José Tolentino Mendonça*
"A vida de cada um de nós não se basta a si mesma:
precisaremos sempre do olhar do outro,
que é um olhar o outro,
que nos
mira de um outro ângulo,
com uma outra perspectiva
e outro humor."
É-nos dito e repetido que o tempo bem aproveitado é um
contínuo, tendencialmente ininterrupto, que devemos esticar e levar ao
limite. A maioria de nós vive nessa linha de fronteira, em esforçada e
insatisfeita cadência, a desejar, no fundo, que a vida seja o que ela
não é: que as horas do dia sejam mais e maiores, que a noite não
adormeça nunca, que os fins de semana cheguem para salvar-nos a face
diante de tudo o que fica adiado.
Quantas vezes damos por nós a concordar automaticamente
com o lugar comum: “precisava que o dia tivesse quarenta e oito horas”
ou “precisava de meses de quarenta dias”. Desconfio que não seja isso
exatamente o que precisamos. Bastaria, aliás, reparar nos efeitos
colaterais das nossas vidas sobreocupadas, no que fica para trás, no
que deixámos por dizer ou acompanhar.
Sem darmos bem conta, à medida que os picos de
atividade se agigantam, as nossas casas vão-se assemelhando a casas
devolutas, esvaziadas de verdadeira presença; a língua que falamos
torna-se incompreensível como uma língua sem falantes no mundo mais
próximo; e mesmo que habitemos a mesma geografia e as mesmas relações
parece que, de repente, isso deixou de ser para nós uma pátria e
tornou-se uma espécie de terra de ninguém.
O ponto de sabedoria é aceitar que o tempo não estica,
que ele é incrivelmente breve e, que por isso, temos de vivê-lo com o
equilíbrio possível. Não nos podemos iludir com a lógica das
compensações: que o tempo que roubamos, por exemplo, às pessoas que
amamos procuraremos devolvê-lo de outra maneira, organizando um
programa ou comprando-lhes isto e aquilo; ou que o que retiramos ao
repouso e à contemplação vamos tentar compensar numas férias
extravagantes.
A gestão do tempo é uma aprendizagem que, como
indivíduos e como sociedade, precisamos fazer. Nisto do tempo, por
vezes é mais importante saber acabar do que começar, e mais vital
suspender do que continuar.
Lembro-me que durante anos, numa casa em que vivi,
ouvia diariamente o varredor público limpar as folhas caídas do grande
lódão, por baixo da minha janela. Ele chegava por volta da 1 da manhã,
mais coisa menos coisa. A música da sua vassoura era uma chamada a
concluir e a recolher-me. Também eu precisava varrer a minha dispersão e
apagar a luz até ao dia seguinte.
Mas até esse exercício de interromper um trabalho para
passar ao repouso não nos é fácil, pelo menos em certa idade. Isso
implica, não raro, um exercício de desprendimento e de pobreza. Aceitar
que não atingimos todos os objetivos que nos tínhamos proposto.
Aceitar que aquilo aonde chegamos é ainda uma versão provisória,
inacabada, cheia de imperfeições. Aceitar que nos faltam as forças, que
há uma frescura de pensamento que não obtemos mecanicamente pela mera
insistência. Aceitar porventura que amanhã teremos de recomeçar do zero e
pela enésima vez.
Creio que o momento de viragem acontece quando olhamos
de outra forma para o inacabado, não apenas como indicador ou sintoma
de carência, mas condição inescusável do próprio ser. Ser é habitar, em
criativa continuação, o seu próprio inacabado e o do mundo. O
inacabado liga-se, é verdade, com o vocabulário da vulnerabilidade, mas
também (e eu diria, sobretudo) com a experiência de reversibilidade e
de reciprocidade.
A vida de cada um de nós não se basta a si mesma:
precisaremos sempre do olhar do outro, que é um olhar o outro, que nos
mira de um outro ângulo, com uma outra perspectiva e outro humor. A vida
só por intermitências se resolve individualmente, pois o seu sentido
só se alcança na partilha e no dom.
Fonte:http://www.snpcultura.org/a_arte_do_inacabado.html 23.07.13
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