“Retirem as mãos vagabundas das
calças
Peguem a pedra, a faca ou a bomba
E aquele que não possui
mãos
Venha e lute com a testa!”
CORAÇÃO EM CHAMAS
Reflexões sobre vida e obra de um dos mais importantes poetas do século 20, Vladimir Maialóvski (1893–1930)
Ele
foi um dos mais magistrais renovadores da poesia no século 20 e um
dos mais brilhantes porta-vozes da Revolução Russa, que abraçou com
ardor e louvou em versos imortais. Vladimir Maiakóvski (1893–1930) só
precisou de 37 anos de vida para incendiar o mundo como um coquetel
molotov humano. Explodiu soltando chamas de lirismo e rebeldia que
ainda hoje continuam a arder. O leitor brasileiro agora tem a
chance de mergulhar em sua vida através da biografia O Poeta da Revolução, de Mikhailov (Ed. Record, 560 pgs).
“A vida de Maiakovski se desenvolveu
num período de entusiasmo irrefreável, de crença plena no futuro,
herança da ideologia do progresso cultivada durante todo o século
19”, comenta Alexei Bueno no prefácio. Poeta revoltado, agressivo e
inflamado, Maiakóvski segurava a caneta como se fosse uma
metralhadora. Seus inimigos? Muitos: a exploração operária, a
arte desengajada, os hábitos pequeno-burgueses, os últimos
estertores do czarismo, a alvorada sombria da burocracia
totalitária.
Maiakovski foi uma personalidade
controversa, provocativa, extremada. Testemunhas oculares chegaram a
descrever seu surgimento assim: “como se um hipopótamo chegasse numa
loja de louças e aprontasse excessos messiânicos…” (Kniazev). Roberto
Goldkrin, no prefácio de Como Fazer Versos, o descreve como “um ser
contraditório e fascinante, que ao mesmo tempo que destronou a poesia e o
poeta do alto de um Olimpo elitista e classicizante, elevou-se a
dimensões aquém dos formulários e especificações do fabricante”. Já
Boris Schaiderman, professor de língua russa na USP e autor de A Poética
de Maiakovski, descreve-o como uma criatura “vibrante e polêmica, toda
agressividade e ímpeto”. E o próprio poeta descrevia-se como alguém em
quem a anatomia enlouqueceu:
“nos demais – eu sei,
qualquer um o sabe –
o coração tem domicílio
no peito.
comigo
a anatomia ficou louca.
sou todo coração –
em todas as partes palpita.”
qualquer um o sabe –
o coração tem domicílio
no peito.
comigo
a anatomia ficou louca.
sou todo coração –
em todas as partes palpita.”
Seja
à frente da vanguarda futurista, trabalhando em revistas de esquerda,
fazendo propaganda para o Estado ou se derramando em efusões líricas,
Maiakovski se entregava a tudo com extrema intensidade. “Na força e na
fraqueza, ele surgiu como um homem que se entregava a tudo de corpo e
alma. A nenhuma idéia, a nenhum trabalho ele se dava pela metade”, diz
Alexei Bueno.
Poeta das massas, abandonou a torre de
marfim para descer ao meio das turbulências sociais. “É
necessário partir em mil pedaços a fábula da arte apolítica!”,
reclamava. Maiakóvski escrevia sempre centrando fogo na
transformação concreta da vida das multidões. Para ele, a poesia
não é menos bela por ser útil. “O poeta incita à rebelião e está pronto
para marchar na primeira fileira dos rebeldes”, destaca Bueno. O
próprio poeta reconhecia-se como um perigo à ordem constituída: “O
nariz capitalista farejava em nós a dinamite”, escreveu.
Em vários
poemas incita à insurreição:
“Retirem as mãos vagabundas das
calças
Peguem a pedra, a faca ou a bomba
E aquele que não possui
mãos
Venha e lute com a testa!”
“Maiakovski transfere toda a força de
negação para a sociedade burguesa. Nela vê o mal que degrada a moral e a
própria idéia da arte”, comenta Mikhailov. “O ‘abaixo!’ de Maiakovski
era um gesto característico do russo rebelde, estivesse ele pegando em
machado, em tocha ardente de incendiário, ou em bomba caseira – e
expressava sua prontidão de ir para a batalha e morrer.”
Quando os bolcheviques concretizam sua
“grande heresia” e tomam o poder, Maiakovski aplaude com entusiasmo e se
entrega ao posto de poeta da revolução, engajadíssimo em fazê-la
perseverar e vencer. “Ao encontro de Outubro de 1917, Maiakovski
caminhou de peito aberto”, comenta Mikhailov, “pois não assumira, como
significativa parte da intelectualidade russa, compromisso com as
tradições e outras ligações com a velha cultura. Por isso, quando
aconteceu a Revolução, pôde com toda sinceridade dizer: ‘A minha
revolução’.”
Liderando a vanguarda futurista,
Maiakóvski e seus companheiros colocaram em ebulição a cultura
russa. O escândalo foi enorme. Foram acusados de terem uma relação
niilista com a cultura clássica, de não possuírem uma base teórica
sólida ou de serem meros arruaceiros. O manifesto futurista era
mesmo extremista e mandava “atirar fora Puchkin, Dostoievski e
Tolstoi do Navio da Modernidade!” Burliuk, um dos líderes do
movimento, se justificava dizendo: “Não desejamos virar para trás
nossas cabeças, quebrar nossas vértebras cervicais para olhar a
poesia com a naftalina dos perversos!”
Apesar das idéias destrutivas em
relação à herança cultural, Maiakóvski era um grande conhecedor da
literatura clássica. “Ele ouvia a voz viva dos clássicos, mas
negava as imposições dos seus cânones para a arte do seu tempo”,
sugere Mikhailov. Ou, como o próprio Maia dizia: “Eu vos amo, mas
vivos, não como múmias.”
Esse
poeta de coração ardente e impaciente não poderia durar muito e
virar uma das “velharias” que tanta energia pôs em combater. “Não
tenho nenhum fio grisalho em minha alma!”, escreveu. Quando deu um
tiro no peito, em 1930, pôs um sangrento ponto final em um destino
trágico e fascinante. 150 mil pessoas passaram na frente de seu
caixão nos 3 dias em que ele ficou exposto. A União Soviética chorava a
morte precoce de um de seus maiores poetas. Sua vida e obra permanece
um emblema deste que foi um dos mais importantes acontecimentos
históricos do século 20: a Revolução Russa.
Da biografia de Mikhailov conclui-se
que dentro da alma de Maiakóvski desenhou-se uma contradição cruel
entre a utopia e a decepção. De um lado, uma vida inteira dedicada à
Revolução, à glória de Lênin e ao engajamento na construção do
socialismo. De outro, o surgimento do espectro do stalinismo, que
trazia a ditadura, a burocracia e o eclipse do sonho. Dividido
entre os versos de louvor às conquistas revolucionários e as
sátiras ácidas contra as anomalias do novo poder, Maiakóvski viu-se
rasgado entre o entusiasmo da entrega total a uma utopia e a
tragédia da perda do ideal.
Nos seus últimos anos de vida, Maiakovski
parece ter chegado a uma cruel encruzilhada – ele que sempre as
enfrentou de peito aberto e palavras em punho. Mikhailov, em sua
biografia, arrisca uma especulação magistral a respeito das frustrações
de Maiakovski:
“Em tudo o que ele escreveu durante estes
anos, de um lado, estava a glória à Revolução, e do outro, a sátira
sobre a sua continuação. O mundo realmente, como afirma Heine, partiu-se
em duas metades e a rachadura atravessou o coração do poeta. (…) Sobre a
mesa do escritório, bastava levantar a cabeça, estava a fotografia de
Lênin, que continuava a personificar para Maiakovski o ideal de líder e
de ser humano, a sua crença. Já nos corredores do poder encontra pessoas
bajuladoras, burocratas, corruptas e pomposas. (…) É muito
significativo que associe o seu ideal somente àqueles que já estão
mortos e a nenhum dos vivos.” Já em 1926, quatro anos antes de seu
suicídio, “Maiakovski percebe que o nepotismo, a corrupção, a
mesquinhez, a burocracia perpassam a nova sociedade de cima para baixo.
(…) Percebe que estavam sendo traídos os ideais de Outubro. (…) No
coração precipita-se a amargura que minava a crença na justiça social,
na vida…”
Mas havia algo mais empurrando o
coração do poeta para o despenhadeiro. Ele, que escreveu algumas
das mais pungentes poesias líricas que conhecemos, entrou em
desespero por não conseguir abocanhar, neste mundo, sua fatia de
amor. As paixões que viveu Maiakóvski, quase todas não
correspondidas, parecem nunca ter conseguido saciar seu coração
faminto. Na nota de suicídio, a frase lapidar: “O barco do amor
espatifou-se contra o cotidiano”.
Em uma carta à Lília Brik, amor de sua
vida, escreveu: “O amor é vida. O amor é o coração de tudo. Se ele
interromper o seu trabalho, todo o resto morre, faz-se excessivo,
desnecessário. (…) Sem você não há vida.” Esmagado sob o peso da
utopia que se esfarelava e do amor que não conquistou, buscou no
sono eterno o descanso para um percurso terrestre que foi, de fato,
exaustivo. Mas por ter sido intenso, extremo, inflamado,
contraditório — e apaixonante.
Como resume Roman Jakobson em A Geração Que Esbanjou Seus Poetas:
“A angústia diante dos limites fixos e estreitos e o desejo de
superação dos quadros estáticos constituem um tema que Maiakovski varia
sem cessar. Nenhum curral no mundo poderia conter o poeta e a horda
desenfreada de seus desejos.”
Maiakovski, que sempre teve uma
bandeira de luta hasteada em seu coração incendiado, saiu com
estrondo do mundo para entrar, também estrondosamente, na História.
Como um dos mais autênticos e vigorosos poetas da Revolução.
Alguns poemas:
A FLAUTA VÉRTEBRA
A todos vocês,
que eu amei e que eu amo,
ícones guardados num coração-caverna,
como quem num banquete ergue a taça e celebra,
repleto de versos levanto meu crânio.
que eu amei e que eu amo,
ícones guardados num coração-caverna,
como quem num banquete ergue a taça e celebra,
repleto de versos levanto meu crânio.
Penso, mais de uma vez:
seria melhor talvez
pôr-me o ponto final de um balaço.
Em todo caso
eu
hoje vou dar meu concerto de adeus.
seria melhor talvez
pôr-me o ponto final de um balaço.
Em todo caso
eu
hoje vou dar meu concerto de adeus.
Memória!
Convoca aos salões do cérebro
um renque inumerável de amadas.
Verte o riso de pupila em pupila,
veste a noite de núpcias passadas.
De corpo a corpo verta a alegria.
esta noite ficará na História.
Hoje executarei meus versos
na flauta de minhas próprias vértebras.
Convoca aos salões do cérebro
um renque inumerável de amadas.
Verte o riso de pupila em pupila,
veste a noite de núpcias passadas.
De corpo a corpo verta a alegria.
esta noite ficará na História.
Hoje executarei meus versos
na flauta de minhas próprias vértebras.
(Tradução: Haroldo de Campos e Boris Schnaiderman)
* * * * *
LÍLITCHKA!
Em Lugar de Uma Carta
(Petrogrado, 1916)
De qualquer forma
o meu amor
- duro fardo por certo -
pesará sobre ti
onde quer que te encontres.
Deixa que o fel da mágoa ressentida
num último grito estronde.Quando um boi está morto de trabalho
ele se vai
e se deita na água fria.
Afora o teu amor
para mim
não há mar,
e a dor do teu amor nem a lágrima alivia.Quando o elefante cansado quer repouso
ele jaz como um rei na areia ardente.
Afora o teu amor
para mim
não há sol,
e eu não sei onde estás e com quem. Se ela assim torturasse um poeta,
ele
trocaria sua amada por dinheiro e glória,
mas a mim
nenhum som me importa
afora o som do teu nome que eu adoro.
E não me lançarei no abismo,
e não beberei veneno,
e não poderei apertar na têmpora o gatilho.
Afora
o teu olhar
nenhuma lâmina me atrai com seu brilho.
Amanhã esquecerás
que eu te pus num pedestal,
que incendiei de amor uma alma livre,
e os dias vãos – rodopiante carnaval -
dispersarão as folhas dos meus livros…
Acaso as folhas secas destes versos
far-te-ão parar,
respiração opressa?
Deixa-me ao menos
arrelvar numa última carícia
teu passo que se apressa.
(trad. Augusto de Campos)
o meu amor
- duro fardo por certo -
pesará sobre ti
onde quer que te encontres.
Deixa que o fel da mágoa ressentida
num último grito estronde.Quando um boi está morto de trabalho
ele se vai
e se deita na água fria.
Afora o teu amor
para mim
não há mar,
e a dor do teu amor nem a lágrima alivia.Quando o elefante cansado quer repouso
ele jaz como um rei na areia ardente.
Afora o teu amor
para mim
não há sol,
e eu não sei onde estás e com quem. Se ela assim torturasse um poeta,
ele
trocaria sua amada por dinheiro e glória,
mas a mim
nenhum som me importa
afora o som do teu nome que eu adoro.
E não me lançarei no abismo,
e não beberei veneno,
e não poderei apertar na têmpora o gatilho.
Afora
o teu olhar
nenhuma lâmina me atrai com seu brilho.
Amanhã esquecerás
que eu te pus num pedestal,
que incendiei de amor uma alma livre,
e os dias vãos – rodopiante carnaval -
dispersarão as folhas dos meus livros…
Acaso as folhas secas destes versos
far-te-ão parar,
respiração opressa?
Deixa-me ao menos
arrelvar numa última carícia
teu passo que se apressa.
(trad. Augusto de Campos)
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Fonte: http://acasadevidro.wordpress.com/2013/07/21/maiakovski-o-poeta-da-revolucao/
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