Michel Aires de Souza*
“Sapare Aude! Tenha coragem de usar seu próprio entendimento” Kant
O ser humano não possui uma natureza humana fixa, a priori,
incondicionada. Ele é produto da sua cultura. Seus modos de pensar,
agir, valorizar, sua religião, sua moral, seu comportamento são
determinados historicamente, produzidos pelo convívio social. Quando
nascemos vamos adquirindo determinados hábitos, possuiremos uma língua,
uma religião, uma moral, pertenceremos a uma determinada classe e
seremos parte de um determinado grupo social. Todas essas condições
formam uma trama tecida por relações sociais que determinarão a nossa
conduta. Comportamentos, desejos, atitudes, valores, orientações são
aprendizagens assimiladas pelas práticas sociais. Desse ponto de vista, a
religião é um conjunto de dogmas, práticas e valores que existem e
atuam sobre os indivíduos independentemente de sua vontade ou de sua
adesão consciente. A crença em uma determinada religião não é um dado
espontâneo, mas é determinado culturalmente. Toda crença é condicionada
historicamente. Isso significa que não é um dado primário,
incondicionado, que nasce naturalmente nos indivíduos. A religião é uma
potência histórica coercitiva e exterior aos indivíduos. Os preceitos
religiosos se manifestam como algo dado e pronto, que vamos
internalizando desde a infância pela socialização. Os dogmas, as normas,
os rituais, os preceitos e valores religiosos são práticas que exercem
uma coerção sobre os indivíduos, são assimilados sem o consentimento dos
indivíduos. A religião é um discurso que funciona como verdade e atua
na produção da subjetividade. Se nascermos em um país ou família cristã,
com grande certeza seremos cristãos; se nascemos em um país ou família
mulçumana, é certo que seremos mulçumanos. Do mesmo modo, se
nascêssemos numa família kayapó acreditaríamos nos espíritos da floresta
ou se tivéssemos nascidos no Egito antigo acreditaríamos no Deus sol
Hórus. Deuses nascem e morrem. Ninguém mais acredita nos Deuses gregos
da mitologia, muito menos nos deuses do Egito ou dos Astecas da
América. Apolo, Odin, Isis, Osiris, Horus, Bhrama, Tutatis, Akazarus,
Guaraci, Olorun, Mawu, Zambi são outros milhares de deuses que foram,
mas já não são mais. O que podemos concluir, portanto, é que o homem é o
resultado da sua sociedade, do seu meio cultural, sua religião, moral e
conduta são padrões estabelecidos por sua cultura. A cultura é um
processo cumulativo, resultante de toda experiência histórica das
gerações anteriores. Segundo Benedict, citado por Laraia, “a cultura é
como uma lente através da qual o homem vê o mundo. Homens de culturas
diferentes usam lentes diversas e, portanto, têm visões desencontradas
das coisas” (citado por Laraia, 1996, p.69).
Laraia (1996), em seu livro “Cultura um conceito antropológico”
conta-nos duas experiências absurdas praticadas no passado. Hérodoto
descreveu que um rei egípcio desejava descobrir a linguagem materna da
humanidade. Com isso, ordenou que algumas crianças fossem isoladas da
sua espécie, tendo somente cabras como companheiros e para o seu
sustento. Quando as crianças cresceram o rei retornou para visitá-las.
Para seu espanto todas elas sabiam apenas falar a palavra bek. O rei
então pediu a seus emissários que fossem descobrir em todos os países
qual o povo que usava a palavra bek. Ele verificou que no idioma frígio a
palavra bek significava pão, então sugeriu que as crianças sentiam fome
e pensou ser o idioma frígio a língua natural da humanidade. Não se deu
conta que as crianças na verdade estavam imitando as cabras. Outra
história absurda acontecerá milhares de anos depois. O soberano
imperador mongol Akbar repetiu a experiência com o propósito de
descobrir qual era a religião natural da humanidade. As crianças foram
encerradas em uma casa desde o nascimento. Decorrido o tempo necessário o
rei foi visitá-las. Ao se abrirem as portas, para desapontamento do
rei, as crianças não falaram uma única palavra, eram tão silenciosas
como se fossem surdas-mudas. Essas duas histórias mostram-nos que a
linguagem e a religião são algo inteiramente adquirido e não inatos,
completamente externas e não internas, são produtos criados pelo
convívio social e não partes da natureza humana.
Tal como a religião, a linguagem tem um grande poder sobre a nossa
compreensão do mundo. É a linguagem que determina nossas verdades e
crenças. Para o filósofo alemão Nietzsche, a razão é um instrumento de
autoconservação. A razão é um instrumento que a natureza forjou para o
ser humano prever os fenômenos, imprimir sentido as coisas e calcular o
curso dos acontecimentos. A razão é a faculdade que julga, discerne,
calcula, ordena, dá sentido e permanência às coisas. Para isso ela faz
uso da linguagem. As palavras que usamos em nosso cotidiano parecem ser
naturais, uma necessidade cotidiana sem grandes conseqüências. Apesar do
senso-comum pensar assim, são as nossas palavras que dão sentido e
coerência ao mundo em que vivemos. Só podemos pensar o mundo porque
somos providos de linguagem. Não há pensamento sem linguagem. O universo
em si é uma eterna ausência de ordem, onde não há encadeamento de
formas, nem de beleza, mas somente luta e contradição. O mundo é um
eterno fluxo, um eterno devir, sem sentido e finalidade. Para pensar e
dar sentido a esse mundo incoerente, de caos, cheio de contradições,
usamos a linguagem. A razão faz uso da linguagem para tornar o mundo
estável, fixo, permanente, previsível. A função da linguagem é fixar
aquilo que é impermanente, é dar sentido e coerência ao que não tem
sentido, é nominar o imponderável. A linguagem materializa as coisas no
fluxo do tempo, cristaliza aquilo que é insondável, efêmero,
imperscrutável. Deus, eu, alma, bem, mal, onipotência, existência,
substância, causa são palavras sem referência, não possuem uma realidade
em si, observável, ponderável, são produtos da linguagem. Todos esses
conceitos são imaginários. A partir desses conceitos mais simples surgiu
todo um mundo de ficção, de “psicologia imaginária”, como pecado,
redenção, castigo, espírito, imortalidade, anjos. Todos esses conceitos
são ficções da linguagem. “A ‘razão’ na linguagem: oh, que velha,
enganadora personagem feminina! Temo que não nos desvencilharemos de
Deus, porque ainda acreditamos na gramática” (Nietzsche, 1999, p.376).
Não podemos ignorar também o preceito leibniziano de Pangloss de
que “Deus criou o melhor dos mundos possíveis”. A ingenuidade tem
limites, mesmo o ingênuo Cândido (O otimista) foi capaz de perceber,
depois de muito penar, que a dor, o sofrimento e a desgraça em geral são
regras desse mundo. Basta observar nossas vidas para chegarmos à
conclusão que os momentos de dor são infinitamente maiores que os
momentos de felicidade. Também basta olhar ao nosso redor para
percebemos como as calamidades, os sofrimentos e as misérias alheias
preenchem o mundo. Para o maior filósofo pessimista de nossa era,
Schopenhauer, nossa existência não tem outro fim senão a dor. “Se o
sentido mais próximo e imediato de nossa vida não é o sofrimento, nossa
existência é o maior contra-senso do mundo. Pois constitui um absurdo
supor que a dor infinita, originária da necessidade essencial à vida, de
que o mundo está pleno, é sem sentido e puramente acidental. Nossa
receptividade para a dor é quase infinita, aquela para o prazer possui
limites estreitos. Embora toda infelicidade individual apareça como
exceção, a infelicidade em geral constitui a regra” (Schopenhauer, 1988,
p. 216).
As dores do mundo são em grande parte causadas pelas contingências da
vida e pelas calamidades naturais. Nesse sentido a nossa vida é
determinada pela sorte, o destino é imprevisível: violência, guerras,
barbárie, doenças, calamidades, miséria, morte são partes indissolúveis
da existência. Não temos controle sobre nada, não sabemos o que o
destino nos prepara. Se o tsunami ocorrido em 2004 matou 280.000 pessoas
afogadas, por ironia, em pleno natal, foi por causa de um sismo
submarino e não porque Deus quis assim. Se o avião da TAM ultrapassou o
final da pista na hora de pousar em São Paulo e se chocou com um
depósito de cargas matando 199 pessoas em 2007, foi por um problema de
frenagem ou imperícia do piloto e não porque existem forças diabólicas
no mundo. Se duas crianças nascem grudadas pelo estômago ou com
qualquer outro defeito congênito, é provavelmente um erro genético ou um
erro no processo de formação do feto, é obra do acaso e não da
necessidade. As desgraças da vida surgem à revelia, assim como a nossa
morte. Mas o pior de tudo isso, é que já nascemos condenados ao
sofrimento e a dissolução, tal como o personagem Joseph do livro “O
Processo” de Kafka, que não sabe por que foi condenado. Somos
condenados sem saber por quê. Não escolhemos estar aqui, somos jogados
no mundo a revelia. Sem querer estamos em um mundo desgraçado, cheio de
aflições e sofrimentos O nosso destino é inexorável. Ao nascermos já
sabemos qual será o nosso destino. Caminhamos para morte como os animais
caminham para o matadouro. Que sentido haveria em tudo isso. Que Deus
em sã consciência criaria um mundo desses. “Trabalho, aflição, esforço, e
necessidade constituem durante toda vida a sorte da maioria das
pessoas. Porém se todos os desejos, apenas originados, já estivessem
resolvidos, o que preencheria então a vida humana, com que se gastaria o
tempo? Que se transfira o homem a um país utópico, em que tudo
crescesse sem ser plantada, as pombas revoassem já assadas, e cada um
encontrasse logo e sem dificuldade sua bem-amada. Ali em parte os homens
morrerão de tédio ou se enforcarão, em parte promoverão guerras,
massacres e assassinatos, para assim se proporcionar mais sofrimento do
que o posto pela natureza. Portanto, para tal espécie, como a humana,
nenhum outro palco se presta, nenhuma outra existência” (Schopenhauer,
1988, p. 217).
Outra parte de nossas desgraças e sofrimentos provêm do próprio homem.
O ser humano é um ser perverso e egoísta por natureza, ele é governado
por um querer cego e irracional, destituído de sentido e finalidade. É
essa insatisfação constante nele que o torna hostil a tudo: cobiçar,
invejar, humilhar, roubar, estuprar, matar são partes da natureza
humana. Se Deus criou o homem, o criou para ser perverso. A
agressividade é inerente ao ser humano. Nenhuma espécie de animal comete
a agressão por divertimento, somente o homem é capaz de cometer a
agressividade gratuitamente, por diversão. Para Schopenhauer, “o mundo é
o inferno, e os homens dividem-se em almas atormentadas e em diabos
atormentadores”. Para dar alguns exemplos, no Brasil são assassinadas
50.000 mil pessoas aproximadamente por ano. Somente em 2012, 36.792
pessoas foram assassinadas com armas de fogo. Neste mesmo ano houve
41.294 estupros no Brasil. A cada doze segundos uma mulher é estuprada
no Brasil. Somente no Rio de Janeiro, em 2007, foram registrados 6.000
estupros. A cada ano aproximadamente 2.000 pessoas são sequestradas.
Esses são alguns números colhidos na Internet sobre a violência no
Brasil, imaginem os números de mortos em guerras, conflitos étnicos e
religiosos que acontecem todos os dias. Como diria Sartre, “o inferno
são os outros”.
Viver é se sentir como um daqueles personagens do filme. “O sétimo
Selo” de Bergman fugindo da peste e da morte, apenas esperando o fim dos
tempos, com medo que o mundo possa acabar a qualquer momento. Assim é
nossa vida, estamos sempre caminhando sobre um abismo. Não sabemos o que
a existência nos prepara. A vida sempre pode estar por um segundo.
“Parecemos carneiros a brincar sobre a relva, enquanto o açougueiro já
está a escolher um ou outro com os olhos, pois em nossos bons tempos não
sabemos que a infelicidade justamente agora o destino nos prepara -,
doenças, perseguição, empobrecimento, mutilação, cegueira, loucura,
morte, etc.” (Schopenhauer, 1988, p.217).
Não podemos esquecer também os crimes da Igreja cometidos contra a
humanidade durante toda a idade média. As cruzadas, a inquisição, as
invasões em busca de terras e riquezas, a dizimação dos índios da
América, a escravidão dos negros, as torturas e crimes contra os que
foram considerados pagãos. Uma passagem de Nietzsche é bastante
esclarecedora sobre os tipos de torturas praticados no mundo medieval.
“Pense-se nos velhos castigos alemães, como a apedrejamento (-a lenda já
fazia cair à pedra sobre a cabeça do culpado) a roda (a mais
característica invenção, a especialidade do gênio alemão no reino dos
castigos!), o empalamento, o dilaceramento ou pisoteamento por cavalos
(o ‘esquaterjamento’), a fervura do criminoso em óleo ou vinho (ainda
nos séculos quatorze e quinze), o popular esfolamento (‘corte de
tiras’), a excisão da carne do peito; e também a prática de cobrir o
mal-feitor de mel e deixá-lo às moscas, sob o sol ardente. Com a ajuda
de tais imagens e procedimentos, termina-se por reter na memória cinco
ou seis ‘não-quero’, com as quais se fez uma promessa (...).”
(Nietzsche, 1988, p.63).
A história da Igreja católica é a história da barbárie, da corrupção,
da pedofilia e dos crimes contra a humanidade. Contra fatos não há
argumentos. Não é somente o passado que condena a Igreja, houve ligações
do Vaticano com a Máfia, com Mussolini e com Hitler. O papa Pio XII
chegou a chamar Mussolini de “homem de Deus”. Abençoou os exércitos de
Hitler e ajudou a consolidar seu poder. Também não podemos ignorar que o
Vaticano possui um conglomerado de empresas incluindo ações na Fiat e
Alfa Romeu, assim como bancos, joalherias, prédios comerciais, como a
rede Bulgari de joalherias, o banco de investimento Altium Capital. Não é
a toa que o novo papa tenha chegado ao Brasil em um Fiat Idea, fazendo o
merchandise de uma de suas empresas.
A igreja sempre esteve ligada ao poder e ao capital. Ela é o poder
ideológico por trás do Estado. Foi a igreja que ajudou o homem ocidental
a se tornar moral, dócil, serviçal e escravo dos poderosos. Ela sempre
buscou a adesão usando a bíblia para justificar seus crimes. Como bem
colocou o músico Steve Allen (1990), a Bíblia foi interpretada para
justificar práticas más tal como, por exemplo, a escravidão, a
carnificina de prisioneiros de guerra, os sádicos assassinos de mulheres
acusadas de serem bruxas, punição capital por centenas de ofensas,
poligamia e crueldade com animais. Foi usada para encorajar a crença na
mais grosseira superstição e para desencorajar o livre ensino de
verdades científicas. Nós não devemos nunca esquecer que, bem e mal,
fluem da bíblia. Ela, portanto, não está acima da crítica.
Bibliografia
ALLEN, Steve. Steve Allen on the Bible, Religion, and Morality. Buffalo, NY: Prometheus Press, 1990.
LARAIA, Roque de B. Cultura, um conceito antropológico. Rio de janeiro: Zahar, 1986.
NIETZSCHE, F.W. Genealogia da Moral. Trad. Paulo César Souza. São Paulo, Brasiliense, 1988.
NIETZSCHE, F.W. Crepúsculo dos ídolos ou como filosofar com o martelo. São Paulo: Nova Cultural, 1999. (Os Pensadores)
SCHOPENHAUER, Arthur. Parerga e Paralipomena. São Paulo: Nova Cultural, 1988 (Os Pensadores).
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* Professor.
Fonte: http://filosofonet.wordpress.com/2013/07/23/por-que-nao-sou-cristao/
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