Marcelo Barros*
“Só o papa
salva” é a manchete de primeira página do O Globo deste sábado, 27 de julho,
penúltimo dia da Jornada Mundial da Juventude. Essa manchete do jornal carioca
joga propositalmente com a ambiguidade de sentidos. Quem lê a notícia descobre
que se está tratando da desorganização da jornada a qual o prefeito do Rio deu
nota zero. No caos que a jornada provocou na cidade, o papa é o único elemento
que deu certo, tanto em sua comunicação direta e simpática, como por sua
disponibilidade e energia em cumprir pontualmente todos os compromissos e
agradar a todos os que o esperavam e queriam encontrá-lo. De todos os modos, por falar em salvação, o
título não parece distante daquilo que é
proposto e acreditado pelos organizadores e pela maioria dos/das participantes
da Jornada Mundial da Juventude. É um evento criado pelo papa João Paulo II em
1985 para atrair a juventude do mundo para a Igreja Católica tradicional, para
não dizer tradicionalista, no sentido de volta à velha Cristandade dos séculos
medievais com algumas pinturas de nova (alguns falam em neo-cristandade):
Cristandade centralizada e simbolizada pela figura monárquica do papa. Conforme
o desejo de João Paulo II e o pensamento do Vaticano, o papa é a única estrela
do evento. Se não fosse o papa, nunca a Jornada da Juventude reuniria um milhão
e meio de pessoas. Por outro lado, a novidade desta Jornada do Rio é o papa
Francisco. A pergunta que muita gente se faz é o que significa esse papa com
seu estilo simples e simpático nessa estrutura monárquica, absolutista e, ao
mesmo tempo, fossilizada e em grave crise do Vaticano e da hierarquia
eclesiástica católico-romana.
Não podemos
esquecer: a própria figura do papa, como ele se apresenta hoje, chefe de
Estado e sumo-pontífice, é de Igreja Cristandade. Ele pode falar no evangelho e
pedir fé em Jesus, mas, seja quem for o papa, a centralização que provoca em
sua pessoa e em cada gesto seu (mesmo se for simpático e evangélico), no lugar
de ajudar as pessoas a se aproximarem do evangelho, como pede justamente o papa Francisco, acaba reforçando a estrutura
eclesiástica e patriarcal e não o testemunho do Cristo simples, pobre e
libertador. Enquanto o papa não renunciar a ser chefe de estado e monarca
absoluto da cristandade medieval, pode fazer esses gestos simpáticos de deixar
papamóvel e andar de jipe ou querer estar mais perto do povo. Entretanto, será
sempre um rei, como rei será visto e como rei, mesmo rei humilde e simpático,
mas rei, se comportará.
A Jornada fala em
missão. Seu lema é “Ide e anunciai. Fazei discípulos em todas as nações”. No
entanto, a compreensão sobre missão é estritamente religiosa e espiritualista.
Não há nenhuma abertura para a missão do jovem na escola e na universidade ou
no trabalho. Nada ecumênico, nenhuma referência a outras Igrejas, outras
religiões ou simplesmente à juventude do mundo que não acampa em nenhuma
catedral religiosa. E mesmo a concepção dessa missão religiosa é estritamente
tradicional, baseada em devoções dos tempos de nossos avós e anterior à renovação da Igreja promovida
pelo Concílio Vaticano II.
Durante a semana,
ligada à Jornada, o pessoal mais ligado às pastorais sociais e CEBs, organizaram
a Tenda dos Mártires, implantada em uma paróquia da zona norte do Rio, com debates
e celebrações no estilo da caminhada da Igreja dos mártires e da libertação. Longe
de Copacabana e dos principais eventos, só foi lá quem já estava ligado.
Sem dúvida, nesses
dias, companheiros/as mais ligados à Igreja das bases, tentamos aproveitar uma
ou outra palavra de Francisco, aqui e ali, para ressaltar o seu apoio aos
empobrecidos e seu desejo de um mundo mais justo e igualitário. E o papa disse
palavras assim. Mas, como transpor a própria cultura na qual isso é dito e assim essas palavras se tornarem mais eficazes?
Na Via Sacra encenada na Jornada, de um lado liam textos da profecia do Servo Sofredor
de Isaías (sobre o messias humilhado e oprimido) e, ao mesmo tempo, embaixo do
palco, a Cruz peregrina tinha uma guarda de honra da marinha brasileira ou do
exército marchando militarmente ao seu lado, enquanto os atores da Globo
recitavam os textos.
Nessa jornada, ao
inserir-se nessa Igreja tão tradicional e fechada, o papa ajudou porque,
através de seus gestos e palavras, propôs que ela se torne mais humana e próxima
das pessoas. O papa exortou os cristãos a não perderem a esperança, a manterem
a alegria e a não cederem à cultura do individualismo. Tomara que ao menos isso
fique como proposta do papa durante essa semana e padres e bispos obedeçam a
esse conselho.
Ontem, entrei
em uma farmácia para comprar uma aspirina e ouvi a discussão de dois homens na
fila do caixa. Um protestava pelo fato de um evento particular de uma Igreja
causar tanto dano ao trânsito à vida da cidade (dois dias de feriado
municipal). E o outro respondeu: “Tem paciência porque isso é o canto do cisne
de uma Igreja que está morrendo e não aceita reconhecer isso”. Ouvi aquilo, mas
discordei. Justamente, ao contrário, minha impressão ao ver essa semana toda
centrada em devocionalismos baratos ou meio vazios e em uma papolatria superficial
e inútil, uma coisa me impressionou: a teimosia da fé de muita gente, (tanto
pessoas jovens, como adultas), que, apesar de tudo e contra tudo, se mantém
como base para comunidades de fé, mais sólidas e autônomas, centradas na
liberdade do Espírito que “sopra onde quer, ouvimos a sua voz, mas não sabemos
de onde vem, nem para onde vai” (Cf. Jo 3, 7).
Estou acabando de acompanhar pela rede Globo a via sacra com o papa e a multidão de um milhão de jovens (1.500.000?).
A via sacra é uma devoção que me lembra
minha infância e um catolicismo mais fixado na cruz e na morte de Jesus
do que na Páscoa e na ressurreição (não estou com isso querendo separar a
morte e a ressurreição, mas superar o isolamento no aspecto doloroso e
sacrificial). É popular e por isso compreendo que pastoralmente a Igreja
a preserve. Mas, justamente o que achei dessa que está acabando de se
realizar na praia de Copacabana é que não tem nada de popular e tem
alguns aspectos contraditórios com a mensagem que deseja passar. Em
primeiro lugar, a tal Cruz peregrina, que na Jornada representa Jesus, é
ladeada por um batalhão da marinha ou de algum outro grupo militar,
devidamente fardado e marchando militarmente. Que forma estranha de
honrar a cruz de Jesus que morreu para trazer ao mundo paz e
reconciliação.
Além disso, entre os jovens que
carregaram a cruz durante toda a via sacra, nenhum/a negro/a, nenhum com
cara de pobre. Todos vestidos de bata, mas alvos ou brancos e cara de
classe média alta... Posso estar enganado. Todas as pessoas que
proclamaram textos bíblicos (curtos e bem escolhidos) o fizeram de
longo, ou de paletó e gravata... A maioria artistas da Globo (Ana Maria
Braga, Eriberto Leão, Cássia Kiss, Elba Ramalho, etc). As que faziam
oração representavam um seminarista de batina e fala bem alienada, uma
freirinha - coitada - suspirando piedade. E para não ser tudo assim,
havia em uma das estações alusões à pastoral carcerária, mas sem dizer
nada sobre ela Parece que havia carcerários diante do cenário, Não
percebi porque estavam todos de terno e gravata... Algumas orações
faziam alusão a problemas de hoje (evangelizar o mundo virtual da
internet, vencer a opressão econômica sobre o jovem, o problema dos
doentes terminais, mas tudo tinha um tom individualista de alguém que
expressava sua piedade e a multidão de juventude em nenhum momento foi
convidada a participar de nada. Só olhar e admirar.
A Via Sacra teve uma dramatização
artística de bom gosto, com música clássica tocada por uma orquestra
maravilhosa, textos musicais belíssimos e atores excelentes. Mas, em
termos de oração, me pareceu nada participativa. E a própria
grandiosidade e majestade do cenário - um palco para mil pessoas e que
colocava o papa sentado em uma cátedra a oito metros de altura, tudo
isso tornava difícil conciliar o que se falava sobre entrega da vida e
amor de Jesus e aquilo que se via - o palco tomado por bispos e cardeais
vestidos de preto e vermelho - o papa parecia de todos o mais simples -
com sua batina branca - e em algumas imagens que o mostravam durante a
via sacra - posso estar enganado - tive a impressão de que ele tirava um
cochilo - o que fazia muito bem - que ninguém é de ferro.
Agora estou escutando a homilia do papa Francisco. Uma palavra profunda e como sempre afetuosa. Tocou em vários problemas concretos. Propôs uma oração pelos jovens, vítimas do incêndio da boate de Santa Maria. Falou dos pais e mães que têm filhos e filhas dominados pela droga. Falou da juventude decepcionada com a política oficial e a corrupção. Fez um apelo à esperança e à sairmos de nós mesmos e sermos solidários.
Foi a homilia mais viva e mais direta que eu senti dele nessa semana.
Agora estou escutando a homilia do papa Francisco. Uma palavra profunda e como sempre afetuosa. Tocou em vários problemas concretos. Propôs uma oração pelos jovens, vítimas do incêndio da boate de Santa Maria. Falou dos pais e mães que têm filhos e filhas dominados pela droga. Falou da juventude decepcionada com a política oficial e a corrupção. Fez um apelo à esperança e à sairmos de nós mesmos e sermos solidários.
Foi a homilia mais viva e mais direta que eu senti dele nessa semana.
Uma primeira lição que tiro dessa minha
participação (mesmo indireta) na Jornada Mundial da Juventude não diz
respeito à jornada como tal e sim ao país em que vivo. Se eu puder,
fugirei do Brasil nos dias da próxima copa de futebol em 2014. Meu Deus,
que desorganização e falta absoluta de estruturas para acolher muita
gente. Ontem, pelo fato de que na praia de Copacabana, se reuniria a
multidão dos jovens (há quem diga que chegam a um milhão e meio) junto
com o papa Francisco, no Rio, ninguém mais fazia nada nem nada
funcionava. Metrô parado das 16 h até às 21 h. Não havia ônibus nem
mesmo taxi podia entrar em Copacabana. Eu voltava do meu trabalho no
morro de Sta Marta, já mais cedo para evitar isso e fiquei de 18 às 21
horas esperando em Botafogo que abrissem o metrô e eu pudesse embarcar.
Assim mesmo, não podiam parar na estação mais próxima de onde estou
hospedado e com isso tive de descer na estação seguinte e percorrer
cinco ruas absolutamente lotadas de gente (todos muito pacíficos e sem
nenhum problema), mas hoje decretei que não tenho condições de passar
pelo mesmo problema. Trabalho aqui e não vou sair para fazer gravações.
Até aqui, sinto que a simpatia e a
simplicidade do papa Francisco não o levaram a nenhuma atitude ou
palavra profética. Ele diz que devemos fazer uma sociedade solidária,
mas nenhuma palavra sobre como seria isso. Por que não falar da economia
solidária ou mesmo que fosse da tal economia de comunhão proposta pelo
grupo católico dos folcolarinos? Nada. Tudo vago e genérico. Esteve na
favela de Manguinhos, falou no campo de futebol, onde na parede em
frente a qual ele estava falando tinha uma grande foto de Dom Oscar
Romero. Poderia ter feito uma alusão ao arcebispo mártir. Nada.
Foi a uma capela da favela onde não é
paróquia e ali se reune uma comunidade eclesial de base. Seria a
oportunidade para apoiar as Cebs. Nada.
Será que isso é uma estratégia de começo
de ministério para não bater de frente com a cúria romana e com o papa
emérito? Não sei.
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* Monge beneditino. Escritor.
Fonte: http://www.marcelobarros.com/
Imagem da Internet
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