quarta-feira, 31 de julho de 2013

Francisco e os diletantes

ROBERTO ROMANO *

 

Sinto muito escrever algo que não entra na euforia pela visita do papa Francisco. No pânico ou arrebatamento, vale seguir Spinoza, para quem não devemos rir nem chorar com os fatos, mas compreender suas articulações, não raro despercebidas na hora. Qual lógica seguirá o simpático bispo de Roma na sua atuação mundial? Não erraremos em demasia ao retomar a História da Igreja nos últimos tempos.

"Toda nação europeia, sem a influência da Santa Sé, será levada invencivelmente à servidão ou à revolta" (De Maistre). O pensamento conservador do século 19 põe no pontífice a base da ordem social e política, premissas retomadas pelos líderes eclesiásticos em documentos e tratados diplomáticos. A síntese entre poder divino e secular permite entender os papas recentes. Em carta ao cardeal Gasparri (1929), Pio XI diz sobre o Tratado de Latrão: a Igreja e o poder civil formam uma "ordem necessariamente determinada pelos respectivos fins". Logo, "a dignidade objetiva dos fins determina necessariamente a absoluta superioridade da Igreja". O Vaticano sustentou poderes estatais, mesmo quando eles prometiam barbárie, como na Concordata (Reichskonkordat) com Hitler. O apoio ao Führer teve contrapartidas. O artigo 5.º do tratado indica: "No exercício de sua atividade sacerdotal, os eclesiásticos gozam da proteção do Estado, do mesmo modo que os funcionários do Estado". A Igreja proíbe atividades partidárias dos padres e movimentos leigos na Alemanha. Desarmados os católicos, o nazismo se fortifica. Hitler violou sistematicamente a Concordata.

No Vaticano II ocorre importante mudança na política acima. O apoio a Mussolini e a Hitler supunha extirpar liberais, socialistas e outros. A Gaudium et Spes proclama que "muitos e vários são os homens que integram a comunidade política e podem legitimamente seguir opiniões diversas (...) o exercício da autoridade política, seja na comunidade como tal, seja nos órgãos representativos do Estado, sempre deve ser realizado nos limites da ordem moral (...) de acordo com a ordem jurídica legitimamente estabelecida ou por estabelecer". Cautela diante dos líderes autoritários: "Os cidadãos (...) evitem atribuir demasiado poder à autoridade pública e não exijam dela inoportunamente privilégios e proveitos exagerados, de tal modo que diminuam a responsabilidade das pessoas, das famílias e dos grupos sociais".

Depois de Paulo VI a política vaticana vai do Concílio à Realpolitik. João Paulo II colabora para o enterro da URSS, o que libera forças democráticas. Mas, como provam M. Politi e C. Bernstein (Sua Santidade), ele foi silente em face de regimes como o de Pinochet, aliando-se a Reagan em feitos pouco defensáveis. Wojtyla/Ratzinger lançam o Termidor. "É preciso", proclama o Concílio, "reconhecer que a cidade terrena, a quem são confiados os cuidados temporais, se rege por princípios próprios". A maioridade foi reconhecida aos leigos. João Paulo II tutela os fiéis na vida pública e na Igreja. À hierarquia foi atribuído poder inaudito. Logo, a direção da Igreja gira em torno de si mesma, tolera descalabros éticos e políticos que levam à renúncia de Bento XVI. Nada foi deixado aos padres e leigos. Aumenta o êxodo rumo à indiferença religiosa, ao ateísmo.

Segundo K. Mannheim, "a Igreja Católica é a grande instituição que, pela primeira vez, planificou o lado social da cultura. Ela exibe muito saber deixando que seus integrantes externos façam experimentos na sua periferia. Quando eles fracassam a Igreja os desaprova ou excomunga; mas formas bem-sucedidas de ajuste e mudança fazem por vezes suas organizações lutarem pela própria Igreja. Assim ocorreu com as ordens monásticas e grupos missionários como Cluny e os Jesuítas". Francisco ressuscita esperanças dos que seguem a Teologia da Libertação. Mas os altares simultâneos para João XXIII e João Paulo II sinalizam uma complexa abertura pontifícia para várias saídas. Francisco mostra que não assume um discurso fechado, nem favorece a via progressista. O contentamento por seus gestos deve ser moderado pela prudência. Entusiastas não operam com a razão, mas com a vontade e o dogma, acolhidos como inquestionáveis. Quando publiquei meu doutoramento, defendido na França em 1978, João Paulo II era a esperança. Em Brasil, Igreja contra Estado, apresento análises, documentos à vista, nas quais mostro a lógica que move a Igreja moderna: afirmar sua soberania espiritual acima de Estados e sociedades, como na tese de Pio XI. O livro alerta os que imaginavam uma Igreja catequizada pelo socialismo.

Como resposta alguém proclamou, baseado apenas no desejo, "uma inegável tendência da Igreja na direção do projeto socialista, como o verificou o insuspeito historiador da Igreja R. Aubert, e outros analistas sérios" (Clodovis Boff, A Igreja da Esperança). O dito socialismo baseava-se no equívoco de identificar a tese marxista (a socialização dos meios de produção) e a Doutrina Social da Igreja (a propriedade social). Jogo semântico, para ser caridoso, o "socialismo" eclesiástico era desprovido de base histórica.

Na vida social, política, econômica ou religiosa, nada é "inegável", salvo para quem, em vez de pesquisar tendo a dúvida como corretivo, decreta, como o camarada Lyssenko, certezas catastróficas. A repressão de João Paulo II/ Bento XVI foi atenuada, mas nada indica que Francisco, que segue a Doutrina Social da Igreja, chegue ao socialismo ou prescreva heterodoxias morais ou místicas. Os governos também se acautelem: a Igreja apoia a ordem civil, mas busca acima de tudo preservar sua missão e defender seus espaços. Como diz Elias Canetti, perto dela "todos os poderosos dão a impressão de serem modestos diletantes". E diletantes enxameiam nos palácios brasileiros.
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* ROBERTO ROMANO É PROFESSOR DE ÉTICA E FILOSOFIA DA UNICAMP E AUTOR DE 'O CALDEIRÃO DE MEDEIA' (PERSPECTIVA).
Fonte: Estadão on line, 31/07/2013
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Rede Abercrombie é acusada de discriminação


ABERCROMBIE - FITCH - Paris (26)

Órgão de direitos humanos da França investiga processo de seleção baseado na aparência

A rede varejista americana Abercrombie & Fitch, famosa por seus modelos masculinos sem camisa, está sendo acusada de discriminação na Europa. A empresa é acusada de contratar jovens apenas pela boa aparência. 

NYT
 
Atendentes da Abercrombie: discriminação contra os feios
 
O órgão de defesa dos direitos humanos da França anunciou na semana passada que está investigando a cadeia que tem sede em Ohio, nos Estados Unidos.

A Abercrombie, especializada em roupas de jovens, é conhecida por suas lojas com iluminação tênue, música alta e funcionários atraentes. Os atendentes exibem a boa forma física na porta de entrada das maiores lojas nas grandes cidades do mundo.

Em uma declaração por escrito à rede americana CNBC, um porta-voz Abercrombie disse: "Nossa intenção é cumprir com as leis de cada país em que operamos, e estamos comprometidos com a diversidade e inclusão em toda a nossa força de trabalho."

Leon Glenister, advogado especializado em direito discriminação em Londres, disse à rede de notícias CNBC que o crescente interesse do público no processo de contratação da empresa poderia levar a mais desafios contra a empresa.

"O interesse na forma de recrutamento da empresa é movido mais por razões morais do que legais", disse ele. "Se a empresa diz que só quer contratar pessoas de boa aparência, eles estão em águas perigosas."

Embora não seja ilegal, a contratação de pessoas pela sua aparência pode configurar discriminação no Reino Unido e na União Europeia. A legislação proíbe as empresas de discriminar pessoas no processo de seleção por idade, raça ou deficiência.

Em uma entrevista em 2006 ao site de notícias salon.com, citado pelo órgão de direitos humanos da França, Mike Jeffries, presidente da Abercrombie, admitiu que recrutava pessoal atraente por razões de marketing.

"É por isso que contratamos pessoas de boa aparência em nossas lojas", disse ele na entrevista. "Porque as pessoas de boa aparência atraem outras pessoas de boa aparência, e queremos vender para pessoas de boa aparência", disse.

Em 2009, a estudante de Direito Riam Dean, que tem um braço protético, ganhou uma ação trabalhista contra a empresa depois de ter sido transferida para trabalhar no almoxarifado, porque não se encaixava na imagem da marca. Na época ela recebeu uma indenização de US$ 12,3 mil.

A cadeia também é criticada por sua política de dimensionamento das roupas. Ativistas argumentam que os tamanhos 'discriminam' os clientes mais gordos. Quase 80 mil pessoas já assinaram uma petição online no Change.org convidando a empresa a oferecer tamanhos maiores. 
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 Fonte: http://economia.estadao.com.br/noticias/economia-geral,rede-abercrombie-e-acusada-de-discriminacao,160511,0.htm

A espiritualidade das pedras.

 Luiz Felipe Pondé* 

 

"A modernidade é toda feita para servir ao pequeno autoritário, o "eu": ele exige mais sucesso, mais autoestima, mais saúde, mais dinheiro, mais beleza, mais celulares, mais viagens, mais consumo, mais direitos, mais rapidez, mais eficiência, mais atenção, mais reconhecimento, mais equilíbrio, melhor alimentação, mais espiritualidade para que ele não se sinta um materialista grosseiro."
O "eu" deve agir como as mulheres quando fecham as pernas em sinal de pudor e vergonha.

Meu Deus, como ter um "eu" cansa! Os místicos têm razão. Não é necessário ser um "crente" para ver isso, basta ter algum senso de ridículo para ver o quão cansativo é satisfazer o "eu". E a modernidade é toda uma sinfonia (ou melhor, uma "diafonia", contrário da sinfonia) para este pequeno "eu" infantil.

Outro dia, contemplava pessoas num aeroporto embarcando para os EUA com malas vazias para poder comprar um monte de coisas lá.

Que vergonha. É o tal do "eu" que faz isso. Ele precisa comprar, adquirir, sentir-se tendo vantagem em tudo. O "eu" sente um "frisson" num outlet baratinho em Miami. O mundo faz mais sentido quando ele economiza US$10. E o pior é que, neste mundo em que vivemos, faz mesmo sentido. Qualquer outra forma de sentido parece custar muito mais do que US$ 10.

A filosofia inglesa tem uma expressão muito boa que é "wants", para se referir a nossas necessidades a serem satisfeitas. Poderíamos traduzir de modo livre por "quereres". O "eu" é um poço sem fundo de "wants". Isso me deprime um tanto.

Como dizia acima, a modernidade é toda feita para servir ao pequeno autoritário, o "eu": ele exige mais sucesso, mais autoestima, mais saúde, mais dinheiro, mais beleza, mais celulares, mais viagens, mais consumo, mais direitos, mais rapidez, mais eficiência, mais atenção, mais reconhecimento, mais equilíbrio, melhor alimentação, mais espiritualidade para que ele não se sinta um materialista grosseiro.

Outra demanda do "eu" que enche o saco é querer se conhecer. Você conhece coisa mais chata do que alguém que tira um final de semana para fazer um workshop de autoconhecimento e aí vai para jardins "fakes" na Raposo? E pior, quem tira seis meses para se conhecer depois dos 40 anos e acha legal? O autoconhecimento só é sério quando deságua em autoironia.

O império do "eu" se revela quando vivemos pela angústia de torná-lo "resolvido". Nada é mais típico dessa angústia estéril do que alguém sempre atento às próprias dores.

Outra armadilha típica do mundinho do "eu" é a idolatria do desejo. A filosofia sempre problematizou o desejo como modo de escravidão, e isso nada tem a ver com a dita repressão cristã (que nem foi o cristianismo que inventou) do desejo. Problematizar o desejo tem mais a ver com um conhecimento sutil, fruto da experimentação que a realização do desejo sem idealizá-lo traz. A idealização do desejo é marca da condição adolescente ou reprimida.

O "eu" falante inunda o mundo com seu ruído. O "eu" mais discreto tece um silêncio que desperta o interesse em conhecê-lo. Mas hoje vivemos num mundo da falação de si, como numa espécie de contínuo striptease da alma. O corpo nu é mais interessante do que a alma que se oferece. Por isso toda poesia sincera é ruim (Oscar Wilde). O "eu" deve agir como as mulheres quando fecham as pernas em sinal de pudor e vergonha.

A alta literatura espiritual, oriental ou ocidental, há muito compreende o ridículo do culto ao "eu". Uma leveza peculiar está presente em narrativas gregas (neoplatonismo), budistas (o "eu" como prisão) ou místicas (cristã, judaica ou islâmica).

Conceitos como "aniquilamento" (anéantissement, comum em textos franceses entre os séculos 14 e 17), "desprendimento" (abegescheidenheit, em alemão medieval) e "aphalé panta" (grego antigo) descrevem exatamente esse processo de superação da obsessão do "eu" por si mesmo.

A leveza nasce da sensação de que atender ao "eu" é uma prisão maior do que atender ao mundo, porque do "eu" nunca nos libertamos quando queremos servi-lo. Ele está em toda parte como um deus ressentido.

Por isso, um autor como Nikos Kazantzakis, em seu primoroso "Ascese", diz que apenas quando não queremos nada, quando não desejamos nada é que somos livres. Muito próximo dele, o filósofo epicurista André Comte-Sponville, no seu maior livro, "Tratado do Desespero e da Beatitude", defende o "des-espero" como superação de uma vida pautada por expectativas.

Entre as piores expectativas está a da vida eterna. Espero que ao final o descanso das pedras nos espere. Amém.
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* Escreve Luiz Felipe Pondé, filósofo, prof. Universitário,  em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, 29-07-2013.
Fonte: IHU on line, 31/07/2013
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terça-feira, 30 de julho de 2013

Os falsários

João Pereira Coutinho*
 

Nós não queremos apenas que as nossas vidas sejam felizes. Queremos que essas vidas sejam autênticas 

Memórias falsas. Eis a nova descoberta científica publicada em revista da especialidade. Segundo a "Science", pesquisadores do Massachusetts Institute of Technology conseguiram implantar memórias falsas no cérebro de ratinhos. Já tinham cometido uma outra proeza no passado: apagar certas memórias. Agora, o desafio foi implantá-las. Conseguiram. 

Ainda estamos longe do Santo Graal: apagar más memórias e, se possível, conferir a cada ser humano um passado glorioso. Mas o futuro, tal como o passado, promete. Ou não promete? 

Robert Nozick (1938-2002), um dos grandes filósofos do nosso tempo, achava que não. No seu magistral "Anarchy, State, and Utopia", Nozick pedia-nos para imaginar a seguinte situação: existe uma máquina do prazer a que os seres humanos se podem ligar. E, por esse simples processo, ter prazer a vida inteira. Quem daria o primeiro passo? 

Poucos. Existe algo de incômodo na ideia de uma felicidade eterna, porém falsa. E esse incômodo tem nome: verdade. Ou, para usar uma palavra cara aos românticos, "autenticidade". 

Nós não queremos apenas que as nossas vidas sejam felizes. Queremos que essas vidas sejam autênticas e que a nossa felicidade seja o resultado de experiências, méritos ou virtudes reais. 

Se tudo fosse resumido a critérios de prazer e desprazer, ninguém hesitaria em ligar-se à máquina de Nozick. E, no entanto, a maioria hesita. 

Não conheço crítica mais devastadora ao utilitarismo nos tempos modernos. Seguindo o cálculo hedônico, o que interessa é proporcionar a maior felicidade ao maior número? 

Não necessariamente, afirmava Nozick. Se a felicidade humana não é humana, ela perde qualquer valor para nós. 

E o que é válido para a felicidade é válido para a infelicidade. Até porque a segunda é condição para haver a primeira. 

Ironicamente, uma máquina de prazer permanente deixaria até de proporcionar prazer. Porque deixaria de haver contraste com as restantes iniquidades da existência: habitaríamos apenas um estado de normalidade entediante em que nada seria importante porque nada seria valorizado em si mesmo. 

Sabemos o que é a felicidade porque sabemos o que é a infelicidade. E também porque aprendemos algo com as nossas infelicidades. 

"Aprender" é o verbo: implantar memórias falsas já seria uma aberração ética. Mas apagar as más é mais que isso: é uma aberração epistemológica. 

Sofremos como cães pelos erros que cometemos. Escolhas profissionais lamentáveis; amores cultivados e frustrados; atitudes egoístas, covardes, impensadas --quem atira a primeira pedra? 

Mas sofremos e, com sorte, aprendemos. E existe algo de libertador (e de redentor) quando seguimos em frente e somos capazes de reconhecer os mesmos dilemas, as mesmas tentações, os mesmos traços de caráter --em nós e nos outros. E, claro, as mesmas consequências prováveis de certos atos e omissões. 

É então que o passado, e sobretudo o insuportável passado, se torna nosso tutor privado: ao segredar-nos o que devemos evitar e abraçar com conhecimento de causa. 

Todos precisamos de más memórias para evitar cometer os mesmos erros. Apagar essas memórias seria uma forma de nos condenarmos a sofrimentos perpétuos. E a apagamentos perpétuos. E a sofrimentos perpétuos. E a apagamentos perpétuos. 

Talvez eu esteja sendo injusto. Talvez o objetivo das recentes descobertas seja outro: aliviar o sofrimento de soldados em situações de combate, por exemplo, apagando experiências traumáticas e colocando tardes de verão onde antes havia destruição e morte. 

Sem falar de vítimas de crimes ou acidentes para quem um "reset" mental seria uma benesse. Sobre esses casos extremos, manda a prudência que nada diga. 

Mas será preciso lembrar como as sociedades contemporâneas foram medicalizando os mais básicos sentimentos humanos --o medo, a ansiedade, a angústia-- procurando uma resposta química e imediata para eles? 

Se hoje declaramos guerra às tristezas presentes, por que não declarar outra contra as tristezas passadas? 

Quase todos recusamos a máquina de prazer de Nozick. Mas às vezes pergunto se o fazemos mesmo por questões de princípio --ou pela razão mais prosaica de que essa máquina não existe ainda. 
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* Colunista da Folha
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Fonte: Folha on line, 30/07/2013

Re-vo-lu-ci-o-ná-rios

Clóvis Rossi*
 

Mas, atenção, a revolução que o papa pede tem por base o difícil e exigente Evangelho
 
Foi assim, escandindo cada sílaba de "revolucionários", que o papa pediu que cada jovem seja. Revolucionário é uma palavra forte em qualquer contexto. Mas fica agressiva no contexto de um continente, a América Latina, em que o status quo, que o revolucionário deve forçosamente romper, é duro para as maiorias. 

É razoável supor que cada corrente política, ideológica ou eclesial puxará a brasa da palavra papal para a sua sardinha. Como eu não tenho sardinha a vender, prefiro olhar o conjunto da obra do papa no Rio de Janeiro/Aparecida para tentar entender o que ele quer dizer exatamente com essa pregação.
Suspeito que o bom revolucionário desejado pelo papa não usará nem o manual de Adam Smith nem o de Karl Marx. Usará um instrumento ainda mais potente, chamado Evangelho. 

Francisco deixou muito claro que "levar o Evangelho é levar a força de Deus para arrancar e arrasar o mal e a violência; para destruir e demolir as barreiras do egoísmo, da intolerância e do ódio; para edificar um mundo novo". 
 
Mais claro é impossível, certo? 

O grande problema para fazer uma revolução com base no Evangelho é que, no tempo de Jesus, não havia YouTube, não havia redes sociais, não havia nem sequer a mídia convencional para reproduzir fielmente as palavras de Cristo. O que chegou a nós são interpretações feitas pelos evangelistas, por sua vez sujeitas a reinterpretações de teólogos, religiosos e leigos, cada um com seu respectivo viés. 

Seja qual for a interpretação que você prefira, o certo é que a política hoje hegemônica, caracterizada pela idolatria do dinheiro, não é o mundo que o papa gostaria que continuasse, conforme ele deixou claro na entrevista a Gerson Camarotti, das Organizações Globo, difundida na noite de domingo (um belo furo). 

De resto, a encíclica "Rerum Novarum", lançada no remoto ano de 1891, já continha críticas tanto ao capitalismo como ao socialismo. 

Mas a igreja, nesses 122 anos transcorridos, não pôs de pé algum modelo alternativo. E muita gente acha que nem lhe cabe fazê-lo. 

Francisco tampouco deu pistas de qual é a revolução que ele quer que os jovens façam. Basta uma revolução espiritual "para edificar um mundo novo"? Basta cada um seguir rigidamente o exigente Evangelho? Ou é preciso revolucionar também as estruturas que sufocam não apenas os jovens, não apenas os velhos, os dois extremos de que o papa se fez porta-voz? 

Não tenho nem remotamente a pretensão de responder a essas perguntas e, francamente falando, não conheço ninguém que as tenha. 

Não foi o único ponto de interrogação que Francisco deixou em sua visita ao Brasil. Na entrevista à Globo, o papa anunciou para de 1 a 3 de outubro as primeiras respostas da comissão que ele próprio incumbiu de estudar a reforma da Cúria Romana, o coração do Vaticano. Adiantou apenas que algumas coisas que serviram no passado podem não servir hoje em dia. 

Que coisas? Primeiras respostas em outubro, quando se começará a saber se Francisco é ele também um revolucionário. 
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* Jornalista. Escritor. Colunista da Folha.
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crossi@uol.com.br

"Cura gay", modesta contribuição

Frei Betto*
 

É esperançosa a mensagem do papa, mas, ao contrário do que diz Francisco, o problema no Brasil é o lobby antigay. 
Doença é a homofobia
 
"Se uma pessoa é gay, procura Deus e tem boa vontade, quem sou eu, por caridade, para julgá-la? O catecismo da Igreja Católica explica isso muito bem. Diz que eles não devem ser discriminados, mas integrados à sociedade. O problema não é ter essa tendência. Não! Devemos ser como irmãos. O problema é fazer lobby." 

São palavras do papa Francisco ao deixar o Brasil, no voo entre Rio e Roma. A mensagem é esperançosa, mas, ao contrário do que o papa diz, o problema no Brasil é o lobby antigay, liderado pelo deputado federal Marco Feliciano (PSC-SP), presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara. 

Deputados que consideram a homossexualidade uma doença propõem a "cura gay". Querem alterar a resolução do Conselho Federal de Psicologia que impede seus profissionais de tratar homossexuais como doentes. O que é um gay? Como diz a palavra inglesa, é uma pessoa alegre. Se os homossexuais são felizes, por que submetê-los à terapia? 

Terapia é própria para obsessivos, como é o caso de quem odeia constatar que homossexual é uma pessoa feliz. Isto sim é doença: a homofobia, aliás, como toda fobia. E há inúmeras: desde a eleuterofobia, o medo da liberdade que, com certeza, caracteriza os fundamentalistas, até a malaxofobia, o medo de amar sobretudo quem de nós difere. 

Sugiro aos deputados cortar o mal pela raiz: proibir a promíscua narrativa de "Branca de Neve e os Sete Anões", a relação pedófila entre o lobo mau e a Chapeuzinho Vermelho e, na Bíblia, o relato da íntima ligação entre Jônatas e Davi, aquele que "ele amava como a sua própria alma". (1 Livro de Samuel, 18). 

Segundo censo do IBGE, há no Brasil 60 mil casais assumidamente gays. São pelo menos 120 mil pessoas que, em princípio, deveriam ser "submetidas a tratamento". Considerando que a Parada de Orgulho LGBT reúne, em São Paulo, cerca de 4 milhões de pessoas, haveria que construir uma clínica do tamanho de 50 Maracanãs para abrigar toda essa gente. 

O processo terapêutico certamente teria início com uma sessão de exorcismo, já que, no fundo, a obsessão fundamentalista considera a homossexualidade muito mais coisa do demônio do que doença. 

Outra sugestão é comprar um armário para cada gay e obrigá-lo a ficar lá dentro. Dizem os moralistas que qualquer um tem direito de ser gay, não deve é sair do armário. 

Imagino que, terminado o processo de "cura gay", haverá uma grande Parada de Ex-Gays subindo a rampa da Câmara em Brasília para agradecer aos deputados que, iluminados, aprovaram a medida.
Ainda que todos os gays sejam confinados na clínica dos deputados, de uma coisa não poderão se queixar: será divertido contar ali com shows de Daniela Mercury e sir Elton Hercules John. 

Saiba Feliciano que Alan Chambers, ex-presidente da associação Exodus International, destinada a curar gays, declarou em junho deste ano que também é gay, pediu perdão pelos sofrimentos causados a homossexuais e fechou a entidade. 

À luz do Evangelho, o melhor é seguir o conselho de santo Agostinho: "Ama e faz o que quiseres." Ou, como diz Francisco, sejamos todos irmãos. 
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* CARLOS ALBERTO LIBANIO CHRISTO, 68, o Frei Betto, é assessor de movimentos sociais e escritor, autor de "O que a Vida me Ensinou" (Saraiva) 
Fonte: Folha on line, 30/07/2013
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Receita de mãe

Carlos Heitor Cony*
 

Muito boa, antológica, a entrevista que o papa Francisco concedeu ao Gerson Camarotti, merecedora de um prêmio especial por vários motivos, pelo entrevistado e pelo entrevistador. 

Há 2.000 anos, são raríssimas as entrevistas pessoais com os chefes da Igreja Católica. Não havia veículos de transmissão e, quando surgiram jornais, revistas, rádio e TV, continuaram raríssimas. Para falar a verdade, só me lembro de três. 

Viajei com João Paulo 2º duas vezes. Bati papo com ele, mas não foi uma entrevista. Ele contou que havia aprendido a dizer em português "aquele abraço". Perguntou se colava mal repetir a saudação em seus pronunciamentos oficiais. Não me deu conselho al-gum, mas o pediu a um pecador, agnóstico profissional. 

Papa Francisco respondeu com sinceridade e coragem a todas as perguntas do Gerson. Na edição da entrevista, houve inserções dos seus pronunciamentos públicos, inclusive o que me pareceu mais veemente, quando exigiu que os jovens continuassem a protestar em todo o mundo contra uma sociedade injusta e violenta. Chegou a dizer, em público e na entrevista pessoal, que o jovem calado não é do seu agrado. 

Reconheceu os pecados da igreja, ele próprio se admitiu pecador. Não será fácil reformar a Cúria Romana, poderá até se tornar trágico --já houve precedentes ao longo da história. 

A sua primeira visita internacional foi mais do que um sucesso. Ele chegou a pedir desculpa ao prefeito do Rio pela "bagunça" que provocou na cidade. A culpa não foi dele, mas das autoridades locais, que se mostraram incompetentes para enfrentar um even- to de nível mundial. 

A palavra que Francisco mais falou na entrevista foi "proximidade". A mãe que segura o filho no colo e fala com ele no peito, e não por meio de cartas e homilias. Valeu. 
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* Jornalista. Escritor. Colunista da Folha
Fonte: Folha on line, 30/07/2013
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O impossível é o sobrenome do medo

FABRÍCIO CARPINEJAR*

Perdemos mais tempo arrumando desculpas do que vivendo.

Perdemos mais tempo adiando do que aceitando a dificuldade.

Perdemos mais tempo explicando a desistência do que enfrentando o sim.

Eu garanto que a fuga dá mais trabalho do que se encontrar. Porque estaremos longe, mas com saudade. Porque estaremos protegidos, mas vazios. Porque estaremos aliviados, mas entediados.

A vida é simples, milagrosamente simples.

A esperança é firmeza. Consiste em seguir adiante mesmo com pânico, mesmo com receio.

Não há como acalmar o coração senão vivendo.

Parece que nunca conseguiremos fazer, mas vamos fazer, acredite, toda a vida foi feita de sustos bons.

Somente tememos o que é importante. Somente temos dúvidas do que é essencial. Somente entramos em crise por enxergar com clareza a dimensão de nossa escolha.

Os riscos valorizam a recompensa.

Viver não é para solitários. Sempre tem alguém nos chamando para nos acompanhar no perigo.

Eu pensei que nunca percorreria o corredor de minha infância caminhando, mas o vô me esperava do outro lado. Eu caí e ele me levantou com suas mãos de regente.

Eu pensei que nunca me manteria equilibrado numa bicicleta, mas meu pai fingiu que segurava a minha garupa e pedalei de olhos fechados com o vento me guiando.

Eu pensei que nunca aprenderia a ler e a escrever, mas a letra da minha mãe foi a escada para as histórias.

Eu pensei que nunca teria uma namorada, mas o beijo veio distraído no recreio da segunda série.

Eu pensei que nunca conseguiria nadar, mas os braços foram se revezando até atravessar a piscina.

Eu pensei que nunca passaria no vestibular, mas sacrifiquei noites e pesadelos para um lugar na faculdade.

Eu pensei que nunca teria filhos, eu pensei que nunca dividiria a casa com alguém, eu pensei que nunca seria dependente do olhar de uma mulher, eu pensei que nunca teria dinheiro, eu pensei que nunca seria feliz.

Eu pensei, mas fui fazendo. Fazendo. Fazendo.

O impossível é apenas o sobrenome do medo.

Você acha que somos impossíveis, mas é do impossível que o amor gosta.

O impossível é inesquecível.

O impossível é o possível repartido. O impossível é o possível a dois.
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* Poeta. Escritor. Cronista da ZH
Fonte: ZH on line, 30/07/2013
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Uma frase, mil interpretações

FRANCISCO E OS GAYS

Uma frase pronunciada nos céus causou um rebuliço planetário ontem. O papa Francisco voltava à Itália, após a estada no Brasil para a Jornada Mundial da Juventude, quando disse, em entrevista coletiva a jornalistas dentro do avião da Alitalia: “Se uma pessoa é gay, procura Deus e tem boa vontade, quem sou eu para julgá-la?”.

Os reflexos foram imediatos à divulgação do pronunciamento do Papa. Grupos gays e padres progressistas comemoraram, notícias circularam com mensagens positivas sobre o começo da aceitação da homossexualidade no catolicismo. Nem tanto, nem tão pouco. Ainda que possa ter sido a melhor receptividade de um papa aos gays na história, a homossexualidade ainda está longe de ser tolerada pelo Vaticano.

Ao mesmo tempo em que afirmou que não se deve marginalizar os gays, o Pontífice reiterou que as relações entre pessoas do mesmo sexo não passaram a ser aceitas pela Igreja. Ainda assim, há vaticanistas que veem uma abertura sem volta nessa reflexão. É o caso do frei franciscano Jorge Hartmann, que trabalhou por três anos na Rádio do Vaticano e hoje é comissário da Terra Santa no Rio Grande do Sul. O frei diz que a “porteira está aberta” para a discussão de outros tabus, como a ordenação de homens casados.

– O Papa mandou a Igreja ir ao encontro do povo. Bem aquilo que Jesus fazia. Mas não temos pessoas. Aí vem a questão da ordenação de homens casados – aponta Hartmann.

Entre estudiosos, a frase de Francisco não esteve impregnada de grande novidade. Leandro Chiarello, diretor da Faculdade de Teologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), citou as divergências entre o estilo do argentino e o de seus antecessores (leia abaixo) como a grande causa para o impacto da frase. Espontaneidade, improvisação e proximidade são características claras que em pouco tempo se tornaram uma marca do “papa latino”, que, para os religiosos europeus mais ortodoxos, é pejorativamente um “moderninho”.

– Não é que seja novidade o que o Papa disse. É o modo como ele fala. Ele tem se apresentado como um legítimo pastor, que conversa com suas ovelhas paroquianas – diz Chiarello.

Satisfeitos, ativistas do movimento gay exaltaram o potencial de conscientização do discurso. Membro do Diversidade Católica, grupo carioca formado por leigos que buscam a inclusão de homossexuais na Igreja, Cristiana Serra também destacou o contraste entre as palavras de Francisco e as de ocupantes anteriores do cargo.

Ativistas louvam novo discurso

Segundo ela, Francisco não sinalizou qualquer mudança de princípios, mas deixou evidente a condenação da violência e da exclusão.

– Embora a doutrina diga que é preciso acolher o gay com respeito, por parte da hierarquia e dos fiéis nem sempre era isso que a gente via. Francisco vem criticando as pessoas que tranformam a Igreja numa instância de vigilância. Falar abertamente pela acolhida e pelo respeito traz uma grande mudança – avalia Cristiana.

Célio Golin, coordenador do Nuances – Grupo pela Livre Expressão Sexual, ficou surpreso com as respostas do Papa. Mas ele evita prever avanços na abordagem de questões como o casamento gay.

– É a posição do Vaticano ou é uma posição mais individual do Papa? Essa é a pergunta que ainda não tem uma resposta – afirmou Golin.


Dom Zeno Hastenteufel

Bispo da Pastoral Familiar da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (Reg. Sul 3)

Não achei nada especial. Falo isso na minha diocese há muitos anos. Mas isso não significa aprovação de casamento gay. O Papa não falou sobre isso. Ele falou que a pessoa que ama Deus e segue os mandamentos não tem problema nenhum. Não é que eu seja contra o casamento gay. O casamento católico cristão é feito para homens e mulheres. Nunca vai ter um sacramento do matrimônio gay. Isso não vai ter. Pode haver, como já está havendo, uma convivência gay, um comprometimento mútuo perante a lei.

Maria Berenice Dias

Presidente da Comissão da Diversidade Sexual da Ordem dos Advogados do Brasil

Nossa, gostei tanto da declaração do Papa! Segue o que ele tem demonstrado em suas manifestações, de absoluta inclusão e aceitação. Claro que isso não revela aceitação ao vínculo homoafetivo, é a aceitação da pessoa, a Igreja faz essa distinção. Mas não dá para deixar de reconhecer que é um avanço. Ao menos ele não emitiu um juízo negativo. Ele tem se mostrado muito poroso a avanços, a novidades, até incitando os jovens a se manifestarem, reivindicarem seus espaços de poder. Acho que os gays se sentem, no mínimo, reconfortados.

Dom Dadeus Grings

Arcebispo metropolitano

Essa foi sempre a doutrina da Igreja. Achei positivo, mas não tem algo novo ou inusitado. Alguns nascem com uma tendência para esta linha (homossexual). Se a pessoa tem uma tendência inata, tanto hétero quanto homossexual, isso se aceita. O problema é quando há escândalo. Não é privilégio dos gays fazer escândalo, os héteros também fazem. Quando os gays fazem escândalo em público, como lá no Rio, durante a Jornada, quebrando imagens de santo, eles querem tumulto. A pessoa é pessoa em si mesma, não pelo sexo.

Norton Cezar Dal Follo da Rosa Junior

Psicanalista, membro da Assoc. Psicanalítica de Porto Alegre

Ele lança a questão a todos nós: quem é ele e quem somos nós para julgar a homossexualidade? O ponto chave nessa declaração é abrir mão da ideia de julgamento da sexualidade humana, seja ela qual for. Ele também diz que não podemos marginalizar as pessoas. Não é mais possível hoje qualquer ideia de marginalização da homossexualidade. Por muitos anos, a Igreja tomou a homossexualidade como pecado, desvio de norma, déficit moral. Ele começa a colocar em cena alguns problemas que até então eram internos da Igreja.

Carlos Magno

Presidente da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT)

Fiquei feliz com a declaração, me surpreendeu. Só pelo fato de não atacar a comunidade gay já ajuda muito. Já me dá uma esperança de que a igreja possa, futuramente, mudar. Acho que abre uma porta, uma esperança. A Igreja precisa assumir o debate sobre os direitos da comunidade, não pode mais ter essa posição tão fechada, de exclusão. A Igreja não está dialogando com a sua própria base. Tem muito homossexual na base da Igreja. Tem famílias com filhos ou algum outro parente, também católico, que é homossexual.

Frei Luiz Carlos Susin

Professor de Teologia na PUCRS

Não é uma mudança do ponto de vista moral, a mudança é de ordem pastoral. É extremamente positiva para marcar uma posição, não de ordem normativa, mas de ordem pastoral, de respeito, de confiança. Ele tem uma visão que não é a de querer fazer frente ao problema como se fosse o dono da verdade. Confia na consciência e na intenção de cada um de buscar o caminho mais certo para a sua vida. Não é que o Papa vai dizer que pode ou não pode o casamento gay. A meu ver, ele está reconhecendo que isso não compete à Igreja.

Cristiana Serra

Integrante do grupo Diversidade Católica

A gente ficou muito feliz. Na verdade, o que Bergoglio fez foi confirmar o que, há anos, já é a doutrina oficial. Muitas vezes, a gente tem uma visão da Igreja como se fosse homogênea, e ela não é. Não pode haver violência e exclusão. Muitas vezes as pessoas criticam a Igreja, com razão, por ter atuado como instância de poder e de controle, e daí um papa, no início do século 21, diz que não cabe a ninguém julgar. Ao mesmo tempo em que isso é uma total e absoluta novidade, é o que está na mensagem original, no fundamento da fé católica.

Jorge Hartmann

Frei franciscano e comissário da Terra Santa no Rio Grande do Sul

O Papa abriu um leque de possibilidades, e agora com a porteira aberta, vai ser difícil segurar. É um tabu enorme, mas, ao se referir com muita franqueza e informalidade ao assunto dos gays, ele abre caminhos novos dentro daquele temas mais polêmicos. Isso sugere à Igreja aprofundar, trocar ideias e discutir o que será um longo caminho. Eu não me espantaria se o Papa convocasse um concílio: faz 50 anos do último. O concílio dá a possibilidade de questionar toda a estrutura eclesial, e dá uma credibilidade ímpar.

Célio Golin

Coordenador do Nuances – Grupo pela Livre Expressão Sexual

Me surpreendeu positivamente. A frase é forte se comparada com as posições que o Vaticano sempre teve. Os outros papas não iam nessa linha. Eram críticos à homossexualidade. Essa posição dele parece abrir a possibilidade de outro entendimento por parte da religião. Acho que influenciará as pessoas que acreditam no discurso da Igreja Católica. Mas será que essa é a posição do Vaticano ou é uma posição mais individual do Papa? Essa é a pergunta que ainda não tem uma resposta.

Roberto Francisco Daniel

O padre Beto de Bauru (SP), excomungado pela Igreja por declarações polêmicas

A declaração de um Papa, dizendo quem é ele para julgar se uma pessoa é gay e procura Deus, já é uma abertura muito grande em termos de reconhecimento como ser humano, sem criar nenhum tipo de julgamento que possa levar a um preconceito. Isso deveria ser tratado com a maior naturalidade. Acredito que o Papa pode ajudar a mudar as estruturas da Igreja. Olha aquela declaração dele, de que o pastor deve cheirar a ovelha. O padre tem que cheirar a gente, estar no meio do povo, tem que fazer compras no supermercado, conviver com as pessoas.

andre.mags@zerohora.com.br   larissa.roso@zerohora.com.br
ANDRÉ MAGS E LARISSA ROSO
OS OUTROS PAPAS
JOÃO PAULO II (1978-2005)
Os dois últimos pontífices condenavam a homossexualidade
- Foi implacável com os gays, as liberdades sexuais, o aborto e a contracepção. Em seu pontificado, a Igreja foi inflexível em relação a esses temas, sequer admitindo o uso de preservativos.
– O homossexualismo é uma ofensa aos cristãos – disse, ao falar a uma multidão na Praça de São Pedro, no ano 2000.
BENTO XVI (2005-2013)
- Manteve a rigidez quanto à moral. Como cardeal, Joseph Ratzinger foi um dos pilares do pontificado de João Paulo II nessa linha. Em sua gestão, o Vaticano organizou conferências para frear a legalização de casamentos gays.
– A Igreja classifica os casamentos homossexuais como imorais, artificiais e nocivos – declarou Bento.
O VATICANO
Trechos do Catecismo da Igreja Católica que tratam de Castidade e Homossexualidade
“Apoiando-se na Sagrada Escritura, que os apresenta como depravações graves, a Tradição sempre declarou que ‘os atos de homossexualidade são intrinsecamente desordenados’. São contrários à lei natural, (...) não podem, em caso algum, ser aprovados.”
“Um número considerável de homens e de mulheres apresenta tendências homossexuais. Devem ser acolhidos com respeito, compaixão e delicadeza.”
“As pessoas homossexuais são chamadas à castidade.”
Fonte: Fonte: www.vatican.va
A IMPRENSA
THE HUFFINGTON POST
A fala de Francisco repercutiu em jornais de todo o mundo
- “Avanço: o Papa está OK com os gays”
CORRIERE DE LA SERA
- “Francisco: ‘Quem sou eu para julgar um gay?’”
THE NEW YORK TIMES
- “Papa diz que não quer julgar os católicos gays”
EL PAÍS
- “O Papa, ao voltar do Brasil: ‘Quem sou eu para criticar os gays?’”
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Fonte:  http://www.clicrbs.com.br/zerohora/jsp/default2.jsp?uf=1&local=1&source=a4216919.xml&template=3898.dwt&edition=22453&section=1015

O estético, o ético e o sacro: breve "excursus" sobre a encíclica "Luz da fé"

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O estético, o ético e o sacro representam a evidência simbólica da consciência crente na sua tematização estética e ética. De acordo com a hermenêutica gadameriana, a arte e religião, o belo e mito, estão na base da experiência hermenêutica originária (Verdade e Método). Esta manifestação do sentido originário presente nas coisas interpela o sujeito humano que vive na história segundo o dinamismo interior. Assim «a interioridade torna-se tema de reflexão e apropriação precisamente através da qualidade espiritual à qual a exterioridade sensível, mediante a ressonância do sentimento e o simbolismo da imaginação, dirige a consciência» (P. Sequeri). A qualidade estética da experiência crente está profundamente relacionada com a descoberta da interioridade no processo de hominização e humanização.

Os estados interiores, as imagens que povoam a nossa mente, resultantes de representações, pensamentos e ideias, provêm do sentimento das emoções que influenciam de algo modo o nível de confiança que o ser humano atribui a si mesmo e aos outros. A interioridade – que aqui podemos estabelecer paralelamente com a mente – ganha qualidade espiritual na medida em que é capaz de aliar a si a sensibilidade cristalizada no sentimento e na imaginação. A qualidade espiritual, o sentimento e a imaginação não são apenas componentes constitutivos da consciência mas a sua condição cognoscitivo-prática. A consciência cristalizada na emoção, no sentimento, no desejo, no afeto funda a dimensão estética que é o âmbito da sensibilidade da consciência. 

A perceção do sentir, ou perceção da emoção, dá-se na consciência estética enquanto categoria que explicita o affectus fidei, o afecto da fé, ou a reapropriação teórica e prática dos diversos modos em que se percepciona o manifestar-se de Deus. A estética teológica assim entendida estabelece a «relação entre o teológico e o modo da percepção. Porque não basta olhar, há modos e modos de olhar; não basta tocar, há modos e modos de tocar» (P. Sequeri). Isto supõe que à experiência estética, à experiência da beleza evocativa da justiça originária que conduz ao cumprimento da promessa de sentido último, seja subjacente à inteligência e à vontade humana. É neste contexto que emerge a percepção do sacro que institui uma relação diferenciadora com a realidade. Esta percepção do sacro insere-se na justiça da afeição de Deus «porque sem nenhuma referência a uma origem divina não posso ser perfeitamente justo, porque sem este referimento, sem uma não apropriação do género, colocar-me-ei no lugar de juiz supremo, de mestre da justiça e isto é início de toda a espoliação» (F. Hadjadj).

A consciência estética supõe portanto a consciência crente e a consciência ética. Sem estas instâncias não é possível colher a experiência estética no seu núcleo metafísico e universal. O perigo subjacente é a degeneração do belo em sedução, do medo em pânico, da alegria em histerismo, e assim por diante. Portanto, a experiência de beleza que o sujeito faz está profundamente ligada ao sentido da justiça e da verdade, isto é ao saber originário da consciência, a uma metafísica dos afectos, que subtrai o humano ao útil, ao funcional e ao poder sedutor incontrolável da imediateza. É verdade quando Pierre Levy afirma que «se o mundo humano subsistiu até hoje é porque sempre houve justos suficientes. Porque as práticas de acolhimento, de ajuda, de abertura, de atenção, de reconhecimento, de construção, acabam por ser mais numerosas ou mais fortes do que as práticas de exclusão, de indiferença, de negligência, de ressentimento, de destruição».

Na verdade, a autêntica experiência estética situa-se ao nível da qualidade espiritual do humano e não no sentido primário do usufruto, do gozo sentimental. A beleza sem a bondade e a inteligência é um estéril sentimento, momento sedutor que afasta a verdade das coisas, colocando-a ao nível de um simples jogo de sedução. A consciência estética está profundamente ligada à experiência religiosa e não tanto ao gozo imediato de uma obra de arte. Se a beleza não invoca a justiça e a verdade originária inscrita no coração humano converte-se em banal encantamento, sedução sentimental, aparência de bem, auto-referencial. À estética teológica caberá fazer apelo à interioridade humana, mantendo em relação a dimensão corpórea (cognitiva) e a dimensão espiritual (afectiva) do sentir. Por exemplo, a música enquanto «ciência da anima» tem a missão de explicitar, invocar e discernir a qualidade sensível e espiritual da experiência humana e religiosa. A música surge como a evidência simbólica da consciência crente. A música como síntese do sensível leva o humano a sentir uma experiência originária vital, libertando o seu imaginário frequentemente preso às palavras e gestos, a ritos e representações. 

Há portanto, aqui uma ressonância afectiva e cognitiva que liberta a interioridade humana e a predispõe para o acolhimento da Revelação. A «fé é, substancialmente, escuta emocionada da palavra de Deus» (Ricotta), ou melhor: «reconhecimento que se nutre de agradecimento» (Sequeri). A razão teológica apresenta uma evidência simbólica (ético, símbolo e rito) que faz apelo ao reconhecimento a partir da interioridade do sujeito mas ao mesmo tempo o dispõe para uma abertura re-memorativa à Tradição, a um existir que o precede e funda. Em parte, poder-se-ia ver neste reconhecer-se (sentir-se) reconhecido uma certa receptividade passiva do sujeito. Mas a evidência simbólica da razão teológica é mais do que uma ideia ou uma representação de um ideal. Ela assume, na verdade, uma figuração ontológico-hermenêutica do princípio verdade/justiça da ordem afectiva instaura pelo ágape livremente oferecido de Deus. 

O «dar-se da Vida como autoafeição pática cruza-se com o próprio poder da incarnação» (Viola), visibilidade do invisível, o Logos crístico que revela, na sua configuração histórico-hermenêutica. A consciência estética (beleza) desenvolve uma evidência simbólica (rito, símbolo, ethos) capaz de ordenar os afectos, de manifestar a vida invisível, inconsciente, ao si humano consciente, restituindo-o a sua afectividade originária. Na verdade, uma «semelhante fenomenologia do espírito-vida, no corpo-mundo, poderá chegar a tocar a realidade da vida espiritual, porém, somente aonde o espírito seja compreendido, na sua acepção mais originária, como vida gerada no logos da afeição e libertada pela justiça do sentido» (Sequeri). Sem racionalidade, sem afecto e sem o justo sentido da existência a mente humana permanece à deriva de si e dos outros. Fica a interrogação apelativa: «aquilo que se comunica na Igreja, o que se transmite na sua Tradição viva é a luz nova que nasce do encontro com o Deus vivo, uma luz que toca a pessoa no seu íntimo, no coração, envolvendo a sua mente, vontade e afectividade, abrindo-a a relações vivas na comunhão com Deus e com os outros»? (Carta Encíclica Lumen Fidei, 40).
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Texto de João Paulo Costa
© SNPC | 29.07.13
Fonte:  http://www.snpcultura.org/o_estetico_o_etico_o_sacro_luz_da_fe.html - Site de Portugal.

Leonardo Boff refaz suas contas com a história (e erra)

O magistério de Bergoglio não reabilita a Teologia da Libertação: ele é muito mais revolucionário
Por Alfonso M. Bruno

O ex-frade franciscano Leonardo Boff, depois de pendurar a batina por causa da condenação das suas teorias pela Congregação da Doutrina da Fé (evidentemente, a regra do centralismo é aceita nos partidos comunistas, mas não na Igreja...), reencontra a honra das manchetes europeias em entrevista concedida a Andrea Tornielli para o jornal La Stampa, de Turim, em 25 de julho.

O ex-religioso brasileiro retorna do esquecimento em que tinha caído depois que saíram de moda tanto a atração pelos pensamentos exóticos de matriz terceiro-mundista quanto a vigência da ortodoxia marxista-leninista, que, após a queda do muro de Berlim, sobrevive apenas na serra tropical de Cuba.

Leonardo Boff retorna fazendo elogios a ninguém menos que o papa. É uma alegria vê-lo reconciliado com a Igreja, mas parece pouco honesta, do ponto de vista intelectual, a sua tentativa desajeitada de contrabandear alguns aspectos do magistério de Bergoglio para as vizinhanças da teologia da libertação.

O erro do ex-frade, que, dada a sua formação acadêmica, dificilmente foi cometido com boa fé, pressupõe a remoção de um elemento central do ensinamento do papa, que consiste no constante apelo à responsabilidade ética individual de cada pessoa. Isto não significa, é claro, negar a existência e a gravidade do pecado social, que o bispo de Roma está fustigando com grande vigor (embora, para sermos honestos, nenhum dos seus antecessores tenha jamais deixado de fazê-lo também).

A linha divisória entre Boff e Bergoglio é a pretensão, compartilhada por todos os "teólogos da libertação", de considerar irrelevante o pecado individual, justificando-o com a injustiça das condições históricas em que ele foi cometido.

O atual papa se posiciona em uma perspectiva exatamente oposta: ao convidar os jovens a se rebelarem contra a injustiça, ele o faz a partir de um exame da consciência de cada indivíduo.

O pecado social, portanto, se qualifica como o resultado de inúmeras culpas individuais, nas quais incorre qualquer um que se recusa a assumir as suas responsabilidades para com a sociedade humana.
De acordo com Boff e com os seus colegas, deve-se, em vez disto, prosseguir na direção oposta: a teologia moral se limitaria à análise das condições sociais que, na opinião deles, coagem sempre e necessariamente as escolhas pessoais.

Se por um lado eles podem não aceitar o marxismo na sua pretensão de reduzir toda a realidade à dimensão material, eles acabam, por outro lado, aderindo às suas consequências, ao acreditarem que o bem consiste na mudança revolucionária da estrutura econômica e o mal na sua preservação. Seria moralmente correto, desta forma, somente o compromisso revolucionário de cada um, independentemente do seu comportamento individual: acaba-se caindo, assim, num maquiavelismo barato.

A negação da esfera espiritual, uma negação que é própria do marxismo, determina sempre a abolição de toda distinção moral.

Diante disto, as religiões, todas as religiões, acomunadas no desprezo pelo chamado "ópio do povo", concordaram em restabelecer a verdade, reconduzindo para dentro do homem o conflito em que a humanidade se debate; ou seja, reconduzindo-o para a sua consciência.

Com esta base, e não com base na cansada repetição das fórmulas marxistas que Leonardo Boff e Fidel Castro ainda intercambiam nos seus diálogos senis, é que podemos realizar a revolução que o mundo oprimido pela injustiça está esperando.

Bergoglio convidou os jovens de todo o mundo, no Rio de Janeiro, a se revoltarem contra a injustiça: este apelo, sem tirar nada do seu significado espiritual, produzirá certamente o retorno ao compromisso de uma geração que parecia irremediavelmente afastada dele.

Em apenas um ponto Boff tem razão: quando diz que a devoção popular a que o papa se vincula não é "pietismo", mas "preserva a identidade do povo" contra a homologação forçada a que somos condenados pela especulação.

Esta, juntamente com a mobilização das consciências, constitui o outro recurso de quem não aceita a injustiça do atual status quo: a libertação dos povos passa pela plena reapropriação da sua identidade; quem não se reconhece numa comunidade não pode exercitar a auto-determinação.

Mesmo aqui, no entanto, não se pode esquecer que o marxismo foi uma tentativa de homologação forçada, que se manifestou também, mas não apenas, na perseguição antirreligiosa.

As palavras de Boff ainda representam a evidência do poder de convencimento próprio do magistério de Bergoglio: longa vida, pois, ao bispo de Roma!
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 Fonte: RIO DE JANEIRO, 29 de Julho de 2013 (Zenit.org) -

Para uma espiritualidade terrena

Anselm Grün*
 
Quem ignora as suas necessidades, permite que a sua espiritualidade trace caminhos agressivos. A agressividade contra si mesmo conduz à dureza na relação com os outros. Quem reprime as suas próprias dúvidas, luta contra todos aqueles que não acreditam ou acreditam de forma diferente e contra aqueles que escolhem outro caminho espiritual.

Só quem encontra a coragem de descer ao reino das sombras da sua própria repressão se livra de tais divisões. E então passará a lidar de forma misericordiosa consigo e com os outros. Deixará de projetar o seu lado reprimido nos outros, e percorrerá com o caminho da mudança interna juntamente com eles.

Espiritualidade terrena significa ainda outra coisa para mim. Ela tem formas concretas. Ela não se passa apenas na cabeça ou nas emoções. Ela não está suspensa sobre a realidade, mas encontra na vida de todos os dias a sua expressão. Exprime-se em rituais purificadores e numa cultura de vida cristã.

Eu vejo hoje muitos cristãos que estão suspensos de Deus e das suas experiências profissionais. Mas a sua vida não espelha nada de Deus. A sua piedade não muda a sua vida. Ela não é visível no exterior. O caminho espiritual precisa de formas muito concretas para ser visível aos outros, mas acima de tudo para nos mudar.

Precisamos de uma cultura de vida cristã. O espírito quer tornar-se carne. A espiritualidade precisa de visibilidade. Se um pregador fala de amor de Deus, mas a sua face exprime brutalidade, não convence as pessoas. Não tem qualquer efeito se alguém delira de tão crente e confiante, e os seus ombros exprimem medo. As pessoas querem ver e experimentar espiritualidade.

Há a bonita história do rabi judeu, a quem as pessoas não acorriam para ouvir a história da sua vida, mas para ver como ele apertava os sapatos. Na forma delicada como ele apertava os sapatos, as pessoas reconheciam que ele era um homem espiritual.

Às pessoas, hoje, não interessa em primeira linha a verdade das palavras, mas a aparência de uma pessoa e aquilo que ela irradia. É no seu corpo, nos seus olhos, no seu contacto com as coisas, que se vê se ela está realmente penetrada pelo espírito de Deus.

Durante a celebração da missa e na própria sacristia, nota-se pela atitude do sacristão se existe espiritualidade na sua comunidade. Quando o cálice e os seus panos estão sujos, então sinto a falta de atenção, que se insinua também no encontro com Deus. Nesta paróquia celebram-se missas, mas fala-se de Deus de forma tão insensível, é-se tão pouco atencioso com os rituais e os objetos litúrgicos que isso não passa despercebido às pessoas. Não é naquilo que transmitimos que a nossa fé se torna visível, mas naquilo que somos, naquilo que transmitimos para o exterior.

A espiritualidade terrena de São Bento leva a Terra a sério. Aqui na Terra mostra-se se o Céu está aberto sobre nós. Na minha carne está escrito se Deus habita em mim. Na minha cultura de vida vê-se se eu sou espiritual ou não. 

A espiritualidade terrena também tem um aspeto comum. Ela consegue - como Norbert Lohfink diz - uma cultura cristã contrária, uma cena espiritual alternativa. Ela tem um carácter público. Torna-se visível na forma como o serviço religioso é celebrado. Aí as pessoas podem observar espiritualidade ou não. A espiritualidade terrena é visível no aspeto dos edifícios, na forma como os quartos estão mobilados, como os jardins estão dispostos, como os hóspedes são recebidos, como as pessoas se relacionam entre si.

Para muitos, isto pode parecer tudo regulamentação interior. Mas São Bento alerta-nos hoje para nos protegermos de grandes palavras, quando estas não estão revestidas de vida. A palavra quer tornar-se carne. Cristo desceu dos Céus para tornar o Céu uma realidade terrena, para apresentar a Terra de forma mais habitável ou mais humana. A espiritualidade tem de se tornar terrena, para poder modificar a Terra.
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* Anselm Grün é monge beneditino e escritor alemão, Anselm Grun é um dos maiores conselheiros espirituais da atualidade.
In Bento de Núrsia, ed. Paulinas/Portugal
Fonte: http://www.snpcultura.org/para_uma_espiritualidade_terrena.html 29.07.13
Imagem da Internet

A refundação do Brasil? O sentido oculto das manifestações de rua

Leonardo Boff*
 
O que o povo que estava na rua no mês de junho queria, em último término, de forma consciente ou inconsciente? Para responder me apoio em três citações inspiradoras.

A primeira é de Darcy Ribeiro no prefácio ao meu livro O caminhar da Igreja com os oprimidos (1998): “Nós brasileiros surgimos de um empreendimento colonial que não tinha nenhum propósito de fundar um povo. Queria tão somente gerar lucros empresariais exportáveis com pródigo desgaste de gentes”.

A segunda é de Luiz Gonzaga de Souza Lima na mais recente e criativa interpretação do Brasil: A refundação do Brasil: rumo à sociedade biocentrada (São Carlos 2011): “Quando se chega ao fim, lá onde acabam os caminhos, é porque chegou a hora de inventar outros rumos; é hora de outra procura; é hora de o Brasil se Refundar; a Refundação é o caminho novo e, de todos os possíveis, é aquele que mais vale a pena, já que é próprio do ser humano não economizar sonhos e esperanças; o Brasil foi fundado como empresa. É hora de se refundar como sociedade” (contra-capa).

A terceira é do escritor francês François-René de Chateaubriand (1768-1848): “Nada é mais forte do que uma ideia quando chegou o momento de sua realização”.

Minha impressão é que as multitudinárias manifestações de rua que se fizeram sem siglas, sem cartazes dos movimentos e dos partidos conhecidos e sem carro de som, mas irrompendo espontaneamente, queriam dizer: estamos cansados do tipo de Brasil que temos e herdamos: corrupto, com democracia de baixa intensidade, que faz políticas ricas para os ricos e pobres para os pobres, no qual as grandes maiorias não contam e pequenos grupos extremamente opulentos controlam o poder social e político; queremos outro Brasil que esteja à altura da consciência que desenvolvemos como cidadãos e sobre a nossa importância para o mundo, com a biodiversidade de nossa natureza, com a criatividade de nossa cultura e como maior patrimônio que temos que é o nosso povo, misturado, alegre, sincrético, tolerante e místico.

Efetivamente, até hoje o Brasil foi e continua sendo um apêndice do grande jogo econômico e político do mundo. Mesmo politicamente libertados, continuamos sendo recolonizados, pois as potências centrais antes colonizadoras nos querem manter ao que sempre nos condenaram: a ser uma grande empresa neocolonial que exporta commodities, grãos, carnes, minérios como o mostra em detalhe Luiz Gonzaga de Souza Lima e o reafirmou Darcy Ribeiro citado acima. Desta forma nos impedem de realizarmos nosso projeto de nação independente e aberta ao mundo.

Diz com fina sensibilidade social Souza Lima: “Ainda que nunca tenha existido na realidade, há um Brasil no imaginário e no sonho do povo brasileiro. O Brasil vivido dentro de cada um é uma produção cultural. A sociedade construiu um Brasil diferente do real histórico, o tal país do futuro, soberano, livre, justo, forte; mas, sobretudo, alegre e feliz” (p.235). Nos movimentos de rua irrompeu este sonho exuberante de Brasil.

Caio Prado Júnior em sua A revolução brasileira (Brasiliense 1966) profeticamente escreveu: “O Brasil se encontra num daqueles momentos em que se impõem, de pronto, reformas e transformações capazes de reestruturarem a vida do país de maneira consentânea com suas necessidades mais gerais e profundas e as aspirações da grande massa de sua população que, no estado atual, não são devidamente atendidas” (p. 2). Chateaubriand confirma que esta ideia acima exposta madurou e chegou ao momento de sua realização. Não seria sentido básico dos reclamos dos que estavam, aos milhares, na rua? Querem um outro Brasil.

Sobre que bases se fará a Refundação do Brasil? Souza Lima diz que é sobre aquilo que de mais fecundo e original temos: a cultura brasileira. “É através de nossa cultura que o povo brasileiro passará a ver suas infinitas possibilidades históricas. É como se a cultura, impulsionada por um poderoso fluxo criativo, tivesse se constituído o suficiente para escapar dos constrangimentos estruturais da dependência, da subordinação e dos limites acanhados da estrutura socioeconômica e política da empresa Brasil e do Estado que ela criou só para si. A cultura brasileira então escapa da mediocridade da condição periférica e se propõe a si mesma com pari dignidade em relação a todas as culturas, apresentando ao mundo seus conteúdos e suas valências universais” (p.127).

Não há espaço aqui para detalhar esta tese original. Remeto o leitor(a) a este livro que está na linha dos grandes intérpretes do Brasil a exemplo de Gilberto Freyre, de Sérgio Buarque de Hollanda, de Caio Prado Jr, de Celso Furtado e de outros. A maioria destes clássicos intérpretes olharam para trás e tentaram mostrar como se construiu o Brasil que temos. Souza Lima olha para frente e tenta mostrar como podemos refundar um Brasil na nova fase planetária, ecozóica, rumo ao que ele chama “uma sociedade biocentrada”.

Não serão estes milhares de manifestantes, os protagonistas antecipadores do ancestral e popular sonho brasileiro? Assim o queira Deus e o permita a história.
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* Leonardo Boff é teólogo e professor emérito de ética da UERJ. 
Fonte:  http://mercadoetico.terra.com.br/29/07/2013
Imagem da Internet

segunda-feira, 29 de julho de 2013

Entrevista com o papa Francisco: “Quem sou eu para julgar os gays”

 
Sem tabus, pontífice respondeu por mais de uma hora perguntas de jornalistas durante o voo entre Rio e Roma

ROMA – A Igreja não pode julgar os gays por sua opção sexual e nem marginalizá-los. O alerta é do papa Francisco que, quebrando um verdadeiro tabu, deixa claro que estende sua mão a esse segmento da sociedade. “Se uma pessoa é gay e procura Deus e tem boa vontade, quem sou eu para julgá-lo”, declarou. “O catecismo da Igreja explica isso muito bem. Diz que eles não devem ser marginalizados por causa disso, mas devem ser integrados na sociedade”, insistiu.

As declarações foram dadas em uma entrevista concedida pelo papa aos jornalistas que o acompanharam no avião, entre eles a reportagem do Estado. Na conversa, a garantia do argentino de que o Vaticano tem como papa uma “pessoa normal”, um “pecador” e que vive junto com os demais religiosos porque morar no Palácio Apostólico geraria problemas psicológicos para ele.

Trinta minutos depois de o voo decolar do Rio, o papa deixou sua primeira classe e cumpriu uma promessa que havia feito no voo de ida de Roma ao Brasil: responderia a perguntas dos jornalistas. Mas poucos imaginaram que a conversa duraria quase uma hora e meia.

Para o papa, o problema não é a existência do “lobby gay” dentro da Igreja, mas de qualquer lobby. “O problema não é ter essa tendência. Devemos ser como irmãos. O problema é o lobby dessas tendências de pessoas gananciosas, lobby político, maçons e tantos outros lobbies. Esse é o principal problema”, disse.

Pela primeira vez, Francisco ainda deixa claro que, para ele, abusos sexuais contra menores por parte de religiosos não são apenas pecados, mas crimes que devem ser julgados.
Mas se a posição sobre os gays e sobre o abuso sexual pode representar uma mudança, Francisco deixa claro que não haverá uma nova opinião do Vaticano sobre a presença das mulheres na Igreja, sobre o aborto ou sobre o casamento homossexual.

O papa aproveitou a conversa para anunciar que vai exigir transparência e honestidade no Vaticano e garantiu que sua reforma vai continuar. “Esses escândalos fazem muito mal”, disse.
Antes de responder às perguntas, ele elogiou o “grande coração dos brasileiros”, disse que a viagem “fez bem para sua espiritualidade” e ainda disse que a organização do evento foi excelente. “Parecia um cronômetro”. Eis os principais trechos da entrevista:

Nestes quatro meses de pontificado, o senhor criou várias comissões. Que tipo de reforma do Vaticano o sr. tem em mente? O sr. quer suprimir o Banco do Vaticano?
Papa Francisco – Os passos que eu fui dando nestes quatro meses e meio vão em duas vertentes. O conteúdo do que quero fazer vem da congregação dos cardeais. Me lembro que os cardeais pediam muitas coisas para o novo papa, antes do conclave. Lembro-me que tinha muita coisa. Por exemplo, a comissão de oito cardeais, a importância de ter uma consulta de alguém de fora, e não uma consulta apenas interna. Isso vai na linha do amadurecimento da sinonalidade e do primado. Os vários episcopados do mundo vão se expressando e muitas propostas foram feitas, como a reforma da secretaria dos sínodos, para que a comissão sinodal tenha característica consultativa, como o consistório cardinalício com temáticas específicas, como a canonização. A vertente dos conteúdos vem daí. A segunda é a oportunidade. A formação da primeira comissão não me custou mais de um mês. Já a parte econômica, eu pensava em tratar no ano que vem, porque não é a mais importante. Mas a agenda mudou devido a circunstâncias que vocês conhecem que são domínio público. O primeiro é o problema do Ior (Banco do Vaticano), como encaminhá-lo, como reformá-lo, como sanear o que há de ser sanado. E essa foi então a primeira comissão. Depois tivemos a comissão dos 15 cardeais que se ocupam dos assuntos econômicos da Santa Sé. E por isso decidimos fazer uma comissão para toda a economia da Santa Sé, uma única comissão de referência. Se notou que o problema econômico estava fora da agenda. Mas estas coisas acontecem. Quando estamos no governo, vamos por um lado, mas se chutam e fazem um golaço por outro lado, temos que atacar. A vida é assim. Eu não sei como o Ior vai ficar. Alguns acham melhor que seja um banco, outros que deveria ser um fundo, uma instituição de ajuda. Eu não sei. Eu confio no trabalho das pessoas que estão trabalhando sobre isso. O presidente do Ior permanece, o tesoureiro também, enquanto o diretor e o vice-diretor pediram demissão. Não sei como vai terminar essa história. E isso é bom. Não somos máquinas. Temos que achar o melhor. Mas o fato é que, seja o que for, tem que ser feita com transparência e honestidade.

Uma fotografia do sr. deu a volta ao mundo, quando o sr. desceu as escadas do helicóptero em Roma para embarcar para o Brasil carregando sua mala preta. Reportagens levantaram hipóteses também sobre o conteúdo da mala. Porque o sr. saiu carregando a maleta preta e não um de seus colaboradores? E o sr. poderia dizer o que tinha dentro?
Papa Francisco – Não tinha a chave da bomba atômica. Eu sempre fiz isso. Quando viajo, levo minhas coisas. E dentro o que tem? Um barbeador, um breviário (livro de liturgia), uma agenda, tinha um livro para ler, sobre Santa Terezinha. Sou devoto de Santa Terezinha. Eu sempre levei eu mesmo minha maleta. É normal. Nós temos que ser normais. É um pouco estranho isso que você me diz que a foto deu a volta ao mundo. Mas temos de nos habituar a sermos normais, à normalidade da vida.

Por que o senhor pede tanto para que rezem pelo senhor ? Não é habitual ouvir de um papa que peça que rezem por ele.
Papa Francisco – Sempre pedi isso. Quando era padre pedia, mas nem tanto e nem tão frequentemente. Comecei a pedir mais frequentemente quando passei a ser bispo. Porque eu sinto que se o Senhor não ajuda nesse trabalho de ajudar aos outros, não se pode realizá-lo. Preciso da ajuda do Senhor. Eu de verdade me sinto com tantos limites, tantos problemas, e também pecador. Peço à Nossa Senhora que reze por mim. É um hábito, mas que vem da necessidade. Eu sinto que devo pedir. Não sei…

Na busca por fazer as mudanças no Vaticano, o sr. disse que existem muitos santos que trabalham e outros um pouco menos santos. O sr. enfrenta resistências a essa sua vontade de mudar as coisas no Vaticano? O sr. vive num ambiente muito austero, de Santa Marta. Os seus colaboradores também vivem essa austeridade? Isso é algo apenas do sr. ou da comunidade?
Papa Francisco – As mudanças vêm de duas vertentes: do que pediram os cardeais e também o que vem da minha personalidade. Você falou que eu fico na Santa Marta. Eu não poderia viver sozinho no Palácio, que não é luxuoso. O apartamento pontifício é grande, mas não é luxuoso. Mas eu não posso viver sozinho. Preciso de gente, falar com gente, trabalhar com as pessoas. Porque é que quando os meninos da escola jesuíta me perguntaram se eu estava aqui pela austeridade e pobreza, eu respondi: não, não. É por motivos psiquiátricos. Psicologicamente, não posso. Cada um deve levar adiante sua vida, seguir seu modo de vida. Os cardeais que trabalham na Cúria não vivem como ricos. Têm apartamentos pequenos. São austeros. Os que eu conheço têm apartamentos pequenos. Cada um tem que viver como o senhor disse que tem que viver. A austeridade é necessária para todos. Trabalhamos a serviço da Igreja. É verdade que há sacerdotes e padres santos, gente que prega, que trabalha tanto, que trabalha e vai aos pobres, se preocupam em garantir que os pobres comam. Tem santos na Cúria. Também tem alguns que não são muito santos. E são estes que fazem mais barulho. Faz mais barulho uma árvore que cai do que uma floresta que nasce. Isso me dói. Porque são alguns que causam escândalos. Temos o monsenhor que foi para a cadeia (por lavagem de dinheiro). São escândalos que fazem mal. Uma coisa que nunca disse : a Cúria deveria ter o nível que tinham os velhos padres, pessoas que trabalham. Os velhos membros da Cúria. Precisamos deles. Precisamos do perfil do velho da Cúria. Sobre a resistência, se tem, eu ainda não vi. É verdade que aconteceram muitas coisas. Mas eu preciso dizer: eu encontrei ajuda, encontrei pessoas leais. Por exemplo, eu gosto quando alguém me diz: “eu não estou de acordo”. Esse é um verdadeiro colaborador. Mas quando vejo alguém que diz: “ah, que belo, que belo”, e depois dizem o contrário por trás, isso não ajuda.

O mundo mudou, os jovens mudaram. Temos no Brasil muitos jovens, mas o senhor não falou de aborto, sobre a posição do Vaticano sobre casamento entre pessoas do mesmo sexo. No Brasil foram aprovadas leis que ampliam os direitos para estes casamentos, também em relação ao aborto. Por que o senhor não falou sobre isso?
Papa Francisco – A Igreja já se expressou perfeitamente sobre isso. Eu não queria voltar sobre isso. Não era necessário, como também não falei sobre outros assuntos. Eu também não falei sobre o roubo, sobre a mentira. Para isso, a Igreja tem um doutrina clara. Queria falar de coisas positivas, que abrem caminho aos jovens. Além disso, os jovens sabem perfeitamente qual a posição da igreja.

E qual é a do papa?
Papa Francisco – É a da Igreja,  sou filho da Igreja.

Qual o sentido mais profundo de se apresentar como o bispo de Roma?
Papa Francisco – Não se deve andar mais adiante do que o que se fala. O papa é bispo de Roma e por isso é papa, que é sucessor de Pedro. Pensar que isso quer dizer que é o primeiro, não é o caso. Não é esse o sentido. O primeiro sentido do papa é ser o bispo de Roma.

O sr. teve sua primeira experiência de massas no Rio. Como o sr. se sente como papa? É muito trabalho ?
Papa Francisco – Ser bispo é lindo. O problema é quando um pessoa busca ter esse trabalho. Assim não é tão belo. Mas quando um senhor chama para ser bispo, isso é belo. Tem sempre o perigo e pecado de pensar com superioridade, como ser um príncipe. Mas o trabalho é belo. Ajudar o irmão a ir adiante. Têm o filtro da estrada. O bispo tem que indicar o caminho. Eu gosto de ser bispo. Em Buenos Aires, eu era tão feliz. Como padre eu era feliz. Como bispo, eu era feliz e isso me faz bem.

E como papa?
Papa Francisco – Se você faz o que o Senhor quer, é feliz. Isso é meu sentimento.

Vimos o sr. cheio de energia e, agora, enquanto o avião se mexe muito, vemos agora com muita tranquilidade de pé. Fala-se muito das próximas viagens. O sr. já tem um calendário?
Papa Francisco – Definido, definido não há nada. Mas posso dizer algumas coisas que estamos pensando. No dia 22 de setembro, Cagliari. Depois, em 4 de outubro, para Assis. Tenho em mente dentro da Itália ir ver minha família. Pegar um avião pela manhã e voltar com outro à noite. Meus familiares, pobres, me ligam. Temos una boa relação com eles. Fora da Itália o patriarca Bartolomeu I quer fazer um encontro para comemorar os 50 anos do encontro Atenágoras e Paulo VI em Jerusalém. O governo israelense nos deu um convite especial. O governo da Autoridade Palestina acredito que fez o mesmo. Isso está sendo pensado. Na América Latina, acredito que há possibilidades de voltar, porque o papa latino-americano, que acaba de fazer sua primeira viagem à América Latina….Adeus! Devemos esperar um pouco. Acredito que se possa ir à Ásia, mas está tudo no ar. Tive convites para ir ao Sri Lanka e Filipinas. Para a Ásia precisamos ir. Bento XVI não teve tempo.

E para a Argentina?
Papa Francisco – Isso pode esperar um pouco. As outras viagens têm prioridade.

No encontro com os argentinos, o sr. disse que se sentia enjaulado. Por que?
Papa Francisco – Vocês sabem que eu tenho vontade de passear pelas ruas de Roma? Adoro andar pelas ruas. E por isso me sinto um pouco enjaulado. Mas tenho que dizer que a Gendarmeria vaticana é boa. Agora me deixam fazer algumas coisas mais. Mas seu dever é garantir minha segurança. Enjaulado nesse sentido, de que gostaria de estar nas ruas. Mas entendo que não é possível. Em Buenos Aires, eu era um sacerdote das ruas.

A Igreja no Brasil está perdendo fiéis. A Renovação Carismática é uma possibilidade para evitar que eles sigam para as igrejas pentecostais?
Papa Francisco – É verdade, as estatísticas mostram. Falamos sobre isso ontem com os bispos brasileiros. E isso é um problema que incomoda os bispos brasileiros. Eu vou dizer uma coisa: nos anos 1970, início dos 1980, eu não podia nem vê-los. Uma vez, falando sobre eles, disse a seguinte frase: eles confundem uma celebração musical com uma escola de samba. Eu me arrependi. Vi que os movimentos bem assessorados trilharam um bom caminho. Agora, vejo que esse movimento faz muito bem à Igreja em geral. Em Buenos Aires, eu fazia uma missa com eles uma vez por ano, na catedral. Vi o bem que eles faziam. Neste momento da Igreja, creio que os movimentos são necessários. Esses movimentos são uma graça para a Igreja. A Renovação Carismática não serve apenas para evitar que alguns sigam os pentecostais. Eles são importantes para a própria Igreja, a Igreja que se renova.

O senhor disse que está cansado. Há algum tratamento especial neste voo?
Papa Francisco – Sim, estou cansado. Não há nenhum tratamento especial neste voo. Na frente, tem uma bela poltrona. Escrevi para dizer que não queria tratamento especial.

A Igreja sem a mulher perde a fecundidade? Quais as medidas concretas?
Papa Francisco – Uma Igreja sem as mulheres é como o colégio apostólico sem Maria. O papal da mulher na igreja não é só maternidade, a mãe da família. É muito mais forte. A mulher ajuda a Igreja a crescer. E pensar que a Nossa Senhora é mais importante do que os apóstolos! A Igreja é feminina, esposa, mãe. O papel da mulher na Igreja não deve ser só o de mãe e com um trabalho limitado. Não, tem outra coisa. O papa Paulo VI escreveu uma coisa belíssima sobre as mulheres. Creio que se deva ir adiante esse papel. Não se pode entender uma Igreja sem uma mulher ativa. Um exemplo histórico: para mim, as mulheres paraguaias são as mais gloriosas da América Latina. Sobraram, depois da guerra (1864-1870), oito mulheres para cada homem. E essas mulheres fizeram uma escolha um pouco difícil. A escolha de ter filhos para salvar a pátria, a cultura, a fé, a língua. Na Igreja, se deve pensar nas mulheres sob essa perspectiva. Escolhas de risco, mas como mulher. Acredito que, até agora, não fizemos uma profunda teologia sobre a mulher. Somente um pouco aqui, um pouco lá. Tem a que faz a leitura, a presidente da Cáritas, mas há mais o que fazer. É necessário fazer uma profunda teologia da mulher. Isso é o que eu penso.

O que sr. pensa sobre a ordenação das mulheres?
Papa Francisco – Sobre a ordenação, a Igreja já falou e disse que não. João Paulo II disse com uma formulação definitiva. Essa porta está fechada. Nossa Senhora, Maria, é mais importante que os apóstolos. A mulher na Igreja é mais importante que os bispos e os padres. Acredito que falte uma especificação teológica.

Queremos saber qual a sua relação de trabalho com Bento XVI, não a amistosa, a de colaboração. Não houve antes uma circunstância assim. Os contatos são frequentes?
Papa Francisco – A última vez que houve dois ou três papas, eles não se falavam. Estavam brigando entre si, para ver quem era o verdadeiro. Eu fiquei muito feliz quando se tornou papa. Também, quando renunciou, foi, pra mim, um exemplo muito grande. É um homem de Deus, de reza. Hoje, ele mora no Vaticano. Alguns me perguntam: como dois papas podem viver no Vaticano? Eu achei uma frase para explicar isso. É como ter um avô em casa. Um avô sábio. Na família, um avô é amado, admirado. Ele é um homem com prudência. Eu o convidei para vir comigo em algumas ocasiões. Ele prefere ficar reservado. Se eu tenho alguma dificuldade, não entendo alguma coisa, posso ir até ele. Sobre o problema grave do Vatileaks [vazamento de documentos secretos], ele me disse tudo com simplicidade. Tem uma coisa que não sei se vocês sabem: em 8 de fevereiro, no discurso, ele falou: “Entre vocês está o próximo papa. Eu prometo obediência”. Isso é grande.

Nesta viagem, o sr. falou de misericórdia. Sobre o acesso aos sacramentos dos divorciados, existe a possibilidade de mudar alguma coisa na disciplina da Igreja?
Papa Francisco – Essa é uma pergunta que sempre se faz. A misericórdia é maior do que o exemplo que você deu. Essa mudança de época e também tantos problemas na Igreja, como alguns testemunhos de alguns padres, problemas de corrupção, do clericalismo… A Igreja é mãe. Ela cura os feridos. Ela não se cansa de perdoar. Os divorciados podem fazer a comunhão. Não podem quando estão na segunda união. Esse problema deve ser estudado pela pastoral matrimonial. Há 15 dias, esteve comigo o secretário do sínodo dos bispos, para discutir o tema do próximo sínodo. E posso dizer que estamos a caminho de uma pastoral matrimonial mais profunda. O cardeal Guarantino disse ao meu antecessor que a metade dos matrimônios é nula. Porque as pessoas se casam sem maturidade ou porque socialmente devem se casar. Isso também entra na Pastoral do Matrimônio. A questão da anulação do casamento deve ser revisada. Também é preciso analisar os problemas judiciais de anular um matrimônio. Porque os…eclesiásticos não bastam para isso. É complexo o problema da anulação do matrimônio.

Como Papa, o senhor ainda pensa que é um jesuíta?
Papa Francisco – É uma pergunta teológica. Os jesuítas fazem votos de obedecer ao papa. Mas se o papa se torna um jesuíta, talvez devem fazer votos gerais dos jesuítas. Eu me sinto jesuíta na minha espiritualidade, a que tenho no coração. Não mudei de espiritualidade. Sou Francisco franciscano. Me sinto jesuíta e penso como jesuíta.

Em quatro meses de pontificado, pode nos fazer um pequeno balanço e dizer o que foi o pior e o melhor de ser papa? O que mais o surpreendeu neste período?
Papa Francisco – Não sei como responder isso, de verdade. Coisas ruins, ruins, não aconteceram. Coisas belas, sim. Por exemplo, o encontro com os bispos italianos, que foi tão bonito. Como bispo da capital da Itália, me senti em casa com eles. Uma coisa dolorosa foi a visita a Lampedusa, me fez chorar. Me fez bem. Quando chegam estes barcos (com imigrantes), e que os deixam a algumas milhas de distância da costa e eles têm que chegar (à costa) sozinhos, isso me dói porque penso que estas pessoas são vítimas do sistema socioeconômico mundial. Mas a coisa pior é uma ciática, é verdade, tive isso no primeiro mês. É verdade! Para uma entrevista, tive que me acomodar numa poltrona e isso me fez mal, doía muito, não desejo isso a ninguém. O encontro com os seminaristas religiosos foi belíssimo. Também o encontro com os alunos do colégio jesuíta foi belíssimo. As pessoas…conheci tantas pessoas boas no Vaticano. Isso é verdade, eu faço justiça. Tantas pessoas boas, mas boas, boas, boas.

O senhor se assustou quando viu o informe sobre o Vatileaks?
Papa Francisco – Não. Vou contar uma anedota sobre o informe do Vatileaks. Quando fui ver o papa Bento, ele disse: aqui está uma caixa com tudo o que disseram as testemunhas. Havia ainda um envelope com o resumo. E ele sabia tudo de memória. Mas não, não me assustei. São problemas grandes, mas não me assustei.

O sr. tem a esperança de que esta viagem ao Brasil contribua para trazer de volta os fiéis?
Papa Francisco – Uma viagem do papa sempre faz bem. E creio que a viagem ao Brasil fará bem, não apenas a presença do papa. Esta Jornada da Juventude, eles (os brasileiros) se mobilizaram e vão ajudar muito a Igreja. Tantos fiéis que foram se sentem felizes (por terem ido). Acho que vai ser positivo não só pela viagem, mas pela Jornada, que foi um evento maravilhoso.

Os argentinos se perguntam: o sr. não sente falta de estar em Buenos Aires, pegar um ônibus?
Papa Francisco – Buenos Aires, sim, sinto falta. Mas é uma saudade serena.

Hoje os ortodoxos festejam mil anos do cristianismo. Seu comentário?
Papa Francisco – As igrejas ortodoxas conservaram a liturgia tão bem, no sentido da adoração. Eles louvam Deus, adoram Deus, cantam Deus. O tempo não conta. O centro é Deus e isso é uma riqueza. Luz é oriente. E o ocidente, luxos. O consumismo nos faz tão mal. Quando se lê Dostoievski, que acho que todos nós devemos ler, precisamos deste ar fresco do Oriente, desta luz do Oriente.

O que o senhor pretende fazer em relação ao monsenhor Ricca (acusado de ter amantes) e como o sr. pretende enfrentar toda esta questão do lobby gay?
Papa Francisco – Sobre monsenhor Ricca, fiz o que o direito canônico manda fazer, que é a investigação prévia. E nesta investigação não tem nada do que o acusam. Não achamos nada. É a minha resposta. Mas eu gostaria de dizer outra coisa sobre isso. Vejo que muitas vezes na Igreja se busca os pecados de juventude, por exemplo. Abuso de menores é diferente. Mas, se uma pessoa, seja laica ou padre ou freira, pecou e esconde, o Senhor perdoa. Quando o Senhor perdoa, o Senhor esquece. E isso é importante para a nossa vida. Quando vamos confessar e nós dizemos que pecamos, o Senhor esquece e nós não temos o direito de não esquecer. Isso é um perigo. O que é importante é uma teologia do pecado. Tantas vezes penso em São Pedro, que cometeu tantos pecados e venerava Cristo. E este pecador foi transformado em papa. Neste caso, nós tivemos uma rápida investigação e não encontramos nada.
Vocês vêm muita coisa escrita sobre o lobby gay. Eu ainda não vi ninguém no Vaticano com uma carteira de identidade do Vaticano dizendo que é gay. Dizem que há alguns. Acho que quando alguém se vê com uma pessoa assim devemos distinguir entre o fato de que uma pessoa é gay e fazer um lobby gay, porque todos os lobbies não são bons. Isso é o que é ruim. Se uma pessoa é gay e procura Deus e tem boa vontade, quem sou eu, por caridade, pra julgá-la ? O catecismo da Igreja Católica explica isso muito bem. Diz que eles não devem ser discriminados por causa disso, mas devem ser integrados na sociedade. O problema não é ter essa tendência. Não! Devemos ser como irmãos. O problema é fazer lobby, o lobby dos avaros, o lobby dos políticos, o lobby dos maçons, tantos lobbies. Esse é o pior problema.
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Reportagem por Jamir Chade
Fonte: http://blogs.estadao.com.br/jamil-chade/