Leonardo Boff*
o Rio de Janeiro. Ela está contida num livro que acabo de publicar pela editora Mar de Ideias, com o título: “Francisco de Assis e Francisco de Roma: uma nova primavera para a Igreja?”
Assim falou São Francisco aos jovens de hoje
Queridos jovens, meus irmãos e minhas irmãs.
Como vocês, também fui jovem. Era filho de um rico comerciante de tecidos: Pedro Bernardone. Com ele fui às famosas feiras do sul da França e da Holanda. Aprendi francês e conheci um pouco o mundo, especialmente a música dos jograis e as cantigas de amor da Provence.
Minha festiva juventude
Meu
pai, muito rico, me proporcionou todas as facilidades. Eu liderava um
grupo de jovens boêmios que adoravam passar muitas horas à noite nos
becos das ruas, cantando poemas de amor cortês e ouvindo menestreis que
narravam histórias de cavalaria. Fazíamos festins e muita algazarra.
Assim se passaram vários e alegres anos.
Depois
de algum tempo, comecei a sentir um grande vazio dentro de mim. Tudo
aquilo era bom, mas não me preenchia. Para superar a crise, tentei ser
cavaleiro e fazer façanhas em batalhas contra os mouros. Mas no meio do
caminho desisti. Entrei num mosteiro para orar e fazer penitência. Mas
logo percebi que esse não era o meu caminho.
O chamado para reconstruir a Igreja em ruínas
Lentamente,
porém, começou a crescer dentro de mim um estranho amor pelos pobres e
profunda compaixão pelos hansenianos que viviam isolados, fora da
cidade. Lembrava-me de Jesus que foi também pobre e o muito que sofreu na cruz.
Certo
dia, quando entrei numa igrejinha, de nome São Damião, fiquei
longamente contemplando o rosto chagado do Cristo Cruficado. De repente,
me pareceu ter ouvido uma voz vindo dele:”Francisco, vá e repara a
minha igreja que está em ruinas”
Aquelas
palavras calaram fundo no meu coração. Não conseguia esquecê-las.
Comecei, com minhas próprias mãos, a reconstruir uma pequinina e velha
igreja em ruinas, chamada de Porciúncula. Depois, pensando melhor, me
dei conta de que aquela voz se referia à Igreja feita de homens e de
mulheres, de prelados, abades, padres, não excluindo o própro Papa. Ela
estava em ruína moral. Grassavam muitas imoralidades, fome de poder,
acumulação de riquezas, construções de palácios de cardeais, de papas e
suntuosas igrejas. Tudo aquilo que Jesus seguramente não queria de seus seguidores.
A descoberta do evangelho e dos pobres
Achei
por bem beber da fonte genuina da reconstrução da Igreja: os evangelhos
e o seguimento de Jesus pobre. Ninguém me inspirou ou mandou; mas foi
Deus mesmo que me conduziu ao meio dos hansenianos. E tive imensa
compaixão deles. Aquilo que antes achava amargo, agora,
pelo amor compassivo, se me tornava doce. Comecei a pregar pelos burgos
as palavras de Cristo, em língua popular que todos entendiam. Via nos olhos da pessoas que era isso que esperavam e queriam ouvir.
Todos os seres da criação são nossos irmãos e irmãs
Nas
minhas andanças me fascinava a beleza das flores, o canto dos
passarinhos, o ruido das águas dos riachos. Tirava do caminho poierento a
minhoca para não ser pisada. Entendi que todos tínhamos nascidos do
coração do Pai de bondade. Por isso éramos irmãos e irmãs: o irmão fogo,
a irmã água, o irmão e Senhor Sol e a irmã e a Mãe Terra.
Muitos antigos companheiros de festas e diversões se juntaram a
mim. Uma bela e querida amiga, Clara de Assis, fugiu de casa e quis
compartilhar a nossa vida simples. Começamos um movimento de pobres.
Nada levávamos conosco. Apenas o ardor do coração e a alegria do
espírito. Trabalhávamos nos campos ou pedíamos esmolas.
Queríamos seguir os passos de Cristo humilde, pobre e amigo dos pobres.
Tive a compreensão do Papa Inocêncio III que aprovou, não sem
hesitações, o caminho que eu e meus companheiros queríamos seguir.
Depois
de alguns anos, já éramos uma multidão a ponto de eu não saber mais
como abrigar e animar tanta gente. O resto da história vocês conhecem.
Não preciso repeti-la. Com o apoio do Papa daquele tempo, criou-se a
Ordem dos Frades Menores, com diversos ramos, que persiste até os dias de hoje.
Vejam,
queridos jovens, irmãos e irmãs meus queridos. Tive uma experiência que
certamente vocês, como jovens, também tiveram ou estão tendo: de roda
de amigos, de festas e de folias. Portanto, temos algo em comum.
Mas aproveito agora que estamos juntos para dizer-lhes algumas coisas que considero de suma importância para os tempos atuais.
A Mãe Terra está doente e com febre
A
primeira é: como nunca antes, estamos num momento critico da história
da Terra e da Humanidade. O clamor da natureza se faz ouvir de forma
cada vez mais forte. Nossa querida Mãe Terra está doente e com febre,
pois, já há muito tempo, a estamos superexplorando. Tiramos dela mais do
que ela anualmente pode repor. O ar está contaminado, as águas
poluidas, os solos envenados e nossos alimentos cada vez mais
quimicalizados. O aquecimento da Terra não para de aumentar. Milhares de
espécies de seres vivos, nossos irmãos e irmãs, estão desparecendo por
ano: uma verdadeira devastação, ocasionada pela forma agressiva com a
qual nos relacionamos com a natureza, com os seres vivos e a com própria
a Terra.
Devemos
urgentemente fazer uma aliança global de cuidar da Terra e uns e dos
outros, caso não quisermos conhecer grandes dizimações que afetarão toda
a comunidade de vida. Corremos, portanto, grande risco. Mas
se assumirmos uma responsabilidade solidária e um comportamento de
cuidado com tudo o que existe e vive, poderemos escapar desta tragédia. E
vamos escapar.
Colocar o coração no centro de tudo
Uma segunda coisa preciso dizer-lhes como um irmão mais experimentado: temos que mudar a nossa mente e o nosso coração. Mudar a mente
para olhar a realidade com outros olhos. Os olhos das ciências hoje nos
comprovam que a Terra é viva e não apenas algo morto e sem propósito,
uma espécie de baú de recursos ilimitados que podemos usar como
queremos. Eles são limitados, como a energia fóssil do carvão e do
petróleo, a fertilidade dos solos e as sementes. Ela é mãe generosa. Precisa ser cuidada, amada e respeitada como o fazemos com nossas mães.
Vocês sabem que os astronautas, lá da Lua ou de suas naves espaciais, nos testemumharam: Terra e Humanidade são inseparáveis; formam
uma única entidade, indivisível e complexa. Por isso nós, seres
humanos, somos aquela porção da Terra que sente, que pensa, que ama e
que venera. Somos Terra e tirados da Terra como nos dizem as primeiras
páginas da Bíblia. Mas recebemos uma missão única, como se lê no segundo
capítulo do Gênesis: somos colocados no Jardim do Eden, quer dizer, na
Mãe Terra, para cuidar e guardar todas as bondades naturais. Somos os
guardiães da herança que Deus e o universo nos confiaram e que queremos
repassar para nossos filhos e netos, conservada e enriquecida.
Além da mente devemos também mudar o nosso coração.
O coração é tudo. É o lugar do sentimento profundo, do afeto caloroso e
do amor sincero. O coração é o nicho de onde crescem todos os valores e
se expressa o mundo das excelências. Junto com a razão intelectual que
vocês tanto exercitam na escola, no trabalho e na condução da vida,
existe a inteligência cordial e sensível. Ela foi, por muito tempo,
colocada sob suspeita com o pretexto de que ela nos tiraria a
objetividade do olhar. Puro engano. Hoje entendemos que precisamos
resgatar, urgentemente, a razão cordial e sensível para enriquecer a
razão intelectual. Só com a razão intelectual sem a razão cordial não
vamos sentir o grito dos pobres, da Terra, das florestas e das águas.
Sem a razão cordial não nos movemos para ir ao encontro dos que gritam e
sofrem, a fim de socorrê-los, oferecer-lhes um ombro e salvá-los. Da
razão cordial nasce a ética, aquele conjunto de valores que orientam
nossa vida.
Por
isso, meus queridos jovens, vocês que naturalmente são sensíveis para
os grandes sonhos e para o vôo de águia na direção das alturas, cultivem
um coração que sente, que se comove e que leva à ação salvadora. Essa
razão cordial e sensível é mais ancestral que a inteligência
intelectual. É ela que nos faz guardar as boas ou más experiências.
Proteger a Mãe Terra, cuidar da vida e optar pelos pobres
Uma
terceira coisa gostaria de dizer-lhes confiadamente: importa nunca
esquecer os pobres do mundo. São milhões e milhões de irmãos e irmãs que
nos atualizam a paixão de Jesus. Eles devem ser reforçados em suas
lutas e movimentos para se libertarem da pobreza que Deus não quer
porque ela os faz morrer antes do tempo. A fome é assassina e nós não
podemos permitir esse crime coletivo. Em seguida faz-se urgente
proteger a Mãe Terra e cuidar da vida. Ambas estão ameaçadas. Faz-se
urgente inauguarmos uma forma nova de habitar o planeta Terra. Assim
como estamos, não podemos continuar. Até agora habitávamos dominando com
o punho fechado e submetendo tudo. Os novos conhecimentos foram o
grande instrumento de intervenção na natureza. Em quatrocentos anos
afetamos as bases naturais que sustentam a nossa vida. Alimentamos
um projeto de ilimitado progresso. E de fato trouxemos notáveis
progressos e comodidades para grande maioria da humanidade. Mas hoje
estamos conscientes de que a Terra, pequena e limitada, não aquenta um
projeto ilimitado. Encostamos nos seus limites. Porque continuamos a
forçar estes limites, a Terra responde com tufões, enchentes, secas,
terremotos e tsunamis. Esse modelo agressivo de habitar o mundo, cumpriu
sua missão histórica. A continuar assim, pode nos causar grandes
prejuizos e eventualmente ameaçar a espécie humana. Temos que mudar se
quisermos sobreviver.
No
lugar do punho fechado para submeter, devemos ter a mão aberta para o
cuidado essencial, para o entrelaçamento dos dedos numa aliança de
valores e princípios que poderão sustentar um novo ensaio civilizatório.
Precisamos produzir, sim, para atender as necessidades humanas. Mas temos que aprender a produzir respeitando os limites da natureza e da Terra, tirando
delas o necessário e o decente para a vida de todos, com justiça e
equidade. Será uma sociedade de sustentação de toda a vida. O centro
será ocupado pela vida da natureza, pela vida humana e pela vida da
Terra. A economia e a política estarão a serviço mais da vida do que do mercado.
Sejam a mudança que querem para os outros
Caros
jovens: sejam vocês mesmos a mudança que querem para os outros. Comecem
vocês mesmos a viver o novo, respeitando cada um dos seres da natureza,
cada planta, cada animal, cada paisagem porque eles possuem um valor
intrínseco e em si mesmo, independente do uso racional que fizermos
deles. São nossos irmãos e irmãs. Com eles fundaremos uma convivência de
respeito, de reciprocidade e de mutua ajuda para que todos possam
continuar vivos neste planeta, também os mais vulneráveis para os quais
devotaremos mais cuidado e amor.
Queridos irmãos e irmãs jovens: resistam à cultura da acumulação e do consumo. Pensem nos outros irmãos e irmãs que são milhões
e milhões que vivem e dormem com fome e com sede e passando por grandes
padecimentos. Nunca, em nenhum dia, deixem de pensar e se preocupar com
os pobres e com seu destino dramático, principalmente, das crianças
inocentes.
Tenham
um consumo solidário e vivam uma sobriedade compartida; façam a
experiência de que com menos poderão ser mais e que a felicidade reside
não no enriquecimento e numa boa profissão, mas no
compartir e tratar sempre humamente a todos os humanos, nossos
semelhantes e estar em harmonia com a natureza e os ritmos da Mãe Terra.
Alimentar a dimensão da espiritualidade na vida
Por
fim, caros jovens, irmãos e irmãs meus queridos: nada disso tudo que
refletimos terá eficácia se não misturarmos Deus em todos os nossos
empreendimentos. Ele não está em parte nenhuma, porque está em todas as
partes. Mas está principalmente no coração de vocês. Dentro de cada um
de vocês queima uma brasa viva e arde uma chama sagrada: é a presença
misteriosa e amorosa de Deus. Ele emerge de forma sensível no fenômeno do entusiasmo, tão forte na idade de vocês. Entusiasmo significa ter um Deus dentro: é o Deus interior, Deus companheiro e amigo, Deus de amor incondicional.
A nossa cultura materialista e consumista cobriu
de cinzas esta brasa e ameaça apagar a chama sagrada. Afastem essa
cinza através da abertura do coração a esse Deus; reservem cada dia um
momento para pensar nele, conversar com ele, queixar-se e chorar diante dele e dirigir-lhe uma súplica. Às vezes não digam nada. Coloquem-se apenas silenciosos diante dele. Ele
poderá lhes falar e lhes suscitar bons sentimentos e luminosas
intuições. Nunca abandonem Deus, porque Ele nunca os abandona e
abandonará. Vivam como quem se sente na palma de sua mão. E então
estarão protegidos porque Ele é Pai e Mãe de infinita ternura.
A última palavra pertence ao Deus da vida
Desde
que o Filho de Deus por Jesus assumiu a nossa humanidade, ele assumiu
tambem uma parte da Terra e dos elementos do universo. Portanto, estes
já foram divinizados e eternizados. Nunca mais serão ameaçados. Mas nós
podemos. Consolam-nos s palavras da revelação dos dizem que Ele, Deus, é “o soberano amante da vida”(Sab 11,24). Ele
sempre ama tudo o que um dia criou. Não esquece de nenhuma criatura que
nasceu de seu coração. Por isso, confiemos todos, que Ele vai proteger a
nossa querida Mãe Terra e garantir o futuro da vida que é o future de
vocês todos.
Não
disperdicem o tempo porque ele é urgente. Desta vez não podemos chegar
atrasados nem cometer erros, pois corremos o risco de não termos volta
nem formas de correção dos erros cometidos. Mas não percam o entusiasmo nem esmoreça a alegria do coração. A vida sempre triunfa porque Deus é vivo e nos enviou Jesus que disse ter vindo para trazer vida e vida em abundância.
Era o que queria, do fundo de meu coração, lhes falar.
Por
fim, faço-lhes um pedido muito especial: rezem, apoiem, colaborem com o
Papa que leva o meu nome, Francisco. Ele vai restaurar a Igreja de hoje
como eu tentei restaurar a Igreja do meu tempo. Sem a ajuda de vocês,
se sentirá fraco e terá grandes dificuldades. Mas com o entusiasmo e o
apoio de vocês, com as orações nos seus grupos e
movimentos, ele vai cumprir a missão que Jesus lhe conficou: conferir um
rosto confiável à nossa Igreja e confirmar a todos na fé e na
esperança. Com vocês ele será forte e irá conseguir.
Agora, antes de nos despedirmos, lhes darei a bênção que um dia dei ao meu íntimo amigo Fei Leão, a ovelhinha de Deus:
Que Deus vos abençoe e vos guarde!
Que Ele mostre sua face e se compadeça de vós!
Que volva o seu rosto para vós e vos dê a paz!
Que Deus vos abençoe!
Paz e Bem
Francisco. o Poverello e Fratello de Assis
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* Leonardo Boff escreveu:”Francisco de Assis e Francisco de Roma: uma nova primavera na Igreja?” Editora Mar de Idéias, Rio de Janeiro 2013.
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