sábado, 27 de julho de 2013

João Biehl: "Bala mágica não funciona em saúde"

OUTRO FOCO O gaúcho João Biehl propõe um modelo de saúde menos voltado para a tecnologia e mais para as pessoas (Foto: Divulgação)
Um dos acadêmicos brasileiros mais premiados internacionalmente critica os programas de erradicação de doenças similares aos promovidos pela Fundação Gates
Por gostar de contar histórias de pessoas, o gaúcho João Biehl estudou jornalismo. Trabalhou como freelancer, depois enveredou pelo mundo acadêmico. Foi parar na Universidade Berkeley, nos Estados Unidos, onde fez um curso de doutorado em história da religião e se encantou com a antropologia. Especializou-se em antropologia da saúde, onde procura contar histórias do ponto de vista de quem não tem conhecimento científico. Professor da Universidade Princeton, nos Estados Unidos, desde 2001, Biehl publicou o livro Vita, sobre populações marginalizadas da Bahia, afetadas pela aids. Com ele, ganhou seis prêmios, entre eles o Prêmio Margaret Mead, da Associação Antropológica Americana. Em Princeton, Biehl é codiretor do programa de saúde global e política de saúde da universidade. Sobre esse tema, acaba de organizar um livro com uma coletânea de artigos e estudos.

ÉPOCA – Qual sua crítica às iniciativas globais de saúde?
João Biehl – 
Elas são, geralmente, público-privadas e são muito baseadas em tecnologia. Não fazem uma autocrítica e, ao mesmo tempo, não tentam achar mecanismos para monitorar os efeitos dessas intervenções na vida das pessoas e das comunidades ao longo do tempo. É preciso ter uma visão mais voltada para as pessoas e as comunidades, porque elas têm noção de seus problemas e de possíveis soluções.
ÉPOCA – Como isso ocorre na prática?
Biehl –
 Muitas iniciativas têm a postura da bala mágica, que não funciona. Foi o que ocorreu com a tentativa de erradicar a malária com DDT, nos anos 1950 e 1960, no México. Fracassou. As pessoas não participaram das campanhas de malária, porque viam que havia problemas ecológicos graves. Mas as campanhas serviram para legitimar uma tecnologia no mercado, o DDT. Décadas depois, a Fundação Carter disse: “Vamos erradicar o verme-da-guiné (parasita que provoca uma infecção) em Gana”. Lá, nas comunidades, o diabetes é o verdadeiro problema, porque, agora, não comem mais arroz cultivado por eles próprios, mas importam arroz da Coreia. Essa atitude um pouco mágica não atende ao que acontece de fato e ignora as complexidades locais, sociais, institucionais.

ÉPOCA – Esse problema também existe no programa de combate à malária, na África e no mundo, adotado pela Fundação Bill e Melinda Gates?
Biehl – Exato. A tentativa é a erradicação, mas a doença nunca é uma coisa só. A doença são várias doenças ao mesmo tempo. Essa abordagem acaba tirando de vista as várias dimensões do problema. Outra questão é que as intervenções têm de produzir resultados. São “tantas redes distribuídas”, “tantos medicamentos”, “tantos antirretrovirais” colocados lá. Há uma cultura auditória marcada pelo volume, não pela avaliação do valor da intervenção. E o valor da intervenção é mais complexo. É preciso acompanhar comunidades e pacientes em recuperação ao longo do tempo. Outro problema é que as ONGs acabam virando entes paraestatais, que também servem a governos e os eximem de intervenções estruturais.

ÉPOCA – Há exemplos disso?
Biehl –
 Um dos exemplos é o tratamento da aids em Uganda. O governo de Uganda, claro, deu as boas-vindas ao apoio internacional. Mas se apropriou desse apoio e disse à população que era o governo que fornecia aquele tratamento, quando, na verdade, os remédios e as drogas vinham de centenas de fontes diferentes. Numa região, há remédios dos Estados Unidos. Noutra, há remédios das Nações Unidas. Para outra, vão remédios de uma universidade americana que faz testes clínicos. Nesse contexto, as pessoas usam os mecanismos sociais que têm à disposição para tentar acessar os remédios ou as bolsas de alimentação que vêm com os remédios. Isso acaba virando clientelismo e não produz cidadania, cuidado, estima. Não é uma cidadania terapêutica, mas um clientelismo terapêutico que é criado.
"Muitas iniciativas globais
geram clientelismo terapêutico" 
 
ÉPOCA – Mas a vida dessas pessoas contaminadas pelo vírus da aids não melhora com esse tipo de iniciativa?
Biehl –
 Diria que sim. Mas é um sim aberto. Houve um movimento, no final dos anos 1990, de tornar os tratamentos contra a aids acessíveis a todos também nos países em desenvolvimento. O Brasil foi o modelo principal dessa política, que mostrou ser possível universalizar o tratamento da doença dentro de um país. Isso virou, basicamente, uma norma. Mas esse foco unilateral na aids criou um excepcionalismo em torno dessa doença, enquanto as pessoas sofrem de condições crônicas relacionadas a outras questões, como saneamento, alimentação e estilo de vida. Elas vivem vidas mais longas, têm outros tipos de câncer. Um dos estudos de caso do livro é sobre dor em Botsuana, na África. Botsuana também teve um programa universal de tratamento da aids, como o Brasil. Mas só há uma unidade de tratamento oncológico no país, e lá as pessoas não têm acesso nem à quimioterapia primária nem a formas de cuidados paliativos. Precisam de um cuidado mais elementar, mais humano, de acesso a um tratamento paliativo, mas isso elas não têm. O que têm é a tecnologia de ponta para tratar uma doença específica. Esse foco na doença, e não na doença e em seu contexto, cristalizou uma visão de saúde pública que, a meu ver, criou uma espécie de “farmaceuticalização”.

ÉPOCA – O que é isso?
Biehl –
 Isso significa que o direito à saúde é visto como dar ao cidadão acesso à tecnologia e ao fármaco. Isso é algo muito presente na própria demanda da população. As pessoas acham que, com isso, são atendidas: “Eu ganhei o exame, ganhei o remédio”. A postura da bala mágica chega também a um nível bastante individualizado. É preciso repensar a saúde de uma maneira mais abrangente.

ÉPOCA – Qual é o papel da indústria nisso?
Biehl – 
No campo da saúde global, a indústria busca abrir mercados e usa, ela própria, um discurso ativista. A indústria farmacêutica diz: “Somos uma indústria de saúde global”. Há um aspecto filantrópico, que ajuda em termos de relações públicas, mas ela também consegue abrir novos mercados onde não existiam mercados antes, com essas iniciativas de saúde público-privadas.
ÉPOCA – Seus trabalhos trazem uma visão crítica do programa de combate à aids no Brasil, considerado referência mundial. Um de seus livros, ao estudar o programa na Bahia, constatou uma epidemia oculta de aids entre pessoas marginalizadas, como prostitutas, que não aparecia nas estatísticas oficiais. Como o senhor avalia o programa?
Biehl – 
Sou crítico, mas de forma construtiva, de modo a abrir espaço para entender o que acontece e como as coisas podem ser feitas de modo diferente. Meu trabalho não é minar o sucesso, porque é impossível negar a importância do programa para reduzir a mortalidade da aids no país ou sua importância política internacional para o Brasil. Mas é inegável, também, que algumas coisas carecem de maior atenção. O atendimento a populações mais marginalizadas era uma lacuna, alvo de tentativas de revisão nos últimos anos. Não dá para tentar entender a doença apenas num nível macro. Existem variações do vírus da aids dentro de cidades, dentro de distritos. Esse é um ponto crucial na saúde global. Não dá só para agregar dados. É preciso ver as especificidades locais, regionais. É preciso haver um engajamento sincero e sustentado, ao longo do tempo, com comunidades mais marginalizadas, onde é difícil, mas não impossível conseguir resultados.

ÉPOCA – O senhor também é um estudioso da “judicialização” da saúde, número crescente de pessoas que passam a recorrer a Tribunais para ter acesso a medicamentos. Isso tem onerado bastante o Sistema Único de Saúde (SUS) e os orçamentos públicos. Como vê esse problema?
Biehl – 
No Brasil, o ativismo pelo acesso universal ao tratamento de aids migrou para outras doenças e outros grupos. Existe esse processo crescente de as pessoas irem aos Tribunais demandando o direito à saúde, entendido como o direito ao fármaco. Isso tem mesmo onerado os governos estaduais e federais. Mas as pessoas que demandam o medicamento pelos Tribunais são pobres. Num estudo de 1.080 litígios contra o Estado do Rio Grande do Sul até 2008, 55% desses casos eram de pessoas que ganhavam um salário mínimo ou menos. Dois terços se referiam a medicamentos que deveriam estar à disposição nas farmácias públicas e não estavam. As pessoas acionavam a administração pública por não cumprir seu papel constitucional, que deveria estar orçado. É uma questão mais complexa, que levanta o problema de para onde vão os orçamentos de saúde. É um cenário em que a gente vê essa triangulação entre um cidadão doente, um Estado cuja administração é falha e um mercado farmacêutico cada vez maior.
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Reportagem Por  GUILHERME EVELIN
Fonte: http://epoca.globo.com/?ver=http://epoca.globo.com/ideias/noticia/2013/07/

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