzido no país. Admirador das ciências sociais no Brasil, Therborn é um entusiasta dos movimentos sociais da América do Sul, que embalam seu ideal de que “outro mundo é possível”. “Um cientista social progressista hoje tem poucas razões para chorar”, diz ele na entrevista a seguir:

A globalização, o neoliberalismo e todas essas transformações que se generalizam no termo pós-modernidade podem ser pensados ainda a partir de Marx? O que há de atual nesse pensador alemão do século XIX que possa ser útil aos grandes dilemas do século XXI?
Göran Therborn: Primeiro, é preciso fazer algumas classificações. A globalização é o voo da modernidade, e o neoliberalismo é uma variante da modernidade de direita. Em outras palavras, temos aqui mutações do modernismo e da modernidade, e não a pós-modernidade. Sobre a globalização, estamos no mesmo terreno que Marx, o primeiro grande teórico social da modernidade contemporânea, como foi Baudelaire no que diz respeito à pintura e à poesia. O “Manifesto Comunista” foi a primeira inovação mais eloquente da globalização. Por isso, Marx foi recentemente ressuscitado, por exemplo, por Thomas Friedmann, do “New York Times”. O economista Nouriel Roubini, que previu a crise de 2008, reconheceu a importância de Marx como o principal analista da dialética e das contradições do capitalismo. O capitalismo é autodestrutivo – e digo isso sem qualquer tom apocalíptico -, e a expansão dos baixos salários é insustentável, como Taiwan e Hong Kong estão aprendendo agora.

“Do Marxismo ao Pós-marxismo?” é um título estranho para um livro. Primeiro, porque faz uma interrogação que fica sem resposta. Depois, porque introduz no vocabulário da pós-modernidade o pós-marxismo como um conceito. Trata-se, afinal, de uma superação, de um avanço ou de um progresso do marxismo?
Therborn: O ponto de interrogação do título se refere a um futuro em aberto, ainda incerto. Comparado com Confúcio, Platão, Aristóteles, Maquiavel, John Locke, Adam Smith, ou com Dante, Cervantes e Shakespeare, Marx ainda é jovem. Ele será relido, reinterpretado e reinvocado ainda muitas vezes no futuro. O que é duvidoso é se haverá uma identidade coletiva para “os marxistas”. Daí o ponto de interrogação. Para Marx, isso não significava muito. Como ele afirmou, numa provocação: “Eu não sou marxista”.

Pós-marxismo, pós-capitalismo, pós-feminismo, pós-modernismo, pós-humanismo. O prefixo pós virou uma panaceia?
Therborn: Você está certa, houve uma inflação muito grande deste prefixo “pós”. No entanto, o impulso intelectual pós-modernista era extremamente desafiador e importante, com suas investigações sobre as suposições mais básicas do nosso tempo – de “progresso”, “desenvolvimento” etc. São questionamentos que têm sido muito frutíferos para fins políticos, bem como para um autoquestionamento intelectual.

O senhor cita a Universidade de São Paulo (USP) como referência para o não conformismo ao pensamento dominante e como suporte ao pensamento marxista de esquerda. O senhor está atualizado sobre a produção acadêmica brasileira neste sentido? Em que um país periférico como o Brasil pode contribuir para o desenvolvimento de teorias alternativas?
Therborn: Tenho um grande respeito pelas ciências sociais brasileiras, que conheço um pouco, não só da USP, mas também de outras universidades e do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Eu acredito que a academia e a inteligência brasileiras certamente têm contribuições muito importantes intelectuais para o mundo.

“Sexo e Poder”, seu primeiro livro traduzido no Brasil, discute as mudanças na instituição familiar em todo o mundo no século XX. Em que medida a mudança na família também alterou o modo de produção para o qual a crítica de Marx se dirigia?
Therborn: A família e os diferentes sistemas familiares no mundo inteiro continuam a ser importantes. Como mostrei em meu último livro, “The World” (Cambridge, 2011), menos da metade da força de trabalho mundial está empregada numa relação direta capital/trabalho. Um terço da mão de obra é formado por trabalhadores por conta própria, um sexto são membros da família patriarcal ajudando nas atividades econômicas, e de 5% a 10% estão em empregos públicos.

Ou seja, o fim do emprego industrial, que já não concentra mais a maioria da classe trabalhadora. É a isso que o senhor atribui o que chama de “fracassos e derrotas da esquerda”?
Therborn: Sim, a teoria de Marx se concentra nos circuitos do capital, inclusive nos mercados transnacionais. Mas é verdade, um desenvolvimento não ideológico das ideias de Marx tende a destacar que a virada do capitalismo avançado em direção à desindustrialização significou um enfraquecimento estrutural do trabalho e, consequentemente, da esquerda.

O senhor se refere ao “encontro malsucedido entre os manifestantes do mítico maio de 1968 e os movimentos trabalhistas”. O que deu errado neste encontro?
Therborn: Basicamente, foi um não-encontro entre a utopia radical do movimento estudantil, do pragmatismo, por mais de esquerda que fosse, e do movimento sindical. Na melhor das circunstâncias, houve um longo período de contato entre o pragmatismo trabalhista de Lula, que se transformou, sem renegá-lo, no radicalismo de Dilma.

O senhor diz estar interessado nos “movimentos críticos ao modernismo que não são, contudo, defesas de direita do privilégio e do poder tradicionais”. Que movimentos são estes? O tom geral do seu livro é de apelo a uma renovação no pensamento da esquerda. O senhor é um otimista?
Therborn: Os movimentos de direitos humanos, os movimentos feministas, movimentos das crianças, movimentos homossexuais, movimentos urbanos, movimentos de direitos de sustentabilidade. Há certamente sinais de despertar crítico. A tendência para a desigualdade intranacional e extrema polarização econômica levou a deslegitimação para uma dimensão impressionante, inclusive na última reunião de Davos. A “Primavera Árabe” colocou o capitalismo oligárquico em xeque, mesmo que se abram fluxos internacionais de comércio e capital. A América do Sul, exceto Chile e Colômbia, é um laboratório de transformação social. E a direita no Chile está sob forte pressão popular, dos movimentos estudantis e suas repercussões sociais. Um cientista social progressista hoje tem poucas razões para chorar, mesmo que o mundo permaneça sendo terrivelmente desigual. Outro mundo continua sendo possível.
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Fonte:  http://ponto.outraspalavras.net/2012/11/30/

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