segunda-feira, 5 de agosto de 2013

A luta quotidiana pelo fulgor

José Tolentino Mendonça*
 
Creio que o que de mais importante podemos testemunhar e despertar na vida uns dos outros é aquilo que a escritora Maria Gabriela Llansol chama, na sua linguagem inesquecível, «a luta quotidiana pelo fulgor». O fulgor não é uma evanescência, nem resulta de um qualquer errático acaso. É um combate, o fulgor. É um esforço de todos os dias esta procura de luz, de intensidade, este desejo de uma cintilação na paisagem baça e opaca que, tantas vezes, parece ser a única que nos resta. O fulgor abre-nos a uma compreensão maior do próprio tempo. Liga-nos ao que está mais adiante ou mais fundo. Rompe brechas. Faz-nos teimosamente repetir: “não pode ser só isto”.

Encontrei-me com Maria Gabriela Llansol diversas vezes, e recordo de modo particular duas situações. Não sei se as torna especialmente indeléveis o facto de terem constituído a primeira e a última das nossas conversas. Talvez seja também isso. Ambos os momentos ocorreram em Sintra. No primeiro, ela estava à minha espera na estação, à chegada do comboio, e demos um demorado passeio pelo parque da Vila. Lembro-me que à queima-roupa ela me perguntou: «Tolentino, o que procuras?». Não esperava por aquela pergunta, fiquei calado e confundido, e respondi-lhe qualquer coisa de que me esqueci. Mas a sua pergunta ficou-me. A luta quotidiana pelo fulgor faz-se de exercícios assim. É verdade que são exigentes e que não estamos preparados para eles. Mas se cada um de nós não afronta, com clareza, os quês e os porquês que silenciosamente persegue, o fulgor daquilo que vivemos diminui, fica como que comprometido. No nosso último encontro, a Maria Gabriela já estava muito doente. Ela havia manifestado a amigos comuns o desejo de estar comigo e apressei-me a realizá-lo. Tinha uma dificuldade grande em falar, mas essa dificuldade era também uma misteriosa e humaníssima forma de linguagem. Acho que nos entendemos muito bem. No final, ela pediu que tomássemos um chá. E assim fizemos, nas chávenas mais belas do seu armário, sorvendo com aquele chá uma coisa que eu e gerações de leitores aprendem com ela: a luta quotidiana e extrema pelo fulgor. Umas semanas depois da sua morte, recebi um pacote proveniente da sua morada, que me deixou numa comoção que vão certamente compreender: num papel de seda azul, muito delicado, vinham embrulhadas as chávenas que celebraram o nosso último encontro. 

Aquando da morte do meu querido amigo Frei José Augusto Mourão, os Padres Dominicanos decidiram incluir-me, com uma generosidade que muito me tocou, na condivisão simbólica da sua herança. Dessa herança afetiva que me foi atribuída, fazia parte uma carta que Maria Gabriela Llansol lhe havia endereçado. E dizia assim: «Talvez que solidão e companhia se avistem do mesmo lugar. Creio que o conhecimento nasce de uma espécie de passagem rápida de uma pela outra. “Olá”, diz a companhia. “Olá”, diz a solidão, e ambas desaparecem nessa tensão de querer ser e saber».

Falta só dizer que o fulgor é uma luta sem deixar, como se vê, de ser um dom.
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* Escritor. Poeta.
In Diário de Notícias (Madeira)
Atualizado em 04.08.13

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