Wanderley Guilherme dos Santos*
"As forças sociais estão anômicas.
Difícil saber em que medida
a
epiderme niilista reflete o sentimento majoritário da população
(pesquisas, no momento, são inúteis para extrapolações), submetida a uma
avalanche
de informações sem fonte
de credibilidade assegurada."
Milhões de pessoas foram projetadas a estações de consumo e lazer das
quais nunca haviam tido sequer notícia. Passado o deslumbramento,
expectativas ambiciosas cresceram em velocidade maior do que caíam taxas
de juros e sinais inflacionários, levando a audacioso endividamento das
famílias. Por fim, a ressaca veio sob forma de aguda ansiedade sobre o
futuro imediato, tornando-as vulneráveis aos anúncios de que crescimento
econômico em torno de 3,0% significará desastre, desemprego
generalizado e uma queda livre, sem rede de proteção, dos trapézios
sociais alcançados.
Rápidos deslocamentos ascendentes desenraízam as pessoas da matriz
societária original, provocando crises de identidade e desorientação
quanto a valores, estando por serem substituídos os anteriores,
desaprendidos. Max Weber apontou a reserva de ebulição aí depositada,
tanto quanto nas crises de despenhadeiro, quando enormes contingentes de
trabalhadores são despejados na escala social com destino à miséria e
desesperança. E, ambos, períodos de extensa anomia social, insegurança
quanto a rumos e subversão de critérios de avaliação e escolha social.
Atração fatal à anomia, o niilismo, o negativismo militante candidata-se
a acompanhante emocional, pacificador da insegurança dos segmentos
desorientados.
Sequência já conhecida de manifestação popular reprimida com
violência próxima à selvageria propiciou as condições de uma mobilização
de simpatias, solidariedades e protestos claramente motivados pelo
episódio paulistano de repressão ao Movimento do Passe Livre. Eram os
jovens universitários, seus pais e familiares, usuários de transportes
públicos, o público de boa vontade, atingido em seu sentido de justiça e
de equilíbrio, além das minorias insidiosas de sempre: um nazismo
renascente, protofascistas, partidos autoritários como o PSTU ou dado a
aventuras como o PSOL, mais os predadores da democracia. Rápido,
bem-sucedido golpe de mão, juntando acaso e virtude, sequestrou a alma
das ruas e infestou a evidente anomia com a inclinação niilista que a
marcou desde então. Todas as palavras de ordem têm sido, a partir daí,
pretexto para a desmoralização das instituições democráticas,
assembleias, organizações sindicais, associações voluntárias
específicas, partidos políticos, em nome de um alegado vanguardismo
civilizatório.
O futurismo italiano foi um movimento revolucionário das artes
gráficas no início do século XX. Dissolveu-se ideologicamente no
fascismo gerado pela anomia decadentista da Itália dos anos 20,
igualmente irmanado ao niilismo predatório. Assustados, os líderes
institucionais do Brasil têm tomado a aparência pela verdade e
multiplicado a tradução do que lhes parecem comunicar as vozes das ruas.
Não existem, contudo, vozes das ruas, apenas alaridos. Não foram as
cartolinas pintadas que levaram as primeiras multidões às passeatas,
elas surgiram algum tempo depois das marchas em busca de um porquê das
próprias marchas. A seco, melhoras genéricas da saúde pública ou da
educação não estimulam o deslocamento de dezenas de milhares de
manifestantes. Reforma política, então, nem em cartolina apareceu.
Pesquisas de opinião durante ou logo depois do calor dos protestos são
tecnicamente irrelevantes, não autorizam nenhum tipo de inferência
confiável.
Do mar de gente em desfile pelos dias de junho já se ausentaram há
muito os de boa-fé, os lúdicos, os solidários com as iniciais demandas
sobre transporte, até mesmo sobre saúde e educação, bem como os
movimentos tradicionais organizados. Participam hoje dos protestos, fora
os incautos e ingênuos que sempre existem e lhes emprestam ar de
legitimidade, grupos anômicos de jovens de algumas posses, grupos
neonazistas e pré-fascistas, organizações niilistas nacionais e
internacionais, além das gangues ordinárias de ladrões e assaltantes.
Os que agora se mobilizam e convocam sabem que são isso mesmo,
portanto cúmplices entre si. Não há jovem do Leblon que ignore os saques
e depredações que vão se seguir às suas intervenções ditas pacíficas. É
a essa informal coalizão de celerados que se referem os acoelhados
discursos pela modernidade, pelo avanço democrático em curso, pela
radicalização da participação. Desde quando movimentos pela democracia
difundem o medo e intimidam fisicamente os que divergem?
Na verdade, a hegemonia da atual semântica política é niilista,
reacionária, antidemocrática. Mesmo as manifestações em favor de teses
populares adquirem conotação truculenta. Com todo o narcisismo de que
são portadores, movimentos e personalidades de grande notoriedade não
conseguem desfazer a impressão de que perderam o controle sobre o
emocional da população. A conjuntura é fascistoide. A pauta trabalhista
das centrais sindicais era a aparência para esconder uma real tentativa
de retomar a alma das ruas. Foi uma manifestação chinfrim, o dia
nacional de lutas, e não recuperou a hegemonia. Ficou apenas a impressão
de que reclamava do governo a extinção do fator previdenciário e a
realização de uma reforma política, entre outras bandeiras costumeiras,
sem consequência significativa.
Há quem acredite no fundo da alma que alguma mazela nacional será
resolvida por reformas nas instituições políticas. Essa é uma crença sem
fundamento e, às vezes, como no momento, sujeita a exasperações
histéricas. Só por circunstancial ausência de normalidade argumentativa
se pode entender declarações de inegável natureza controversa como se
obviedades democráticas fossem. Em recente declaração em vídeo, ao fim
de um debate em um centro paulista, uma professora da USP, petista
orgânica, afirmou que a estrutura partidária e eleitoral vigente,
consagrada na Constituição de 88, foi elaborada em 1965 por Golbery do
Couto e Silva, homem da ditadura. Sem dúvida, uma retificação histórica e
tanto.
Em texto na revista "Carta Capital" no dia 17, um jornalista e
paladino da democracia menciona um sonho em que assistia à convocação de
uma Assembleia Nacional Constituinte exclusiva, integrada pelas
melhores cabeças do país. Não ficou esclarecido, contudo, qual colégio
eleitoral substituiria os 140 milhões de eleitores brasileiros na
escolha de suas melhores cabeças. Pior ainda, figuras profundamente
reacionárias em matéria social e econômica, como as lideradas por Marina
Silva, reeditam o discurso de que a maldade da política se encontra na
existência de mediações entre o público e o privado, cujas fronteiras
deviam ser abolidas. É o discurso totalitário em estado puro. Buscando o
aplauso de míticas vozes das ruas, muitos não mais escutam a própria
voz.
É incompreensível a ênfase do governo e do Partido dos Trabalhadores
na realização de um plebiscito por uma reforma política cuja formulação
é, no mínimo, divisionista, castradora de avanços e omissa quanto à
superação de resquícios da ditadura - por exemplo, garantindo
elegibilidade aos analfabetos, tema sem nenhuma audiência entre nossos
democratas radicais e digitais. Incompreensível, sobretudo, quando a
pauta vital do país, no momento, está sendo disputada taxa de retorno
nas licitações por vir nos setores ferroviário, aeroviário, rodoviário e
portuário, além dos leilões do petróleo. Disso dependem renda, emprego,
crescimento, políticas sociais e progresso tecnológico.
Sujeito a um cerco infernal de pressões, lobbies e, quiçá, seu tanto
de sabotagem por parte de alguns empresários e investidores, o governo
substitui essa pauta por um prato diversionista, com o bônus de
propiciar aos adesistas a esfarrapada desculpa de que o Estado, o modelo
de crescimento (denominação presunçosa), os instrumentos de
administração estão esgotados. Baboseiras de quem está costeando o
alambrado do conservadorismo.
As forças sociais estão anômicas. Difícil saber em que medida a
epiderme niilista reflete o sentimento majoritário da população
(pesquisas, no momento, são inúteis para extrapolações), submetida a uma
avalanche de informações sem fonte de credibilidade assegurada. As
respostas oficiais, exceto em parte a dos parlamentares, acentuo, exceto
em parte a dos parlamentares, têm contribuído para ratificar a ilusão
de um aprofundamento da democracia que, de fato, em sua versão
expressiva e comportamental, consiste em seu oposto, na intolerância, na
destruição e no ódio que contamina as mensagens das ativas redes
sociais. Quanto mais cedo se mobilizar a resistência democrática ao
niilismo anômico, melhor.
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* Wanderley Guilherme dos Santos é cientista político, titular
(aposentado) de teoria política da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ)
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