João Pereira Coutinho*
Nós não queremos apenas que as nossas vidas sejam felizes. Queremos que essas vidas sejam autênticas
Memórias falsas. Eis a nova descoberta científica publicada em revista
da especialidade. Segundo a "Science", pesquisadores do Massachusetts
Institute of Technology conseguiram implantar memórias falsas no cérebro
de ratinhos. Já tinham cometido uma outra proeza no passado: apagar
certas memórias. Agora, o desafio foi implantá-las. Conseguiram.
Ainda estamos longe do Santo Graal: apagar más memórias e, se possível,
conferir a cada ser humano um passado glorioso. Mas o futuro, tal como o
passado, promete. Ou não promete?
Robert Nozick (1938-2002), um dos grandes filósofos do nosso tempo,
achava que não. No seu magistral "Anarchy, State, and Utopia", Nozick
pedia-nos para imaginar a seguinte situação: existe uma máquina do
prazer a que os seres humanos se podem ligar. E, por esse simples
processo, ter prazer a vida inteira. Quem daria o primeiro passo?
Poucos. Existe algo de incômodo na ideia de uma felicidade eterna, porém
falsa. E esse incômodo tem nome: verdade. Ou, para usar uma palavra
cara aos românticos, "autenticidade".
Nós não queremos apenas que as nossas vidas sejam felizes. Queremos que
essas vidas sejam autênticas e que a nossa felicidade seja o resultado
de experiências, méritos ou virtudes reais.
Se tudo fosse resumido a critérios de prazer e desprazer, ninguém
hesitaria em ligar-se à máquina de Nozick. E, no entanto, a maioria
hesita.
Não conheço crítica mais devastadora ao utilitarismo nos tempos
modernos. Seguindo o cálculo hedônico, o que interessa é proporcionar a
maior felicidade ao maior número?
Não necessariamente, afirmava Nozick. Se a felicidade humana não é humana, ela perde qualquer valor para nós.
E o que é válido para a felicidade é válido para a infelicidade. Até porque a segunda é condição para haver a primeira.
Ironicamente, uma máquina de prazer permanente deixaria até de
proporcionar prazer. Porque deixaria de haver contraste com as restantes
iniquidades da existência: habitaríamos apenas um estado de normalidade
entediante em que nada seria importante porque nada seria valorizado em
si mesmo.
Sabemos o que é a felicidade porque sabemos o que é a infelicidade. E também porque aprendemos algo com as nossas infelicidades.
"Aprender" é o verbo: implantar memórias falsas já seria uma aberração
ética. Mas apagar as más é mais que isso: é uma aberração
epistemológica.
Sofremos como cães pelos erros que cometemos. Escolhas profissionais
lamentáveis; amores cultivados e frustrados; atitudes egoístas,
covardes, impensadas --quem atira a primeira pedra?
Mas sofremos e, com sorte, aprendemos. E existe algo de libertador (e de
redentor) quando seguimos em frente e somos capazes de reconhecer os
mesmos dilemas, as mesmas tentações, os mesmos traços de caráter --em
nós e nos outros. E, claro, as mesmas consequências prováveis de certos
atos e omissões.
É então que o passado, e sobretudo o insuportável passado, se torna
nosso tutor privado: ao segredar-nos o que devemos evitar e abraçar com
conhecimento de causa.
Todos precisamos de más memórias para evitar cometer os mesmos erros.
Apagar essas memórias seria uma forma de nos condenarmos a sofrimentos
perpétuos. E a apagamentos perpétuos. E a sofrimentos perpétuos. E a
apagamentos perpétuos.
Talvez eu esteja sendo injusto. Talvez o objetivo das recentes
descobertas seja outro: aliviar o sofrimento de soldados em situações de
combate, por exemplo, apagando experiências traumáticas e colocando
tardes de verão onde antes havia destruição e morte.
Sem falar de vítimas de crimes ou acidentes para quem um "reset" mental
seria uma benesse. Sobre esses casos extremos, manda a prudência que
nada diga.
Mas será preciso lembrar como as sociedades contemporâneas foram
medicalizando os mais básicos sentimentos humanos --o medo, a ansiedade,
a angústia-- procurando uma resposta química e imediata para eles?
Se hoje declaramos guerra às tristezas presentes, por que não declarar outra contra as tristezas passadas?
Quase todos recusamos a máquina de prazer de Nozick. Mas às vezes
pergunto se o fazemos mesmo por questões de princípio --ou pela razão
mais prosaica de que essa máquina não existe ainda.
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* Colunista da Folha
Imagem da Internet
Fonte: Folha on line, 30/07/2013
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