ROBERTO ROMANO *
"Toda nação europeia, sem a influência da Santa Sé, será levada invencivelmente à servidão ou à revolta" (De Maistre). O pensamento conservador do século 19 põe no pontífice a base da ordem social e política, premissas retomadas pelos líderes eclesiásticos em documentos e tratados diplomáticos. A síntese entre poder divino e secular permite entender os papas recentes. Em carta ao cardeal Gasparri (1929), Pio XI diz sobre o Tratado de Latrão: a Igreja e o poder civil formam uma "ordem necessariamente determinada pelos respectivos fins". Logo, "a dignidade objetiva dos fins determina necessariamente a absoluta superioridade da Igreja". O Vaticano sustentou poderes estatais, mesmo quando eles prometiam barbárie, como na Concordata (Reichskonkordat) com Hitler. O apoio ao Führer teve contrapartidas. O artigo 5.º do tratado indica: "No exercício de sua atividade sacerdotal, os eclesiásticos gozam da proteção do Estado, do mesmo modo que os funcionários do Estado". A Igreja proíbe atividades partidárias dos padres e movimentos leigos na Alemanha. Desarmados os católicos, o nazismo se fortifica. Hitler violou sistematicamente a Concordata.
No Vaticano II ocorre importante mudança na política acima. O apoio a Mussolini e a Hitler supunha extirpar liberais, socialistas e outros. A Gaudium et Spes proclama que "muitos e vários são os homens que integram a comunidade política e podem legitimamente seguir opiniões diversas (...) o exercício da autoridade política, seja na comunidade como tal, seja nos órgãos representativos do Estado, sempre deve ser realizado nos limites da ordem moral (...) de acordo com a ordem jurídica legitimamente estabelecida ou por estabelecer". Cautela diante dos líderes autoritários: "Os cidadãos (...) evitem atribuir demasiado poder à autoridade pública e não exijam dela inoportunamente privilégios e proveitos exagerados, de tal modo que diminuam a responsabilidade das pessoas, das famílias e dos grupos sociais".
Depois de Paulo VI a política vaticana vai do Concílio à Realpolitik. João Paulo II colabora para o enterro da URSS, o que libera forças democráticas. Mas, como provam M. Politi e C. Bernstein (Sua Santidade), ele foi silente em face de regimes como o de Pinochet, aliando-se a Reagan em feitos pouco defensáveis. Wojtyla/Ratzinger lançam o Termidor. "É preciso", proclama o Concílio, "reconhecer que a cidade terrena, a quem são confiados os cuidados temporais, se rege por princípios próprios". A maioridade foi reconhecida aos leigos. João Paulo II tutela os fiéis na vida pública e na Igreja. À hierarquia foi atribuído poder inaudito. Logo, a direção da Igreja gira em torno de si mesma, tolera descalabros éticos e políticos que levam à renúncia de Bento XVI. Nada foi deixado aos padres e leigos. Aumenta o êxodo rumo à indiferença religiosa, ao ateísmo.
Segundo K. Mannheim, "a Igreja Católica é a grande instituição que, pela primeira vez, planificou o lado social da cultura. Ela exibe muito saber deixando que seus integrantes externos façam experimentos na sua periferia. Quando eles fracassam a Igreja os desaprova ou excomunga; mas formas bem-sucedidas de ajuste e mudança fazem por vezes suas organizações lutarem pela própria Igreja. Assim ocorreu com as ordens monásticas e grupos missionários como Cluny e os Jesuítas". Francisco ressuscita esperanças dos que seguem a Teologia da Libertação. Mas os altares simultâneos para João XXIII e João Paulo II sinalizam uma complexa abertura pontifícia para várias saídas. Francisco mostra que não assume um discurso fechado, nem favorece a via progressista. O contentamento por seus gestos deve ser moderado pela prudência. Entusiastas não operam com a razão, mas com a vontade e o dogma, acolhidos como inquestionáveis. Quando publiquei meu doutoramento, defendido na França em 1978, João Paulo II era a esperança. Em Brasil, Igreja contra Estado, apresento análises, documentos à vista, nas quais mostro a lógica que move a Igreja moderna: afirmar sua soberania espiritual acima de Estados e sociedades, como na tese de Pio XI. O livro alerta os que imaginavam uma Igreja catequizada pelo socialismo.
Como resposta alguém proclamou, baseado apenas no desejo, "uma inegável tendência da Igreja na direção do projeto socialista, como o verificou o insuspeito historiador da Igreja R. Aubert, e outros analistas sérios" (Clodovis Boff, A Igreja da Esperança). O dito socialismo baseava-se no equívoco de identificar a tese marxista (a socialização dos meios de produção) e a Doutrina Social da Igreja (a propriedade social). Jogo semântico, para ser caridoso, o "socialismo" eclesiástico era desprovido de base histórica.
Na vida social, política, econômica ou religiosa, nada é "inegável", salvo para quem, em vez de pesquisar tendo a dúvida como corretivo, decreta, como o camarada Lyssenko, certezas catastróficas. A repressão de João Paulo II/ Bento XVI foi atenuada, mas nada indica que Francisco, que segue a Doutrina Social da Igreja, chegue ao socialismo ou prescreva heterodoxias morais ou místicas. Os governos também se acautelem: a Igreja apoia a ordem civil, mas busca acima de tudo preservar sua missão e defender seus espaços. Como diz Elias Canetti, perto dela "todos os poderosos dão a impressão de serem modestos diletantes". E diletantes enxameiam nos palácios brasileiros.
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* ROBERTO ROMANO É PROFESSOR DE ÉTICA E FILOSOFIA DA UNICAMP E AUTOR DE 'O CALDEIRÃO DE MEDEIA' (PERSPECTIVA).
Fonte: Estadão on line, 31/07/2013
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