Luiz Felipe Pondé*
A agonia entre Deus e seus eleitos molda seus rostos marcados por uma tensão moral
Então, Jesus foi abordado por um grupo de pessoas muito preocupadas com a
retidão da lei. Traziam consigo uma mulher em prantos que havia sido
pega em adultério. Jogada ao chão, ela tremia de medo. O povo pedia para
que Jesus fizesse valer a lei: morte da adúltera por apedrejamento.
Isso foi há 2.000 anos, mas ainda hoje, no mesmo Oriente Médio, tem
gente que apedreja mulheres e acha (agora, no Egito) que violentá-las
nas praças seja um "direito da soberania popular revolucionária",
enquanto se matam, nas mesmas praças, pelo modo ocidental de vida ou por
outra forma de lei (o fundamentalismo islamita).
E assim caminha a humanidade, em ciclos, para lugar nenhum, mas com festas e crenças diferentes no meio, e demagogos a cantar...
Mas voltemos a Jesus. Fatos como esses me fazem achar que Jesus era um
cabra macho. Enfrentar o povo quando este se julga movido pelo correto
modo de viver é algo que exige, como dizem los hermanos, "cojones".
Jesus disse que quem tivesse livre de pecado que atirasse a primeira
pedra. Todos foram embora.
Esta é uma das passagens típicas do mundo bíblico na qual fica claro o
tema da hipocrisia como motivação profunda daqueles que se acham arautos
do bem, moral ou político.
Mas Jesus era um filósofo hebreu e estes filósofos eram diferentes dos
filósofos gregos. O mundo bíblico é diferente da filosofia grega.
Naquele, o "regime da verdade" (ou modo de busca da verdade) é interno e
moral, na filosofia grega é externo e político.
O problema de saber se o que eu digo é verdade ou não, quando falo ou
argumento, inexiste na Bíblia, porque o personagem principal do diálogo é
Deus, e Ele sempre sabe de tudo, não há como mentir para Ele como há
como mentir para outro homem ou para assembleia "soberana", como na
filosofia ou democracia gregas. Segundo o crítico George Steiner, o Deus
de Israel irrita porque está em toda parte e sabe de tudo.
Sabe-se que o advento da democracia grega levou muita gente a pensar
sobre a diferença entre pura retórica, que visa o mero convencimento dos
outros numa assembleia (eu acho que a democracia é 90% isso mesmo), e a
verdade em si do que se fala.
O problema que nasce daí é a relatividade da verdade, dependendo do
ponto de vista de quem fala e de quem ouve. Na Bíblia, o problema é se
minto para mim mesmo ou não. Na esfera pública, é o tema da hipocrisia,
na privada, o da verdade interior. A Bíblia criou o sujeito e as bases
da psicologia profunda.
Na Bíblia, como o poder é sempre de Deus e ele é mais íntimo de mim do
que sou de mim mesmo, o problema é como eu enfrento a mim mesmo. A
preocupação com a lei é sempre acompanhada da atenção para com a
falsidade de quem diz ser justo.
Por isso foram os hebreus que deram os primeiros passos para a
descoberta do espaço interior onde vejo a distância entre mim e a
verdade sobre mim mesmo, em vez de me preocupar com a verdade política,
sofro com a mentira moral.
O crítico Erich Auerbach, no seu "A Cicatriz de Ulisses", parte da
coletânea "Mímesis", reconhece este traço do texto hebraico: a relação
de atenção e agonia entre Deus e seus eleitos molda o herói bíblico,
dando a ele um rosto marcado por uma tensão moral.
Ainda na Bíblia hebraica, o rei David, o preferido de Deus, em seus
belos "Salmos", O encanta justamente porque expõe seu coração sem
qualquer tentativa de mentir para si mesmo.
Santo Agostinho com suas "Confissões" faz eco a David. A literatura
monástica e mística medievais cultivou este espaço até seu ressurgimento
no século 19 no pietismo alemão de gente como J.G. Hamann, o "mago do
norte", ancestral direto do romantismo. Do romantismo e seu epicentro na
verdade interior do sujeito, chegamos à psicologia profunda e à
psicanálise.
A filosofia hebraica funda regimes de verdade que leva o sujeito a olhar
para si mesmo ao invés de olhar para os outros. Em vez de cultivar uma
filosofia política, ela cultiva uma filosofia moral da vida interior na
qual não é barulho da assembleia que importa, mas o silêncio no qual os
demônios desvelam nossa própria face.
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* Filósofo. Escritor. Prof. Universitário.
ponde.folha@uol.com.brFonte: Folha on line, 15/07/2013
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