sábado, 20 de julho de 2013

A essência da cidade

RAFAEL GUIMARAENS*

 

Ao resistir a incêndios e tentativas de demolição, o Mercado Público atrai multidões porque guarda o que a Capital tem de melhor

O incêndio do Mercado Público, felizmente não tão grave como alarmavam as primeiras imagens, reavivou a paixão das pessoas por este edifício imponente que começou a ser construído há exatos 150 anos e tem resistido aos ataques das forças da natureza (quatro incêndios e uma enchente) e da estupidez humana (inúmeras tentativas de demolição). Na mídia e nas redes sociais, um dilúvio de declarações apaixonadas e relatos de vivências foi dedicado à velha fortaleza ferida. Aliás, foi esse sentimento de amor incondicional da cidadania que preservou o Mercado de tantos desastres e conspirações.

Diante de mais este episódio, é lícito especular: afinal de contas, o que o Mercado Público de Porto Alegre tem de tão especial que o diferencia dos demais? Os mercados nascem na Idade Média para organizar as operações comerciais – escambo, trocas de mercadorias, mais tarde, compra e venda de produtos – e, imediatamente, se tornam os lugares onde acontecem as relações humanas na forma mais rica e despojada. Assim, a primeira curiosidade de um turista é conhecer o mercado público da cidade que visita, porque sabe que ali encontrará a essência daquele lugar. Qual a essência de Porto Alegre que o nosso Mercado contém?

Ele nasce em um período em que Porto Alegre experimenta um ciclo de prosperidade, entre o final da Revolução Farroupilha e a Guerra do Paraguai. Pela lealdade ao Império durante o conflito gaúcho e pela sua posição geopolítica estratégica durante a disputa com os paraguaios, a cidade é premiada com investimentos federais significativos que justificam uma construção daquele porte. Portanto, na sua gênese, está presente a ignomínia historicamente tangenciada: Porto Alegre de costas para os ideais farroupilhas – e recompensada por isso.

Parênteses: houve, antes dele, um pequeno mercado construído nos limites da atual Praça 15, que se chamava Praça Paraíso, nome herdado de um bordel situado nas imediações, o que agregará um rescaldo boêmio e libertino à composição humana do novo Mercado. Haverá estabelecimentos específicos para esta clientela.

No centro do sólido quadrilátero projetado pelo arquiteto alemão Friedrich Heydtmann, o imenso pátio foi livremente ocupado por tabuleiros que ofereciam todo o tipo de produtos – incluindo o mocotó, servido em caldeirões ferventes pelas pretas minas, as chamadas “escravas de ganho”, que, ao fim do dia, eram obrigadas a repartir os dividendos com seus feitores. Quando alguém da Intendência resolve cobrar aluguel pelos tabuleiros, as pretas minas são excluídas, ocupando seu lugar os que podem pagar as taxas municipais.

A exclusão social, portanto, está presente nos primórdios do Mercado, mas as pretas minas deixam marcas muito profundas, tanto na futura culinária, quanto no imaginário popular. O Mercado estará definitivamente vinculado à tradição cultural e religiosa de matriz africana, mística, que será reforçada pelo assentamento do Bará, o lascivo e debochado orixá, santidade dos cruzamentos, que irá proteger o prédio e seus frequentadores pelo resto da eternidade.

O progresso circunda a fortaleza de Heiydtmann. Caminhões substituem as carretas; os bondes puxados a burro abrem alas para os bondes elétricos, mais tarde os ônibus; automóveis no lugar das carruagens; luz elétrica, ruas e aterramentos, um porto no lugar das antigas docas. E o progresso começará a fustigar o Mercado.

Não por acaso, as tentativas de demolição irrompem nos momentos autoritários. A primeira ao final do Estado Novo. Não há outra alternativa: o Mercado será demolido, anuncia o Correio do Povo, em 27 de junho de 1945. Uma fonte da prefeitura justifica: “É uma pena que ele desapareça, pois tem a sua tradição, mas se estará contribuindo para atender melhor ao público e embelezar a cidade, afastando do Centro pontos de reuniões suspeitas, espetáculo chocante aos olhos dos forasteiros”. Como vemos, linguagem própria do discurso estadonovista da ordem e da eugenia.

Em 1966, recém-instalada a ditadura militar, o Mercado Público foi novamente ameaçado. Diz o que foi chamado de “parecer técnico” da prefeitura sobre o Mercado: “Tanto a imprensa como o povo vivem a reclamar a sujeira (...) a área transformada em babel de tendas e tendinhas, e de abrigos sujos, sem proveito nenhum ao abastecimento público, e que se tornaram elementos de deterioração social, como foco da malandragem, parada da prostituição, acoitamento de negócios ilícitos, a desfigurar a estética do centro urbano e a comprometer os focos da cultura do povo, que se apresenta, assim, ao primeiro contato com os que nos visitam, sem nenhuma emoção de beleza...”

As tentativas de demolição se prolongariam por 10 longos anos, período em que a tecnocracia autoritária reinante punha abaixo prédios históricos, substituindo-os por equipamentos “modernos” e funcionais. O Mercado seria o próximo, para dar lugar a uma avenida que uniria a rua Siqueira Campos à Avenida Júlio de Castilhos. Com isso, os motoristas não precisariam fazer a curva no final da Borges e, assim, ganhariam seis preciosos segundos em seu trajeto. Isso mesmo, leitor: o Mercado seria demolido por causa de seis segundos.

Foi o poeta Mario Quintana quem acionou o despertador geral: “Se o Mercado for demolido, onde colocaremos nossos fantasmas?”. A ele se somaram Vasco Prado, Zoravia Bettiol, Maurício Rosenblatt, jornalistas, os líderes comunitários (da histórica Fracab), os frequentadores avulsos. A cidade acordou e percebeu que era possível resistir. O Mercado sobreviveu, mas ainda sofreria com o descaso e a leniência, combustíveis para dois grandes incêndios durante a década de 1970.

Os fantasmas – não os de Quintana – foram ficando pelo caminho, mas não podem ser subestimados: as tragédias, a ignomínia, a exclusão social, o autoritarismo, a tecnocracia, o preconceito, o descaso, a leniência, a estupidez. Firme e forte, o Mercado atrai multidões porque guarda dentro dele o que tem a cidade de melhor – o trabalho, a camaradagem, o convívio, o afeto, a devoção, o namoro, a democracia, a culinária, os sabores e aromas, as especiarias, a boemia, a celebração da vida de todas as maneiras conhecidas (e pequenas contravenções, vá lá: jogo do bicho, agiotagem, punga).

Questão de justiça: além da proteção dos orixás, além da energia renovada de seus 300 mil frequentadores diários, além do carinho de toda a cidade ou quase toda, além do deslumbramento dos turistas, objetivamente o Mercado resistiu aos quatro grandes incêndios pela solidez da sua construção original. Axé, Friedrich Heydtmann! E, no caso recente, pela genialidade do arquiteto que, na grande restauração de 1997, projetou a cobertura acima do nível do Mercado, com um vão suficiente para proporcionar a climatização interna e, no caso do incêndio do dia 6, permitir a dispersão das chamas, o que preservou toda a estrutura. Ave, Teo Meditsch!
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*Jornalista e escritor, autor de Mercado Público: Palácio do Povo (Editora Libretos)
Fonte: ZH on line, 20/07/2013 - Imagem da Internet

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