"A bioética surge a partir da teoria dos direitos humanos,
que nada mais é que justiça social."
A trindade da ficção científica do século XX - "1984", de George
Orwell; "A Revolução dos Bichos", também de Orwell; e "Laranja
Mecânica", de Anthony Burgess -, traz à tona temas recorrentes e atuais
na sociedade contemporânea. Os livros abordam assuntos que hoje
ultrapassam campos sociopolíticos e filosóficos e pautam a bioética. No
seu escopo estão aspectos éticos da preservação da qualidade de vida em
um mundo já bastante devastado por uma tecnização brutal, o debate sobre
a ética ambiental, os direitos fundamentais das futuras gerações e o
desenvolvimento sustentável, entre tantas outras questões.
"Conflitos morais sempre existiram e sempre existirão", diz o
professor Volnei Garrafa, coordenador da cátedra Unesco de Bioética da
Universidade de Brasília (UnB). "A história comprova, porém, que um
cenário extremamente contra ou excessivamente a favor obstrui a ciência e
o desenvolvimento de um país." É justamente para equilibrar esse
movimento que se coloca a bioética. Uma área de diálogo, que tem ganhado
força desde que o termo foi cunhado, a partir da Segunda Guerra
Mundial, quando testes com energia nuclear, a bomba atômica e
experimentos humanos pelos nazistas levaram o mundo a reavaliar os
objetivos das pesquisas. "Teoricamente, é nesse ponto que as políticas
partidárias começam a dar lugar a questões universais como a ética da
vida e da terra."
O conceito, então, foi popularizado pelo oncologista americano Van
Rensealler Potter, na década de 70, com seu livro "Bioética: ponte para o
futuro". Não se pode, contudo, resumi-lo a medicina ou a tecnologia.
"Funciona como um amortizador para várias frentes, causando impacto em
todos os negócios", diz o especialista. "Deveria inclusive ser uma
disciplina de currículos secundários para que questões como eutanásia e
aborto, entre outras, deixassem de ser discutidas pelo viés punitivo,
além de formar profissionais qualificados", avalia Garrafa.
Ele, que já foi presidente da Sociedade Brasileira de Bioética,
destaca a importância da criação de um Conselho Nacional de Bioética no
país, conforme o projeto de Lei 6.032/2005. O objetivo é ajudar nas
tomadas de decisões sobre questões éticas e morais, fundamentais para a
competitividade econômica. A proposta, no entanto, está parada na Câmara
dos Deputados desde 2008. "Temas polêmicos, mas de interesse da
sociedade não avançam por falta de diálogo e consequentemente a economia
brasileira não evolui", diz. "Conflitos entre empresas, igrejas
precisam ser mediados."
Segundo Garrafa, todos os países da Comunidade Europeia têm
conselhos, sendo a França pioneira a criá-lo, em 1982. "O Brasil está
atrasado", diz. "Nosso bebê de proveta nasceu em 1984, e até hoje não
temos legislação para as novas tecnologias reprodutivas." E os temas
passíveis de debate só aumentam. Depois das questões ambientais, nos
anos 80, veio a globalização que aprofundou as desigualdades e
escancarou ao mundo a pobreza e a miséria, incutindo no setor
corporativo a responsabilidade social. A década de 90 foi ainda marcada
pelo Projeto Genoma e a clonagem da ovelha Dolly.
"Depois da fase de aperfeiçoamento clínico, é a vez das políticas de
saúde, de educação e de cultura", diz a médica Regina Parizi, doutora em
Bioética e ex-presidente do Conselho Regional de Medicina de São Paulo.
"Está no nosso escopo desde a ultraviolência gerada pela urbanização
sem planejamento e políticas públicas de mobilidade até o que fazer com o
lixo eletrônico." Outra grande discussão interligada é a descoberta do
DNA de um super-homem. Ou seja, criar células capazes de reduzir
agressividade, ampliar força e até inteligência.
A saúde alimentar é, de acordo com Regina, mais um item que deve
ganhar atenção na agenda dos pesquisadores nos próximos anos. "Há uma
transferência de risco via matriz industrial, que provoca doenças
crônicas como diabetes e hipertensão, causadas por porções exageradas,
excesso de gordura e de sódio, e isso já é uma preocupação real das
companhias de alimentos e bebidas", diz a médica.
Segundo recomendação da Organização Mundial de Saúde, a ingestão
máxima de sódio deve ser de dois gramas diários, o equivalente a cinco
gramas de sal. O brasileiro consome 12 gramas de sal por dia, mais do
que o dobro do recomendado pela OMS. E os principais produtos com alto
teor de sódio são aqueles mais consumidos por crianças.
Bolachas e salgados de milho, assim como o macarrão, já integram um
programa de redução de sódio de produtos processados no país, feito pelo
Ministério da Saúde e Associação Brasileira de Indústrias de
Alimentação. O acordo prevê a retirada gradual do sódio de alimentos
processados. Até agora foram anunciadas reduções para 13 classes de
alimentos. A meta é retirar até 20 mil toneladas de sódio até 2020.
A transdisciplinaridade da bioética faz com que profissionais estejam
reunidos também em torno da temática agrária, por causa dos conflitos
indígenas. É ético e moral levar uma tribo para outro terreno e deixar
os restos mortais de seus antepassados enterrados em um local onde será
uma hidrelétrica, por exemplo? E as comunidades afetadas pelos projetos
das mineradoras? Até que ponto elas são beneficiadas? Como responder a
essas e outras particularidades de cada cultura?
De modo geral, obras de infraestrutura sempre serão polêmicas, pois
as intervenções são grandes, inclusive com alteração de paisagem. "É
preciso avaliar caso a caso, mas o certo é que o tema está cada vez mais
vez mais adequado à sustentabilidade e ainda se faz muito marketing
social nesse sentido", diz Paulo Fortes, vice-diretor da Faculdade de
Saúde Pública da USP. "A bioética surge a partir da teoria dos direitos
humanos, que nada mais é que justiça social."
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