*
Monsieur de Balzac, em seu “Tratado da Vida Elegante” o senhor divide a humanidade em três segmentos. Quais são eles?
A civilização, eu suponho, realmente dividiu os homens em três únicos
segmentos – o homem que trabalha, o homem que pensa e o homem que não
faz nada. Daí, pode-se dizer que há três tipos de vida – a vida ocupada,
a vida de artista e a vida elegante.
O senhor poderia explicá-las mais detalhadamente, focando na vida elegante?
Sim. Devemos começar com a vida ocupada. O tema da vida ocupada não
tem variantes. Ao ocupar as mãos, o homem abdica de todo um destino; ele
se torna um meio e, apesar de toda a nossa filantropia, apenas os
produtos de seu trabalho se tornam merecedores de nossa admiração –
afinal das contas, os operários não passam de espécies de correias de
transmissão e confundem-se com os carrinhos de mão, as pás e as
picaretas.
Acho que o senhor está sendo injusto.
Na verdade, não estou. Semelhantes às máquinas a vapor, os homens
arregimentados para o trabalho são todos produzidos da mesma forma e não
tem nada de individual. O homem instrumento é uma espécie de zero
social.
Mas e a vida de artista?
O artista é uma exceção: sua ociosidade é um trabalho e seu trabalho,
um repouso; ele é, alternadamente, elegante e desleixado; veste-se, a
seu bel-prazer, a camisa do operário, e decide-se pelo fraque trajado do
homem da moda; não está sujeito a leis: ele as impõe. O artista é
sempre a expressão de um pensamento que domina a sociedade. E também é
sempre grande, tendo uma elegância e uma vida própria. Neles a moda não
deve ser imposta: esses seres indomáveis moldam tudo a seu gosto.
E, por fim, a vida elegante?
A vida elegante é a perfeição da vida exterior e material, ou antes a
arte de despender as suas rendas como homem de espírito. Ainda podemos
chama-la de “a ciência que nos ensina a não fazer nada como os outros,
mas aparentando fazer tudo como eles.” Principalmente, digamos que ser
elegante é saber orgulhar-se de sua fortuna.
O senhor considera a vida elegante louvável ou frívola?
Eu a considero louvável, embora reconheça que há suas desvantagens.
Na doutrina de Saint-Simon, a vida elegante é considerada a maior doença
que uma sociedade poderia sofrer, partindo do princípio de que uma
grande fortuna é um roubo. E, segundo Chodruc, ela é um tecido de
frivolidades e palavras ocas. Mas a verdade é que a elegância dá um
aspecto mais pitoresco a um país e melhora a agricultura. Ela é
maravilhosa.
E há, consequentemente, uma diferença entre as classes sociais e
um tipo de segregação, não é? Afinal, nem todos desfrutam dos mesmos
privilégios monetários.
De fato, uma vez que um povo constituído apenas de ricos é um sonho
político impossível de ser realizado. Uma nação compõe-se
necessariamente de pessoas que produzem e de pessoas que consomem. Como
se explica que aquele que semeia, planta, rega e colhe é precisamente
aquele que menos come?
Como é que se explica?
Explica-se da seguinte maneira: Desde que as sociedades existem, um
governo tem necessariamente sido, sempre, um contrato de segurança
concluído entre os ricos contra os pobres. É do desejo de não pertencer à
classe sofrida e humilhada e da paixão geral pela fortuna que derivam a
nobreza, a aristocracia, as distinções, etc.
E como surgiu a vida elegante?
Quando reconheceu-se que é infinitamente agradável, para um homem ou
uma mulher, pensar, olhando seus concidadãos: “Estou acima deles; eu os
deslumbro, os projeto e os governo.” Foi então que surgiu a vida
elegante, aumentada e ressuscitada por esse monólogo maravilhosamente
moral, religioso, monárquico, literário, constitucional, egoísta: “Eu
deslumbro, eu protejo, eu…” etc, pois os princípios segundo os quais se
conduzem e vivem as pessoas que tem talento, poder e dinheiro não se
assemelharão jamais aos da vida vulgar.
Qualquer pessoa rica pode viver a vida elegante?
É claro que não. Não basta ter nascido ou ter se tornado rico para
levar a vida elegante; é preciso ter o sentimento disso. “Não pose de
príncipe”, disse Sólon, “se você não aprendeu a sê-lo.” Ou, melhor
dizendo, um homem torna-se rico, mas nasce elegante.
Monsieur de Balzac, o senhor considera que a Revolução Francesa
diminuiu as diferenças entre os pobres e os ricos, guilhotinando vários
aristocratas?
Querida, a Revolução Francesa apenas deixou ainda mais claras todas
essas diferenças. Em nossa querida França, um nobre poderia fazer
dívidas, viver nos cabarés, não saber escrever ou falar, ser ignorante,
estúpido; prostituir seu caráter ou corpo, dizer besteiras, e continuar
nobre. O carrasco e a lei distinguiam-no de todos os pobres,
cortando-lhe a cabeça em vem de enforcá-lo. Mas, apesar do progresso
evidente dado à ordem social pelo movimento de 1789, o abuso necessário
que constitui a desigualdade das fortunas recriou-se sob novas formas.
Bem, isso é discutível. Mas vamos passar para o próximo ponto. O que distingue o homem ocioso do homem ocupado?
Os ociosos não são mais fetiches, mas verdadeiros deuses. O saber viver, a elegância de maneiras, o não sei o quê,
fruto de uma educação completa, forma a única barreira que separa o
ocioso do homem ocupado. Se existe um privilégio, ele provém da
superioridade moral.
Nós reconhecemos o ocioso no momento em que o encontramos?
Diz-se, meu bem, que o espírito de um homem adivinha-se pela maneira como ele porta sua bengala.
Boa frase! Mas, nos dias de hoje, quase ninguém usa bengala só por considera-la elegante…
Nesse caso, vamos simplificar as coisas. Digamos apenas que a toalete
é a expressão da sociedade. E quando digo toalete, veja bem, estou me
referindo tanto ao ato de se lavar, pentear, maquiar e vestir quanto ao
conjunto de peças de vestiário, adereços, enfeites, cosméticos, etc.
Ok. Mas o que significa que a toalete é a expressão da sociedade?
Você veste um gorro verde? Você é um homem sem honra.
Risos.
Brummell tinha razão em ver a toalete como o ponto culminante da vida
elegante; pois ela domina as opiniões, ela as determina, ela reina! É
talvez uma desgraça, mas assim funciona o mundo. Onde há muitos tolos,
as tolices se perpetuam. O descuido com a toalete é um suicídio moral.
Uma pessoa pode se tornar elegante? Eu digo, com bastante esforço e perseverança?
Essa não é uma pergunta fácil. Mas acho que sim. Embora a elegância
seja menos uma arte do que um sentimento, ela provém tanto de um
instinto quanto de um hábito.
Há alguma coisa que impeça uma pessoa de ser elegante? Isto é, além do que falamos até agora?
Sim. Primeiro, estão fora da vida elegante os varejistas, os homens
de negócios e os professores de humanidade. Depois, o banqueiro que
chegou aos quarenta anos sem ter declarado falência, ou que tem mais de
trinta e seis polegadas de cintura, é o camarada que verá o paraíso sem
nunca aí entrar. E há o mais importante…
O que é o mais importante?
A criatura que não vem frequentemente a Paris jamais será completamente elegante.
Um dos sete pecados capitais do Cristianismo é a luxúria. Isso parece meio tolo, não é?
Muito tolo, mas a verdade é que há perfeições revoltantes. Mas
analisemos a questão de modo imparcial. A Igreja reconhece sete pecados
capitais e não admita mais que três virtudes teologais. Temos, pois,
sete princípios de remorso contra três fontes de consolação – o bem não
tem senão o modo; o mal tem mil. Nenhuma criatura humana, sem excetuar
Santa Teresa nem São Francisco de Assis, conseguiu escapar às
consequências dessa proposição fatal.
Entendo. Bem, nós já conversamos sobre as origens da vida
elegante. E, agora, acho que seria conveniente falarmos sobre os pilares
dela. Sob quais princípios e ideias a vida elegante se sustenta?
O princípio constitutivo da elegância é a unidade. Não existe unidade
possível sem o esmero, sem a harmonia, sem a simplicidade relativa. Mas
não é a simplicidade antes da harmonia, nem a harmonia antes do esmero,
que produz a elegância: ela nasce de uma concordância misteriosa entre
essas três virtudes primordiais.
Hmmm…
É por isso que, na vida elegante, uma única cadeira deve determinar
toda uma série de móveis. Uma certa maneira de vestir-se anuncia uma
certa esfera de nobreza e de bom gosto. Cada fortuna tem sua base e seu
cume. Os Georges Cuviers da elegância nunca se expõem a formular juízos
errôneos: eles lhe dirão a qual quantidade de zeros, na cifra das
rendas, devem pertencer as galerias de quadros, os cavalos de pura raça,
os tapetes da Savonnerie, as cortinas de seda diáfana, as lareiras de
mosaico, os vasos etruscos e os relógios encabeçados por uma estátua
saída do cinzel dos Davids. Tragam-lhe, enfim, apenas uma patera:
deduzirá daí todo um toucador um aposento, um palácio.
Eu entendi tudo o que o senhor disse, Monsieur, e o considero
genial. Mas, de qualquer modo, não consigo compreender como essa gente
consegue manter hábitos tão horrivelmente caros. Eu digo, por mais ricos
que possam ser, poucas fortunas aguentam sustentar cavalos de pura
raça, galerias de quadros, vasos etruscos e assim por diante.
O efeito mais essencial da elegância consiste em ocultar os meios.
Tudo o que revela uma economia é deselegante. Com efeito, a economia é
um meio. É o nervo de uma boa administração, mas assemelha-se ao óleo
que fornece a flexibilidade e a suavidade às engrenagens de uma máquina:
não deve ser vista nem sentida.
Só para encerrarmos, Monsieur de Balzac, tenho uma pergunta. A vida elegante produz criaturas perfeitas?
Deus, não! As mulheres deveriam compreender que um defeito pode lhes
dar enormes vantagens. A Srta. De la Vallière mancava com graça e
conquistou um rei. Na verdade, o homem perfeito ou a mulher perfeita são
os mais vazios dos seres.
--------------------------------
* Camila Nogueira, nossa correspondente de literatura, tem a
impressionante capacidade de ler romances de 600 páginas em dois dias --
e depois citar frases inteiras da obra. Com apenas 16 anos, ela já leu
as obras completas dos maiores mestres da literatura - como Balzac,
Dumas, Fitzgerald e Dickens.
Fonte: http://www.diariodocentrodomundo.com.br/o-guia-da-elegancia-de-balzac/#top
Nenhum comentário:
Postar um comentário