Piero Citati*
Este é o duplo escândalo, o duplo, grandioso paradoxo da Eucaristia:
a conversão do pão e vinho em corpo e sangue de Cristo; o canibalismo
místico, pelo qual os fiéis degustam o corpo do seu Senhor.
Em um livro fascinante, Entrare nei misteri del Cristo (Qiqajon, 652 páginas), Luigi d'Ayala Valva recolhe os textos da liturgia eucarística, tal como ela se desenvolveu na literatura bizantina dos séculos II ao XIV, de Inácio de Antioquia a Nicola Cabasilas. Seguirá um segundo volume, com os paralelos textos latinos.
Na literatura bizantina, a eucaristia é o coração da religião cristã:
"milagre dos mistérios", "o remédio da imortalidade", a "missa sacra e
tremenda". "Ó, tremendo mistério! Ó, inefável economia de salvação!",
"Ó, incompreensível condescendência", "Ó, insondável compaixão!", assim
exclama Teófilo de Alexandria, perto do fim do século IV.
Durante a missa eucarística e a liturgia que a recorda, as palavras
dos fiéis celebram os querubins, os serafins e todas as potências
angélicas. Nesse mesmo momento, os inúmeros exércitos, que estão ao
redor do trono de Deus, cantam o hino de glória, interrompendo e
alterando a voz do sacerdote. A plena voz, do alto, ecoam as palavras:
"Santo, Santo, Santo, ó Senhor Sabaoth". Esse duplo hino humano e
angélico tem uma função apocalíptica, porque revela que a liturgia da
Igreja transcende não só toda realidade mundana, mas também a si mesma
como liturgia, encontrando cumprimento na realidade celeste e
antecipando o hino glorioso do fim dos tempos. Se os cristãos têm a
audácia de se servir das mesmas palavras dos querubins e dos serafins, o
fazem porque estão conscientes de que Cristo nos permitiu que nos
tornássemos imortais como os anjos.
Nesses cantos, que, de baixo, sobem ao alto e, do alto, descem para
baixo, reina o temor, a reverência, a cautela: as palavras que
audaciosamente voam para o alto, na alta câmara ocupada por Jesus, não
interrompendo nunca a mais profunda moderação. Mas esse temor é repleto
de um imenso fogo. "Ah, talvez – escrevia Orígenes – se
também se inflamasse o nosso coração dentro de nós enquanto explicamos
as Escrituras, e irrompesse um fogo na nossa meditação. Assim Jeremias
acendia os ouvintes: nada de tépido e de frio permanecia dentro deles;
mas, assim como o fogo destrói toda matéria e não acolhe em si mesmo
nada de contaminado, assim também aqueles cujo coração foi tocado pela
chama da palavra divina não suportam mais serem contidos nas aparências
materiais e mundanas, mas as suas lâmpadas permanecerão sempre acesas e
as suas lamparinas ardentes, como as dos servos que esperam o seu senhor
voltar das núpcias".
Esse fogo não deve arder fechado debaixo do alqueire: mas sim
iluminar livremente as distâncias, permanecendo aceso em cima do
candelabro. Toda a meditação sobre a eucaristia é marcada pela dupla
força do temor e do fogo.
A antiga e original aliança entre Deus e Israel havia ocorrido no Êxodo. Moisés construiu um altar aos pés da montanha, com 12 estrelas para as 12 tribos de Israel; os jovens judeus sacrificaram os touros ao Senhor; Moisés
leu a Israel o livro da aliança, aspergiu o povo com o sangue dos
touros e disse: "Eis aqui o sangue da aliança que o Senhor estabeleceu
para vocês, com base em todas estas palavras".
Não era a única ligação entre Deus e Israel. Antes da fuga do Egito,
cada família tomou um cordeiro, macho, puro e sem defeitos, e o degolou
ao anoitecer, manchando de sangue os dois pilares e o lintel de cada
porta. Depois, todos os judeus, naquela noite, assaram a carne dos
cordeiros no fogo e a comeram com pão sem fermento e ervas amargas: nada
de cru ou de cozido na água, mas tudo assado no fogo, com a cabeça, as
patas e as miudezas. O que restou de manhã foi queimado.
O Novo Testamento também conhece uma aliança entre
Deus e o seu povo: a nova aliança, que ao mesmo tempo confirmaria e
cancelaria a antiga. Durante a última ceia, como relatam os três
evangelhos sinóticos, Jesus disse aos discípulos: "Desejei ardentemente
comer esta páscoa com vocês antes da minha paixão. Eu lhes digo, de
fato, que não a comerei até que ela se cumpra no reino de Deus".
E tomou um cálice, depois de dar graças, e disse: "Tomem-no e
distribuam-no entre vocês. Digo a vocês que, a partir deste momento, eu
não beberei do fruto da videira até que venha o reino de Deus".
Depois, tomou um pão e deu graças, o partiu e o deu a eles dizendo:
"Este é o meu corpo que é dado por vocês. Façam isso em memória de mim".
E, do mesmo modo, com o cálice, depois de ter ceado, dizendo: "Esta é a
nova aliança no meu sangue, que é derramado por nós".
Os sacrifícios dos cordeiros na antiga aliança ocorriam muitas vezes:
como eram muitos, dizem os Padres gregos, também eram vãos. O
sacrifício da nova aliança ocorre, ao invés, uma única vez, por vontade
de Deus e de Cristo, quando Jesus sobe à cruz e morre na cruz,
antecipando o seu gesto aos discípulos durante a última ceia: por esse
caráter de absoluta unicidade, a cerimônia da nova aliança é fundada e
eterna.
É verdade que ela também se repete toda vez que os fiéis aproximam da
boca o pão e o vinho: mas o fundamento da aliança está atrás, na
origem, quando Jesus se imola na cruz para perdoar os nossos pecados.
O gesto de Cristo durante a última ceia é, em primeiro lugar, uma
recordação: aquele pão partido em pedaços mais ou menos miúdos nos
relata, em perspectiva, o episódio da crucificação, quando, do mesmo
modo, os membros de Jesus eram agredidos, feridos, vilipendiados,
despedaçados. Mas, na sua essência, o gesto de Jesus é muito mais do que
uma recordação. É uma conversão: uma metamorfose.
Enquanto Jesus oferece o pedaço de pão e o gole de vinho aos
discípulos, ele transforma aquelas simples espécies naturais no seu
próprio corpo, no seu próprio sangue, e só desse modo o seu gesto se
torna o sinal físico da nova aliança. Agora, os membros e o sangue de
Cristo estão ali, sobre a mesa, nas mãos de Jesus, ou no cálice que ele
segura nas mãos: foram transformados em pão e em vinho, e Jesus
recomenda aos discípulos que comam e bebam, como fazem todos os dias
quando comem e bebem o pão e o vinho da sua existência.
Esse é o duplo escândalo, o duplo, grandioso paradoxo da Eucaristia: a
conversão do pão e vinho em corpo e sangue de Cristo; o canibalismo
místico, pelo qual os fiéis degustam o corpo do seu Senhor. Por mais que
possa parecer absurdo e incompreensível, os fiéis devem aceitar esse
mistério: sem a Eucaristia, entendida não em sentido simbólico, mas em
sentido físico, não existe nenhum cristianismo, que precisa desse duplo
escândalo e faz dele a sua essência.
Olhando e ouvindo o que acontece com olhos e ouvidos místicos, os
fiéis compreendem que as palavras do sacerdote, que repetem literalmente
as do Cristo, operam a grande metamorfose: a mesma que as palavras e os
gestos de Jesus haviam operado durante a última ceia. Tudo ocorre por
intervenção milagrosa do Espírito Santo, embora essa intervenção seja
lembrada nos textos dos Padres gregos e não ainda nos evangelhos
sinóticos.
Enquanto Jesus oferece o seu corpo aos discípulos durante a última
ceia, ele já está morto: parece vivo, fala com perfeita razoabilidade,
como fazem os vivos e não os mortos. Porém, o corpo da vítima, se
estivesse ainda viva, não seria adequado à alimentação por parte dos
discípulos.
Essa interpretação não é dada pelos evangelhos sinóticos, mas sim
pelos Padres gregos, que pensam que o corpo de Cristo já foi
secretamente imolado, talvez pelo Espírito Santo. Tudo o que a liturgia
bizantina diz da eucaristia é igualmente inefável e inconcebível. Os
fiéis sabem que cada um deles absorve apenas um pedaço de pão e um gole
de vinho: portanto, uma parte mínima do corpo de Cristo. Porém, os
Padres gregos nos asseguram que, na eucaristia, os fiéis possuem e
degustam todo o corpo de Cristo. Orígenes assegura que
cada um deles o degusta segundo a sua própria necessidade e a sua
própria natureza: toque não menos misterioso do que aqueles de que
falamos até agora.
* * *
No fim, ocorre a metamorfose definitiva. Mesmo permanecendo
aparentemente seres humanos, os fiéis se transformam no corpo vivo de
Cristo: tudo é divinizado, segundo o profundo desejo do pensamento
bizantino. Não há mais corpos isolados e divididos, não há mais nada de
terreno e de mundano; mas há apenas o único, imenso corpo divino da
Igreja, que se identifica total e absolutamente com o de Cristo.
Já havia dito Inácio de Antioquia, poucas décadas
depois da morte de Jesus: "Buscai, pois, de ter uma única eucaristia.
Uma única, de fato, é a carne do Senhor nosso, Jesus Cristo,
e um único é o cálice que nos une no seu sangue, um único é o altar,
assim como um único é o bispo, juntamente com o presbitério e os
diáconos, meus companheiros de serviço. Tudo o que fizerem, façam
segundo Deus".
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* A opinião é de Piero Citati, um dos mais famosos escritores e críticos literários italianos, em artigo publicado no jornal Corriere della Sera, 21-07-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: IHU on line, 23/07/2013
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