José Tolentino Mendonça*
Creio que o que de mais importante podemos
testemunhar e despertar na vida uns dos outros é aquilo que a escritora
Maria Gabriela Llansol chama, na sua linguagem inesquecível, «a luta
quotidiana pelo fulgor». O fulgor não é uma evanescência, nem resulta
de um qualquer errático acaso. É um combate, o fulgor. É um esforço de
todos os dias esta procura de luz, de intensidade, este desejo de uma
cintilação na paisagem baça e opaca que, tantas vezes, parece ser a
única que nos resta. O fulgor abre-nos a uma compreensão maior do
próprio tempo. Liga-nos ao que está mais adiante ou mais fundo. Rompe
brechas. Faz-nos teimosamente repetir: “não pode ser só isto”.
Encontrei-me com Maria Gabriela Llansol diversas
vezes, e recordo de modo particular duas situações. Não sei se as
torna especialmente indeléveis o facto de terem constituído a primeira e
a última das nossas conversas. Talvez seja também isso. Ambos os
momentos ocorreram em Sintra. No primeiro, ela estava à minha espera na
estação, à chegada do comboio, e demos um demorado passeio pelo parque
da Vila. Lembro-me que à queima-roupa ela me perguntou: «Tolentino, o
que procuras?». Não esperava por aquela pergunta, fiquei calado e
confundido, e respondi-lhe qualquer coisa de que me esqueci. Mas a sua
pergunta ficou-me. A luta quotidiana pelo fulgor faz-se de exercícios
assim. É verdade que são exigentes e que não estamos preparados para
eles. Mas se cada um de nós não afronta, com clareza, os quês e os
porquês que silenciosamente persegue, o fulgor daquilo que vivemos
diminui, fica como que comprometido. No nosso último encontro, a Maria
Gabriela já estava muito doente. Ela havia manifestado a amigos comuns o
desejo de estar comigo e apressei-me a realizá-lo. Tinha uma
dificuldade grande em falar, mas essa dificuldade era também uma
misteriosa e humaníssima forma de linguagem. Acho que nos entendemos
muito bem. No final, ela pediu que tomássemos um chá. E assim fizemos,
nas chávenas mais belas do seu armário, sorvendo com aquele chá uma
coisa que eu e gerações de leitores aprendem com ela: a luta quotidiana
e extrema pelo fulgor. Umas semanas depois da sua morte, recebi um
pacote proveniente da sua morada, que me deixou numa comoção que vão
certamente compreender: num papel de seda azul, muito delicado, vinham
embrulhadas as chávenas que celebraram o nosso último encontro.
Aquando da morte do meu querido amigo Frei José
Augusto Mourão, os Padres Dominicanos decidiram incluir-me, com uma
generosidade que muito me tocou, na condivisão simbólica da sua
herança. Dessa herança afetiva que me foi atribuída, fazia parte uma
carta que Maria Gabriela Llansol lhe havia endereçado. E dizia assim:
«Talvez que solidão e companhia se avistem do mesmo lugar. Creio que o
conhecimento nasce de uma espécie de passagem rápida de uma pela outra.
“Olá”, diz a companhia. “Olá”, diz a solidão, e ambas desaparecem
nessa tensão de querer ser e saber».
Falta só dizer que o fulgor é uma luta sem deixar, como se vê, de ser um dom.
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* Escritor. Poeta.
In Diário de Notícias (Madeira)
Atualizado em 04.08.13
In Diário de Notícias (Madeira)
Atualizado em 04.08.13
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