Ayn Rand (1905-1982) foi uma filósofa norte-americana que dedicou sua vida a defender filosoficamente o Capitalismo e o Liberalismo. Sua (complexa) redefinição do conceito de egoísmo tornou-se particularmente célebre. |
Texto da filósofa Ayn Rand -
Num
sentido popular, a palavra “egoísmo” é sinônimo de maldade: representa a
imagem de um insensível e cruel assassino que passa por cima de pilhas
de cadáveres para atingir os seus próprios fins, alguém que não se
importa com qualquer ser humano e que tem como objetivo último a
obtenção de gratificação pessoal com caprichos vãos num qualquer momento
imediato.
Todavia,
a definição mais exata da palavra “egoísmo” dada pelo dicionário é:
preocupação com os nossos próprios interesses. Esta definição não
encerra uma avaliação moral: não nos diz se a preocupação com os nossos
próprios interesses é algo bom ou mau; nem nos diz o que de fato
constitui os interesses do homem. Cabe à ética responder a estas
questões.
Como
resposta, a ética do altruísmo criou a imagem do ser humano insensível,
de forma a levar o homem a crer em dois princípios básicos:
a) que, independentemente da sua natureza dos seus interesses, cuidar deles é algo mau e
b)
que a atividade do ser humano insensível é, de fato, o resultado do seu
próprio interesse (ao qual o altruísmo nos impõe renunciar para o bem
daqueles com quem convivemos).
Dando
uma perspectiva da natureza do altruísmo, das suas consequências e da
grandeza da corrupção moral a que dá origem, dou o exemplo do meu livro Atlas Shrugged
— ou de qualquer cabeçalho da imprensa atual. O nosso foco de análise é
as deficiências do altruísmo no domínio da teoria ética.
Há
duas questões morais que o altruísmo agrupa num único “pacote”: 1) O
que são valores? 2) Quem deveria ser o beneficiário dos valores? O
altruísmo substitui a segunda questão pela primeira: escapa à tarefa de
definir um código de valores morais, deixando, assim, o homem sem
qualquer orientação moral.
O
altruísmo defende que qualquer ação feita em benefício dos outros é boa
e que qualquer ação feita em prol de interesses próprios é má. Deste
modo, o beneficiário de uma ação é o único critério de valor moral — e
desde que o beneficiário não seja o próprio agente da ação, tudo é
aceitável.
Sob
todas as variantes da ética altruísta se pode avaliar a terrível
imoralidade, a injustiça crônica, o grotesco valor dos dois pesos e duas
medidas, os conflitos e contradições insolúveis que caracterizaram as
relações e sociedades humanas ao longo da história.
Observemos
a indecência do que se passa hoje com os juízos morais. Um industrial
que faça fortuna e um criminoso que assalte um banco são igualmente
qualificados de imorais, uma vez que ambos procuram riqueza para o seu
próprio benefício “egoísta”.
Um
jovem que desista da carreira de forma a sustentar os pais e nunca
passe de um humilde empregado de mercearia é visto como moralmente
superior àquele outro jovem que empreende a mais dura das lutas para
concretizar a sua ambição pessoal.
Um
ditador é considerado moral, dado que as atrocidades indescritíveis que
cometeu tiveram como objetivo beneficiar “o povo” e não a si mesmo.
Observemos
agora as implicações deste critério de benefício da moralidade na vida
do homem. A primeira é a conclusão de que a moralidade é sua inimiga,
isto é, ele não tem nada a ganhar com isso, de fato só tem a perder:
pode apenas esperar perda autoinfligida, dor autoinfligida e a cinzenta e
debilitante mortalha da dúvida incompreensível. Pode apenas esperar que
outros ocasionalmente se sacrifiquem em seu benefício, tal como ele o
faz a contragosto em relação a eles. Porém, ele sabe que essa relação
trará ressentimento mútuo e não prazer — e que moralmente a busca de
valores pelos dois será como que uma troca de presentes de Natal
indesejados e não escolhidos, sendo que a que nenhum dos dois é
moralmente permitido comprá-los para si próprio.
Além
dos momentos em que revela capacidade para desempenhar um ato de
auto-sacrifício, este homem não possui qualquer significado moral: a
moral não o reconhece e nada diz sobre os momentos cruciais da sua vida:
é apenas a sua própria vida, “egoísta” e privada e como tal esses
momentos são vistos como bons ou maus ou, na melhor das hipóteses,
amorais.
Dado
a natureza não atribuir ao homem formas automáticas de sobrevivência,
uma vez que tem de se sustentar através do seu próprio esforço, a teoria
de que a preocupação com os seus próprios interesses é má significa que
o desejo de viver também é mau — que a vida humana, enquanto tal, é
também má. Nenhuma teoria poderia ser mais cruel do que esta. No
entanto, este é o conceito do altruísmo, implícito na comparação entre o
industrial e o assaltante de bancos.
Há
uma diferença fundamental entre um homem que vê a concretização dos
seus próprios interesses na produção ou construção de algo e o outro que
os tenta alcançar através de um assalto. A maldade de um assaltante não
reside no fato de procurar satisfazer os seus interesses, mas no que
considera serem os seus interesses; não no fato de desejar viver, mas no
fato de desejar fazê-lo a um nível sub-humano.
Se
é verdade que o meu conceito de “egoísmo” difere do que é comumente
usado, então este é um dos piores erros do altruísmo: significa isto que
o altruísmo não permite qualquer conceito de autorrespeito e
autossuficiência no homem, ou seja, um homem que se sustenta pelo seu
próprio esforço sem se sacrificar a si mesmo ou aos outros. Significa
também que o altruísmo não consente outra perspectiva do homem que não
seja a de animal sacrificado e beneficiário do sacrifício dos outros,
que não seja a de vítima e de parasita, e significa que não reconhece a
ideia de coexistência benévola entre os homens nem o conceito de
justiça.
Se
nos interrogarmos sobre as razões por detrás desta feia mistura de
cinismo e culpa na qual a maioria dos homens constroem as suas vidas,
concluímos que há cinismo porque eles nem praticam nem aceitam a moral
altruísta; há culpa porque não se atrevem a rejeitar essa mesma moral.
Para
nos revoltarmos contra tal mal devastador, temos que nos revoltar
contra a sua premissa básica. De forma a redimirmos o homem e a moral,
temos que redimir também o conceito de egoísmo. O primeiro passo para
que isso aconteça é o de reiterar o direito do homem a uma existência
moral, isto é, reconhecer a sua necessidade de um código moral que o
guie no decurso e concretização da sua própria vida. [...] A razão pela
qual o homem necessita de um código moral dir-nos-á que o objetivo da
moralidade é o de definir os valores e interesses próprios do homem, que
a preocupação com os seus próprios interesses é a essência de uma
existência moral, e que o homem deve ser o beneficiário das suas
próprias ações morais.
Dado
que todos os valores devem ser conquistados ou mantidos pela ação do
homem, qualquer ruptura ente agente e beneficiário dessa ação implica
uma injustiça: o sacrifício de alguns em benefício de outros, dos
agentes em benefício dos não agentes, do moral ao imoral. Nada poderia
justificar tal ruptura nem alguém jamais o fez. A escolha do
beneficiário dos valores morais é apenas uma questão preliminar ou
introdutória no domínio da moralidade. Não é um substituto da moralidade
nem um critério de valor moral, como o altruísmo defende. Tão-pouco é
um princípio moral fundamental: tem de resultar de e ser validado por
premissas essenciais de um sistema moral.
A ética objetivista defende que o agente tem de ser sempre o beneficiário da sua ação e que o homem deve agir em função dos seus próprios interesses racionais.
Porém, este direito resulta da sua natureza de homem e da função dos
valores morais na vida humana. Por isso, é apenas aplicável num contexto
de código de valores racional e objetivamente demonstrado e validado, o
qual define e determina o verdadeiro interesse próprio do homem. Não é
uma autorização para fazer “o que lhe apetece” nem se aplica à visão
altruísta do insensível cruel e “egoísta” nem a qualquer outro homem
motivado por emoções irracionais, sentimentos, vontades súbitas ou
caprichos.
Esta
ideia é apresentada como um aviso contra o tipo de “egoístas
nietzschianos”, que são efetivamente um produto da moral altruísta e
representam o outro lado da moeda altruísta: aqueles que
creem que, independentemente da sua natureza, qualquer ação é boa se
dirigida ao benefício do próprio agente, tal como a satisfação de
desejos irracionais — quer de si próprio quer de si próprio quer dos
outros — não constitui critério de valor moral. A moralidade não é um concurso de caprichos.
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[Retirado
de “The Virtue of Selfishness”, in Lee G. Bowie et. al (2006) Twenty
Questions: An Introduction to Philosophy. 6.a ed. Belmont: Wadsworth,
pp. 472-474.]
Fonte: Site Ateus.Net
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