José Tolentino Mendonça*
Lumen fidei
"A fé cristã é luz.
Isto é: não há incompatibilidade entre fé e razão,
mas ambas se
reforçam mutuamente."
Comecemos por sacudir equívocos. O primeiro é o
de pensar que uma encíclica sobre a fé destina-se a ser acolhida dentro
da cerca eclesial, e aí só, como se ela não constituísse um texto de
enorme importância para a cultura ou para a sociedade no seu
conjunto. O segundo é a consideração de que a relevância do discurso
cristão se esgota nos pronunciamentos ditos sociais: o Papa Francisco
ir ao desembarcadouro de Lampedusa, reclamar corajosamente por
políticas mais humanas, colhe o interesse geral, mas propor, com igual
desassombro, uma reflexão sobre o sentido da fé, isso já é olhado como
minudência descartável.
Ora, a discussão sobre a fé, e sobre a
irreverente singularidade da fé cristã, é um assunto de cidade, como já
amplamente o provou o apóstolo Paulo, que deslocou esse debate do
interior das sinagogas para areópagos, escolas de filosofia, teatros e
cantos de estrada o debate sobre a essência do cristianismo precisa
urgentemente de reencontrar a sua natureza pública.
Em seguida, há que reconhecer que esta encíclica
representa, por si mesmo, um caso, embora longe de se reduzir a ele.
Quando o Papa Bento XVI decidiu escrever um tríptico sobre as chamadas
virtudes teologais (fé, esperança e caridade), esperava-se que tivesse
começado pela fé. Mas, de facto, isso não aconteceu: a sua encíclica de
estreia foi uma lição sobre a caridade. Antes da sua renúncia,
em Fevereiro deste ano, voltou-se a falar insistentemente em que ele
estaria a preparar finalmente a encíclica sobre a fé, mas os tempos
precipitaram-se e nada veio a lume. Seria já o Papa Francisco a aceitar
esta empresa «a quatro mãos»: partir de um primeiro esboço de
encíclica que Bento XVI tinha «quase concluído» e acrescentar «uma ou
outra nova contribuição». No fundo, trata-se simplesmente de Pedro
(Bento, Francisco ou qualquer outro nome que venha a ter) «a confirmar
os irmãos no tesouro incomensurável da fé».
Qual o resultado? Um texto de enorme espessura e
novidade, podemos dizê-lo, e que seria pena se não suscitasse a
hospitalidade cultural que merece. É que ele pratica essa
hospitalidade, convocando para a sua elaboração dialógica, além dos
textos das escrituras judaicas e cristãs, o pensamento de filósofos
(esperados, como Agostinho ou Tomás de Aquino; e inesperados, como
Nietzsche, Rousseau, Wittgenstein), de poetas (Dante e T. S. Eliot), de
escritores (Dostoievski), de teólogos antigos (Justino, Clemente de
Alexandria, Leão Magno) e contemporâneos (Newman, Guardini ou Buber).
Mas qual é a novidade? A novidade é uma
interpelação para o pensamento dominante. De facto, o racionalismo
unilateral que vigora sente-se no direito de desautorizar o estatuto da
fé. Na era da técnica, como aprenderemos a rezar? Quanto muito, e por
uma condescendência especial, admite-se que a fé possa existir «como um
salto no vazio, que fazemos por falta de luz e impelidos por um
sentimento cego», sem nenhuma objectividade.
O que a encíclica "Lumen Fidei" (Luz da Fé)
defende é precisamente contrário: a fé não é uma tábua de salvação
irracional a que nos agarramos, uma via de penumbra por onde enveredamos
para escapar ao desespero a que somos expostos. A fé cristã é luz.
Isto é: não há incompatibilidade entre fé e razão, mas ambas se
reforçam mutuamente. O cristianismo bebe tanto na revelação dos
profetas de Israel como na sabedoria de procura testemunhada pelos
filósofos gregos. Aliás, como recorda a encíclica, «o encontro da
mensagem evangélica com o pensamento filosófico do mundo antigo
constituiu uma passagem decisiva para o Evangelho chegar a todos os
povos e favorecer uma fecunda sinergia entre fé e razão». Como não há
incompatibilidade entre fé e verdade. Aliás, uma verdade que não
englobasse a fé (como experiência ou, pelo menos, como possibilidade)
seria uma verdade incompleta, incapaz de superar o efémero.
-----------------------------* Teólogo português. Escritor.
In Expresso, 13.7.2013
Fonte: http://www.snpcultura.org/lumen_fidei_a_novidade_de_uma_enciclica.html 14.07.13
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