Daniel Galera*
A importância de preservar o lugar da escrita na vida pessoal
Em seu discurso de recebimento do Prêmio Nobel de
Literatura em 2007, Doris Lessing fez uma série de comentários sobre a
importância da tradição literária e da memória na vida e no trabalho de
um escritor. Lá pelas tantas, do alto de sua experiência, ela comenta um
aspecto às vezes negligenciado: a importância de preservar o espaço da
escrita na vida pessoal.
Lessing diz que é
frequente perguntarem aos autores sobre seu processo criativo, se
escrevem à mão ou no computador, se têm alguma mania ou disciplina, mas a
questão essencial, de acordo com ela, é: “Você conseguiu encontrar um
espaço, aquele espaço vazio que deveria ter à sua volta enquanto
escreve?” Ela define esse espaço como “um modo de escuta, de atenção”,
que será preenchido pelas vozes dos personagens, pelas ideias. É sobre
isso, diz Lessing, que os autores conversam entre si: “Você encontrou
esse espaço? Está conseguindo preservá-lo a todo custo?”
Lembrei
desse texto dias atrás, na Festa Literária Internacional de Paraty,
quando tive a oportunidade de tomar algumas xícaras de café com o
ensaísta John Jeremiah Sullivan, cujo excelente “Pulphead” acaba de ser
publicado no Brasil. Falamos sobre blues, sobre as manifestações que
estão ocorrendo no Brasil, sobre nossos livros anteriores e, finalmente,
sobre o que estávamos escrevendo agora. Ele está tentando não perder o
rumo de um livro de não ficção no qual trabalha há dois anos; eu ainda
estou tentando voltar à ficção depois de meses de divulgação do meu
último romance e de esforços para concluir todas as traduções e
trabalhos que deixei de entregar no prazo por causa dos meses dedicados à
conclusão desse mesmo romance.
“Você encontrou esse espaço? Está conseguindo preservá-lo a todo custo?”
Sempre
imagino que caras como o Sullivan têm essa questão resolvida em suas
vidas. Ele deve pensar o mesmo de outros autores. A verdade é que, na
vida contemporânea, a batalha pela proteção desse espaço vazio da
criação se tornou um novo tipo de guerra, interminável e contra um
inimigo onipresente. Poucos autores — talvez somente os mais reclusos
temperamentos — escapam dela.
Não vou fingir que
não estou vendo a ironia da situação: dois autores na Flip, numa das
poucas brechas entre as mesas, entrevistas, conversas com leitores,
festas de editoras e instâncias de interação social voluntária ou
forçada, compartilhando a nostalgia de um isolamento perdido ou que
jamais tiveram, pensando no que poderiam estar escrevendo naquele exato
momento caso estivessem em casa ou no escritório, milagrosamente livres
de incertezas, limitações, dispersão doméstica e miasmas de
procrastinação. Também não vou transformar o resto desta coluna numa
diatribe contra os eventos literários e a espetacularização da figura do
escritor, embora haja uma série de ameaças sérias nesta segunda, que
vão do fomento à indulgência e autoindulgência ao esvaziamento do
caráter fabular da ficção literária, passando por questões
mercadológicas (promoção e autopromoção vis-à-vis qualidade e recepção
da obra et cetera).
Para além dos inegáveis
benefícios para a difusão e o debate da literatura, os eventos
literários celebram o prazer da nossa relação com os livros e o
compartilhamento da leitura, ao mesmo tempo em que servem ao mercado.
Nada disso exclui necessariamente o rigor intelectual, o desenvolvimento
de juízo crítico e a sobriedade introspectiva de uma leitura envolvida.
Mas
nenhum autor pode perder de vista o risco ressaltado por Lessing: “Você
ainda tem seu espaço? Sua alma, aquele lugar íntimo e necessário onde
suas vozes podem conversar com você, onde consegue sonhar? Oh, agarre
firme, não solte!” Há autores capazes de preservar esse espaço vazio na
turbulência da cena literária, dos deslocamentos geográficos e do
convívio social extremo. Há até mesmo aqueles que extraem energia
criativa disso e depois escrevem em saguões de aeroporto e nos breves
intervalos entre os compromissos. Há autores que gostam de falar, ou ao
menos não se importam.
Mas para muitos — suspeito
que seja a maioria — o espaço vazio ainda requer afastamento e alguma
medida de abnegação. No meu caso, falar em público (e se expor a lentes)
pode ser muito desgastante. Não sou intelectual. Só sei falar sobre o
que escrevi, e mesmo isso soa como uma espécie de indiscrição imprecisa.
Falta pathos à minha trajetória como autor e à porção de vida pessoal
que estou disposto a compartilhar nesse tipo de ocasião — o meio para
transcender isso são os livros, é a ficção, a literatura. Amplificação,
disfarce, fantasia; também a descrição amorosa de tudo que parece ser
exterior a mim, mas me afeta. Para prosseguir é necessário desaparecer
um pouco. “Oh, agarre firme, não solte!” Exposição e sossego. Vaidade e
doação. E por aí vai. É uma longa fileira de gangorras nesse parquinho.
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* Colunista do Globo
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