Luiz Felipe Pondé*
"A modernidade é toda feita para servir ao pequeno autoritário,
o "eu": ele exige mais sucesso, mais autoestima, mais saúde, mais
dinheiro, mais beleza, mais celulares, mais viagens, mais consumo, mais
direitos, mais rapidez, mais eficiência, mais atenção, mais
reconhecimento, mais equilíbrio, melhor alimentação, mais
espiritualidade para que ele não se sinta um materialista grosseiro."
O "eu" deve agir como as mulheres quando fecham as pernas em sinal de pudor e vergonha.
Meu Deus, como ter um "eu" cansa! Os místicos têm razão. Não é
necessário ser um "crente" para ver isso, basta ter algum senso de
ridículo para ver o quão cansativo é satisfazer o "eu". E a modernidade é
toda uma sinfonia (ou melhor, uma "diafonia", contrário da sinfonia)
para este pequeno "eu" infantil.
Outro dia, contemplava pessoas num aeroporto embarcando para os EUA com malas vazias para poder comprar um monte de coisas lá.
Que vergonha. É o tal do "eu" que faz isso. Ele precisa comprar,
adquirir, sentir-se tendo vantagem em tudo. O "eu" sente um "frisson"
num outlet baratinho em Miami. O mundo faz mais sentido quando ele
economiza US$10. E o pior é que, neste mundo em que vivemos, faz mesmo
sentido. Qualquer outra forma de sentido parece custar muito mais do que
US$ 10.
A filosofia inglesa tem uma expressão muito boa que é "wants", para
se referir a nossas necessidades a serem satisfeitas. Poderíamos
traduzir de modo livre por "quereres". O "eu" é um poço sem fundo de
"wants". Isso me deprime um tanto.
Como dizia acima, a modernidade é toda feita para servir ao pequeno
autoritário, o "eu": ele exige mais sucesso, mais autoestima, mais
saúde, mais dinheiro, mais beleza, mais celulares, mais viagens, mais
consumo, mais direitos, mais rapidez, mais eficiência, mais atenção,
mais reconhecimento, mais equilíbrio, melhor alimentação, mais
espiritualidade para que ele não se sinta um materialista grosseiro.
Outra demanda do "eu" que enche o saco é querer se conhecer. Você
conhece coisa mais chata do que alguém que tira um final de semana para
fazer um workshop de autoconhecimento e aí vai para jardins "fakes" na
Raposo? E pior, quem tira seis meses para se conhecer depois dos 40 anos
e acha legal? O autoconhecimento só é sério quando deságua em
autoironia.
O império do "eu" se revela quando vivemos pela angústia de torná-lo
"resolvido". Nada é mais típico dessa angústia estéril do que alguém
sempre atento às próprias dores.
Outra armadilha típica do mundinho do "eu" é a idolatria do desejo. A
filosofia sempre problematizou o desejo como modo de escravidão, e isso
nada tem a ver com a dita repressão cristã (que nem foi o cristianismo
que inventou) do desejo. Problematizar o desejo tem mais a ver com um
conhecimento sutil, fruto da experimentação que a realização do desejo
sem idealizá-lo traz. A idealização do desejo é marca da condição
adolescente ou reprimida.
O "eu" falante inunda o mundo com seu ruído. O "eu" mais discreto
tece um silêncio que desperta o interesse em conhecê-lo. Mas hoje
vivemos num mundo da falação de si, como numa espécie de contínuo
striptease da alma. O corpo nu é mais interessante do que a alma que se
oferece. Por isso toda poesia sincera é ruim (Oscar Wilde). O "eu" deve agir como as mulheres quando fecham as pernas em sinal de pudor e vergonha.
A alta literatura espiritual, oriental ou ocidental, há muito
compreende o ridículo do culto ao "eu". Uma leveza peculiar está
presente em narrativas gregas (neoplatonismo), budistas (o "eu" como
prisão) ou místicas (cristã, judaica ou islâmica).
Conceitos como "aniquilamento" (anéantissement, comum em textos
franceses entre os séculos 14 e 17), "desprendimento"
(abegescheidenheit, em alemão medieval) e "aphalé panta" (grego antigo)
descrevem exatamente esse processo de superação da obsessão do "eu" por
si mesmo.
A leveza nasce da sensação de que atender ao "eu" é uma prisão maior
do que atender ao mundo, porque do "eu" nunca nos libertamos quando
queremos servi-lo. Ele está em toda parte como um deus ressentido.
Por isso, um autor como Nikos Kazantzakis, em seu primoroso "Ascese",
diz que apenas quando não queremos nada, quando não desejamos nada é
que somos livres. Muito próximo dele, o filósofo epicurista André
Comte-Sponville, no seu maior livro, "Tratado do Desespero e da
Beatitude", defende o "des-espero" como superação de uma vida pautada
por expectativas.
Entre as piores expectativas está a da vida eterna. Espero que ao final o descanso das pedras nos espere. Amém.
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* Escreve Luiz Felipe Pondé, filósofo, prof. Universitário, em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, 29-07-2013.
Fonte: IHU on line, 31/07/2013
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