segunda-feira, 15 de julho de 2013

O espaço vazio


Daniel Galera*

 

A importância de preservar o lugar da escrita na vida pessoal

Em seu discurso de recebimento do Prêmio Nobel de Literatura em 2007, Doris Lessing fez uma série de comentários sobre a importância da tradição literária e da memória na vida e no trabalho de um escritor. Lá pelas tantas, do alto de sua experiência, ela comenta um aspecto às vezes negligenciado: a importância de preservar o espaço da escrita na vida pessoal.

Lessing diz que é frequente perguntarem aos autores sobre seu processo criativo, se escrevem à mão ou no computador, se têm alguma mania ou disciplina, mas a questão essencial, de acordo com ela, é: “Você conseguiu encontrar um espaço, aquele espaço vazio que deveria ter à sua volta enquanto escreve?” Ela define esse espaço como “um modo de escuta, de atenção”, que será preenchido pelas vozes dos personagens, pelas ideias. É sobre isso, diz Lessing, que os autores conversam entre si: “Você encontrou esse espaço? Está conseguindo preservá-lo a todo custo?”

Lembrei desse texto dias atrás, na Festa Literária Internacional de Paraty, quando tive a oportunidade de tomar algumas xícaras de café com o ensaísta John Jeremiah Sullivan, cujo excelente “Pulphead” acaba de ser publicado no Brasil. Falamos sobre blues, sobre as manifestações que estão ocorrendo no Brasil, sobre nossos livros anteriores e, finalmente, sobre o que estávamos escrevendo agora. Ele está tentando não perder o rumo de um livro de não ficção no qual trabalha há dois anos; eu ainda estou tentando voltar à ficção depois de meses de divulgação do meu último romance e de esforços para concluir todas as traduções e trabalhos que deixei de entregar no prazo por causa dos meses dedicados à conclusão desse mesmo romance.

“Você encontrou esse espaço? Está conseguindo preservá-lo a todo custo?”

Sempre imagino que caras como o Sullivan têm essa questão resolvida em suas vidas. Ele deve pensar o mesmo de outros autores. A verdade é que, na vida contemporânea, a batalha pela proteção desse espaço vazio da criação se tornou um novo tipo de guerra, interminável e contra um inimigo onipresente. Poucos autores — talvez somente os mais reclusos temperamentos — escapam dela.
Não vou fingir que não estou vendo a ironia da situação: dois autores na Flip, numa das poucas brechas entre as mesas, entrevistas, conversas com leitores, festas de editoras e instâncias de interação social voluntária ou forçada, compartilhando a nostalgia de um isolamento perdido ou que jamais tiveram, pensando no que poderiam estar escrevendo naquele exato momento caso estivessem em casa ou no escritório, milagrosamente livres de incertezas, limitações, dispersão doméstica e miasmas de procrastinação. Também não vou transformar o resto desta coluna numa diatribe contra os eventos literários e a espetacularização da figura do escritor, embora haja uma série de ameaças sérias nesta segunda, que vão do fomento à indulgência e autoindulgência ao esvaziamento do caráter fabular da ficção literária, passando por questões mercadológicas (promoção e autopromoção vis-à-vis qualidade e recepção da obra et cetera).

Para além dos inegáveis benefícios para a difusão e o debate da literatura, os eventos literários celebram o prazer da nossa relação com os livros e o compartilhamento da leitura, ao mesmo tempo em que servem ao mercado. Nada disso exclui necessariamente o rigor intelectual, o desenvolvimento de juízo crítico e a sobriedade introspectiva de uma leitura envolvida.

Mas nenhum autor pode perder de vista o risco ressaltado por Lessing: “Você ainda tem seu espaço? Sua alma, aquele lugar íntimo e necessário onde suas vozes podem conversar com você, onde consegue sonhar? Oh, agarre firme, não solte!” Há autores capazes de preservar esse espaço vazio na turbulência da cena literária, dos deslocamentos geográficos e do convívio social extremo. Há até mesmo aqueles que extraem energia criativa disso e depois escrevem em saguões de aeroporto e nos breves intervalos entre os compromissos. Há autores que gostam de falar, ou ao menos não se importam.

Mas para muitos — suspeito que seja a maioria — o espaço vazio ainda requer afastamento e alguma medida de abnegação. No meu caso, falar em público (e se expor a lentes) pode ser muito desgastante. Não sou intelectual. Só sei falar sobre o que escrevi, e mesmo isso soa como uma espécie de indiscrição imprecisa. Falta pathos à minha trajetória como autor e à porção de vida pessoal que estou disposto a compartilhar nesse tipo de ocasião — o meio para transcender isso são os livros, é a ficção, a literatura. Amplificação, disfarce, fantasia; também a descrição amorosa de tudo que parece ser exterior a mim, mas me afeta. Para prosseguir é necessário desaparecer um pouco. “Oh, agarre firme, não solte!” Exposição e sossego. Vaidade e doação. E por aí vai. É uma longa fileira de gangorras nesse parquinho.
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* Colunista do Globo
Imagem da Internet 

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