José Tolentino Mendonça*
A escuta, a vigilância, a atenção são ferramentas para
uma viagem humana fecunda. Os Padres do deserto diziam: «O maior dos
pecados é a distração». Vivemos num mundo que nos atropela
continuamente, pela quantidade e velocidade da informação. As imagens
que vemos também nos obsidiam, aprisionam e devoram. Na sobreposição de
discursos e factos, nem sempre somos capazes de contrariar a
alienação. E depois: quantos dos nossos gestos não se tornaram,
entretanto, meros automatismos! Quantas das nossas escolhas não se
esvaziaram de conteúdo, cabendo-nos administrar apenas a forma! É assim
que acontece que numa cultura marcada por um excesso de signos,
vivamos mergulhados numa inesperada e dramática pobreza simbólica. De
certa maneira, enfraqueceu-se a nossa capacidade de ver, e com isso
perdemos o acesso a dimensões necessárias de profundidade. O verbo mais
importante é o ver, diziam os gregos. E para ver não basta olhar, não
basta deslocar a visão para o outro lado da janela. É preciso, como
avisa Fernando Pessoa, «não ter filosofia nenhuma». Só uma atitude de
desprendimento nos permite aceder à vigilância autêntica. E não
esqueçamos: só um coração pobre vigia. Só um peregrino descobre. Só o
olhar do que não tem defesas consegue colher, no instante, a verdadeira
presença.
Escreve o místico Silesius:: «a rosa é sem porquê,
floresce porque floresce, não cuida de si própria, não pergunta se a
vemos». Quando se diz ‘a rosa é sem porquê’, ou ‘a rosa é de ninguém’,
propomo-nos investir num modo de construir o real que já não passa por
sermos predadores e o real ser uma presa que vamos dominar ou
domesticar. Entramos num espaço não já de predadores e presas, mas de
vigilantes, de contemplativos, de operadores do assombro.
Vigiar é colocar-se na disponibilidade para a
surpresa, para aquilo que vem, tendo consciência que o fundamental da
vida não é o que adquirimos, o que fizemos, o que de alguma maneira
dominámos, mas sim a incessante prática da hospitalidade. Toda a música
que ouvimos, nos preparou, no fundo, para o ato da escuta. Todos os
textos que estudamos, toda a poesia que lemos nos prepararam melhor para
o ato da leitura. Toda a relação em que investimos, todo o afeto que
partilhámos, todo o amor com que amámos, preparam-nos para o ato
simples de amar. A vigilância é isso. Não está no apego ao mapa, mas no
amor pela viagem. Temos mesmo de deixar a zona de conforto dos mapas
para nos tornarmos viajantes, enamorados, vigilantes, sentinelas.
Dir-se-ia que a vida nos pede uma escuta que atravesse o tempo, que
perfure os séculos, que transcenda a paisagem, sintonizando com aquilo
que verdadeiramente temos diante de nós. E, por isso, temo-nos de
perguntar muitas vezes, pela vida fora: Qual é a nossa fronteira? O que
é que nos olha de frente? O que trazemos diante de nós?
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* Teólogo. Escritor Português.
In Diário de Notícias (Madeira)
http://www.snpcultura.org/o_que_e_que_nos_olha_de_frente.html 19.07.11
In Diário de Notícias (Madeira)
http://www.snpcultura.org/o_que_e_que_nos_olha_de_frente.html 19.07.11
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