segunda-feira, 15 de julho de 2013

Uma dose de Drummond

Fernanda Pacheco*

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Ler Carlos Drummond de Andrade é um excesso obrigatório para confortar todos os ruídos da vida – e para atiçar também, claro. No texto "Como se fosse balanço" o autor faz uma pausa com o leitor para analisar a vida como ela é (ou como está).
 
A crônica Como se fosse balanço publicada no livro Os dias lindos de Carlos Drummond de Andrade é mais um exemplo da genialidade do autor e da facilidade que ele tem até hoje de sentar ao seu lado e conversar com você sobre o cotidiano. Nesta crônica ele aproveita para jogar a real ao leitor. É impossível não sentir qualquer mudança interna após a leitura e o momento é um tanto quanto adequado, não acha?

"Lá se foi a primeira metade do ano, e já estamos folgados na segunda metade. Agosto continua o quê? Julho deu para balanço? Você fez alguma coisa do que planejava fazer neste ano? Claro que não. Fez, no máximo, aquilo que deixaram ou quiseram que você fizesse. Sempre assim, e você já devia estar habituado. Como, aliás, está. Ou não? Por favor, não me venha com essa cara de inconformado de nascença. Já é do seu conhecimento, há muitas centenas de meses, que lhe cabe assistir a um espetáculo de que você, ao mesmo tempo, é comparsa mínimo. Espectador dos outros e de si mesmo: curiosa situação, né? A de tanta gente. Nem exceção você é. Não se envaideça. Não se melancolize.
É isso aí: dão-lhe o direito de fazer planos. Reservam-lhe, até quadra especial para isso. Não assumem, porém, o compromisso de deixar que você os execute. Mas podia ser de outro modo? Pense na barafunda que resultaria da realização simultânea (e conflitante) de todos os planos individuais. Cada um com seu esquema, sua quimera: a explosão disso tudo, hem? Se preferir, bote a culpa nas estruturas e infra-estruturas, nos sistemas, no acaso, na sorte, em Deus. Poderes que impedem você de poder. Que podem por você.

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Drummond - 1951 (mais fotos aqui)

Aí está uma confortadora transferência de responsabilidade. Deixassem você solto, agindo, era aquela beleza. Vertigem boa: pensar em possíveis e impossíveis. No fundo, meu prezado, você tem é vocação para Deus. Mas o lugar está preenchido. À vista da frustração, só lhe resta ser um de seus (in)fiéis. Mas assim como é dificílimo ser Deus, não é nada maneiro submeter-se à sua jurisdição. O código de proibições e obediências estica-se por mil volumes. A vida inteira não dá para a leitura. E a letra é tão miudinha! 

Em casa, na rua, no hospital, no espaço, em pensamento, você está sempre obedecendo a um parágrafo visível ou implícito. Ou o transgredindo. O sinal luminoso do cruzamento é muito mais do que sinal luminoso: é sentença de morte, caso você não lhe dê a atenção exigida. Ou mesmo dando. O menor carimbo pressupõe regras invioláveis de conduta.

O jogo da vida consiste, em parte, no estudo de como violá-las, simulando reverência.

Você esperneia, revolta-se - adianta? Mesmo sua revolta foi protocolada. O caso da maçã estava previsto. A serpente estava prevista. Prevista, a expulsão do Paraíso. A lição de alguns autores é que o Paraíso foi criado exatamente para o homem experimentar-lhe a privação. Da qual resultariam invenções, técnicas de compensação, poemas, sinfonias. Mas há também quem ache isso fábula de amor cinzento, descambando para o negro.

Acomodar-se, então, seria a receita? A razão estará com a minoria selecionada dos quietistas? Ou o caminho que eles encontraram é demasiado simplório para ser um caminho, e, em vez de conduzir à solução, gira em redor do problema, acentuando a insolubilidade?

Devaneios. Como você devaneia, irmão! Quer ser e não ser, sendo. Imagina o vazio, com a sua pessoinha lá dentro, escondida, resguardada, a se divertir com a imperícia dos outros, que vão aos trambolhões, expostos a chuva, granizo, fogo.

Como se você também não participasse desse existir precário, de que só algumas ressonâncias chegam à publicidade, em situações-limite. Existir que, por ser universal, tem força de regra, torna-se normalidade. Escusa de dar balanço, ou antes, balancete, nesta parte carcomida do ano. Os erros são justificáveis, de uma forma ou de outra. É, não deu.

Os acertos, porque involuntários, o são menos. Não dependeram de você, confesse. De certo, que foi que dependeu de você: as marés, o câmbio, o desencontro das nações,a briga dos namorados, o amor revelado, a distensão, a enchente, a qualidade da vida?

Pense em outra coisa. Não impede que você reelabore planos para o restante do ano e até para o ano que vem. Esporte como outro qualquer.

Experimente agosto. Voltam as aulas, os horários. Experimente (sempre) viver."

O livro Os dias lindos foi publicado pela primeira vez em 1977 e reúne crônicas, contos e causos que Drummond escrevia no Jornal do Brasil. É mais um livro-amigo que todo mundo deve ler!
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* É historiadora quase formada, tem 20 anos e aprecia uma boa e velha miscelânea cultural.
Fonte: http://lounge.obviousmag.org/cafe_amargo/2013/07/

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